Negócios
Correios: faz sentido comparar a dívida da empresa com Petrobras e Vale?
Postagem de Felipe Neto comparando dívida dos Correios com a das empresas não faz sentido, dizem especialistas.
Enquanto a privatização dos Correios ganha contornos de polêmica no meio político, nas redes sociais não é diferente. Recentemente, uma postagem do influenciador Felipe Neto intensificou as discussões ao apontar que a dívida dos Correios é menor do que a de outras empresas, como Petrobras (PETR3; PETR4) e Vale (VALE3). Mas essa comparação faz sentido?
Para especialistas ouvidos pelo InvestNews, não. “A comparação do Felipe Neto não faz sentido porque trata-se de empresas diferentes, com tamanhos e portes diferentes, mercados de atuação diferentes, ativos diferentes”, diz Fabrício Lodi, professor do Projeto os 10%. “A comparação, desta forma como foi colocada, é completamente equivocada e imprecisa.”
“Não faz sentido algum. Para você comparar outras empresas, você precisa considerar setor, comparar segmento, estabilidade dos resultados”, concorda Filipe Ferreira, diretor da Comdinheiro.
Mas de onde veio o comentário? Os números dos resultados dos Correios vêm sendo usados como argumentos para os dois lados da discussão sobre a privatização. Os que são a favor da venda da estatal apontam que os balanços mostram uma empresa em situação delicada. Os que são contra afirmam que a empresa deu lucro de R$ 1,5 bilhão no ano passado e que haveria mais desvantagens na desestatização do serviço de entregas do que o contrário.
No entanto, especialistas apontam que é preciso cuidado ao analisar os números antes de tirar conclusões. O primeiro deles é não avaliar indicadores separadamente, como fez Felipe Neto. A dívida do Correios, de fato, é menor do que a das empresas listadas por ele, mas esse valor deve ser combinado com outros para saber se uma empresa tem ou não um endividamento saudável.
Números dos Correios: bons ou ruins?
Em 2020, os Correios tiveram lucro de R$ 1,5 bilhão – o melhor resultado em 10 anos. O montante destoa bastante dos anos anteriores. Após quatro anos de prejuízos, a empresa voltou a registrar lucro de R$ 667 milhões em 2017, R$ 161 milhões em 2018 e R$ 102 milhões em 2019.
Ainda no ano passado, a dívida líquida dos Correios somou R$ 1,4 bilhão e as receitas ficaram em R$ 17 bilhões. A capacidade de geração de caixa, indicada pelo Ebitda, foi de em R$ 1,4 bilhão. Ferreira comenta que, separadamente, os números podem parecer positivos. Mas, combinados, a situação se mostra mais complexa.
“No último ano, os Correios tiveram um resultado excepcional, R$ 1,5 bilhão de resultado líquido. Mas essa não é a realidade recorrente da empresa. Se você pega o balanço de 2018, foi um décimo do lucro deste ano. Isso dá um sinal para a gente”, começa o especialista.
“Quando você pensa em R$ 1,4 bilhão em dívidas e um resultado líquido de R$ 1,5 bilhão, é absolutamente razoável. Tem dívidas que você conseguiria pagar, e vai usar o benefício fiscal da dívida. Absolutamente pertinente. O ponto é: será que os Correios conseguiriam manter esse patamar de lucro? Se sim, o endividamento não é um problema. Se não, pode vir a ser”, prossegue Ferreira.
Outro ponto destacado por ele é relação entre a receita e o resultado final – ou seja, o lucro. “Se você considerar mesmo o resultado de R$ 1,5 bilhão para uma empresa que tem uma receita líquida na casa de R$ 17 bilhões, não é um resultado glorioso, longe disso. É uma margem razoavelmente estreita para um serviço que é monopolista.”
Lodi, por sua vez, acrescenta que “o endividamento é um item de extrema importância a ser avaliado. Mas, solto, sem olhar toda a estrutura de capital da empresa, seus ativos, a geração de caixa, lucro operacional, ele diz muito pouco, assim como qualquer outro indicador.”
Correios x Petrobras
Em sua postagem, Felipe Neto comparou a dívida dos correios com a de empresas privadas, incluindo Latam, Suzano (SUZB3), JBS (JBSS3) e Vale (VALE3). Na lista, ele incluiu também outra estatal, assim como os Correios: a Petrobras (PETR3 e PETR4).
Os especialistas ouvidos pela reportagem apontam que a comparação não é cabível, por se tratarem de setores completamente diferentes. Ainda assim, o InvestNews se ateve a um dos exemplos, a Petrobras (justamente por também ser estatal), para questioná-los sobre quais são as diferenças.
Correios e Petrobras: resultados de 2020
Empresa | Dívida líquida | Lucro | Receita | Ebitda | Relação dívida x Ebitda |
Petrobras | US$ 63 bilhões | R$ 7,1 bilhões | R$ 272 bilhões | R$ 142 bilhões | 2,22 |
Correios | R$ 1,4 bilhão | R$ 1,5 bilhão | R$ 17 bilhões | R$ 1,4 bilhão | 0,99 |
Ferreira aponta que o setor de petróleo pressupõe um ambiente de negócios bastante distinto que o de entregas. Por isso, somente pelos números, não é possível dizer qual das dívidas é mais “perigosa”, a da Petrobras ou a dos Correios. Agora, olhando para as características dos setores, a petroleira estaria em melhor situação, mesmo com montante de dívida maior.
“Quando o influencer comparou por exemplo com Petrobras, é uma comparação que não faz qualquer sentido. A Petrobras está num setor em que ela pode se endividar, ela tem uma boa parte da sua receita bastante estável”, explica ele, mencionando outros casos semelhantes.
“Boa parte da sua receita é pré-contratada. Você tem empresas de saneamento básico, transmissão de energia, caindo no mesmo caso. Elas não são endividadas porque elas não têm capacidade de pagar, muito pelo contrário. Elas são endividadas porque é mais barato contrair dívida. Então, ao invés de reinvestir o resultado da empresa, você toma dinheiro emprestado para investir”, diz Ferreira.
Nesse sentido, Lodi acrescenta que “a dívida inclusive pode gerar valor ao acionista, desde que a empresa invista esse capital de terceiros em projetos que retornem uma taxa maior do que o de juros contratados”.
Voltado à comparação com a Petrobras, Ferreira comenta que “Correios está num movimento de mudança no setor. O uso do sistema de entregas tem outra característica hoje e o ponto é se, nessa estrutura atual, eles conseguem surfar a onda.”
“Já a Petrobras tem um sistema de mudança de energia, mas é de mais longo prazo, não é uma coisa que está acontecendo agora, deve acontecer nas próximas décadas. E, para viver essas próximas décadas, a Petrobras está bem estabelecida, tem receitas pré-contratadas. São jogos completamente diferentes”, diz ele.
A privatização dos Correios faz sentido?
O texto aprovado na Câmara dos Deputados no início de agosto autoriza que a iniciativa privada possa explorar serviços postais, incluindo os oferecidos pelos Correios. Com isso, o projeto abre as portas para a venda da estatal. O próximo passo é a análise do Senado.
Entre os que são contra a privatização, um dos principais argumentos é a possibilidade de demissão de cerca de 100 mil funcionários, além do fato de o serviço postal universal ser uma garantia constitucional. Já entre os defensores, os pontos levantados incluem os recursos que podem ser levantados para os cofres públicos com a venda de uma empresa considerada pouco eficiente.
Por sua vez, o governo argumenta que a ideia de privatizar os Correios é possibilitar melhorias na eficiência dos serviços postais no país, especialmente em meio às dificuldades de fazer investimentos públicos no setor.
Ferreira aponta que “essa discussão não pode cair em paixões ou absolutismos”, e sim responder a uma pergunta: “compensa ou não compensa?”
“A decisão é racional. Os Correios deram resultados nos últimos anos que não foram gloriosos. Exceto 2020, que foi razoável. Mas os anteriores eram resultados que, de fato, não faziam sentido para uma empresa desse porte, com investimento que ela demanda”, opina ele.
Para Ferreira, “se alguém está disposto a pagar o investimento que a empresa demanda e sabe uma forma de gerar mais lucro do que o governo, eventualmente o governo vende os Correios e ganha mais dinheiro, porque o imposto sobre o lucro em cima do novo lucro da empresa vai ser maior do que o resultado líquido hoje”.
É importante destacar, porém, que os moldes de uma possível privatização dos Correios ainda estão em discussão. Em sua versão atual, o texto determina que os serviços postais considerados universais, como cartas, impressos e telegramas, deverão ser realizados por uma nova empresa chamada de Correios do Brasil. Entenda a privatização dos Correios.
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