Metade do minério de ferro da Vale sai da serra dos Carajás, no Pará. E é a melhor metade: minério com alto teor de ferro – 65%, em média, contra 62% do padrão global. Só em 2024 foram 177,5 milhões de toneladas de Fe65 (como se diz no jargão) – 44% da produção mundial.   

Nenhuma mina do planeta produz minério premium numa quantidade comparável à de Carajás – a segunda colocada é a de Mikhailovsky, na Rússia, que produz bem menos, 37 milhões de toneladas por ano. Mas isso deve mudar.

Porque o complexo de Carajás tem um irmão gêmeo na África, ainda inexplorado: Simandou, na Guiné. Trata-se de uma serra cheia de Fe65, com capacidade para produzir 120 milhões de toneladas por ano. A australiana Rio Tinto, que divide os direitos de exploração de Simandou com um consórcio de empresas chinesas, pretende iniciar os trabalhos por lá até o final deste ano. 

Daí até a operação plena, com as 120 milhões de toneladas anuais, tem um certo chão. Leva uns bons meses, ou anos, para azeitar a engrenagem logística. Mas, quando ela chegar, a Vale terá pela primeira vez um concorrente à sua altura no mercado de Fe65: caso Simandou estivesse em operação hoje, ela seria responsável por 23% da produção global de minério premium, e reduziria a participação da Vale para 34%

Hora de parar um pouco para entender melhor o mercado de Fe65. Ele tem uma vantagem óbvia sobre seu primo menos rico, o Fe62: a siderúrgica que compra a variedade com 65% de ferro consegue produzir mais aço a partir de menos minério. Isso diminui a demanda por energia térmica, e a siderúrgica economiza em coque, o combustível derivado do carvão que alimenta os fornos lá dentro. 

De quebra, a siderúrgica acaba emitindo menos CO2. E isso é um ativo financeiramente valioso nesta era em que toda companhia tem alguma meta net zero para ser cumprida em algum momento – incluindo aí uma empresa com 1,4 bilhão de funcionários chamada República Popular da China, que compra três de cada quatro toneladas de minério de ferro disponíveis para exportação. 

A cotação internacional do minério, a que sai no noticiário, diz respeito ao preço do Fe62, que responde pelo grosso do mercado. O Fe65 é mais caro, logicamente. Sai por 10% a 15% a mais, dependendo da demanda. Veja aqui embaixo um retrato dessa diferença entre 2010 e 2024:

Quem dita hoje o preço do Fe65 é a própria Vale, por praticamente controlar esse mercado. Agora, com a entrada de Simandou em cena, isso muda de figura. Com o aumento da competição, o natural é que o prêmio que as siderúrgicas pagam pelo Fe65 fique mais estreito – uma pressão negativa para os lucros da Vale. 

Ainda mais levando em conta que o sócio da Rio Tinto em Simandou é um consórcio de mineradoras chinesas, com a estatal Baosteel à frente. A mineração na África é mais do que um negócio para a China. É uma questão de segurança nacional; um projeto de longo prazo que visa garantir o suprimento de matéria-prima para a indústria chinesa.  

Mas vale lembrar também que o mercado de minério não é tão simples. É o que vamos ver agora.  

Minério de ferro: a commodity que ao mesmo tempo são três

O Fe65 tem três usos. Uma parte vai para a produção de minério “superpremium”, vamos dizer assim. O minério sai da mina em forma de pó, passa por um processo que remove uma parte das impurezas e, depois, é prensado na forma de bolinhas – “pelotas”, no jargão (ou pellets, como costuma aparecer no noticiário). 

Essas bolinhas, com menos carga de sílica, têm 67% de ferro. Custam ainda mais caro que o minério normal, em pó, que é chamado de “fino”.

Produção de pelotas de minério de ferro. Foto: Getty Images

Nem todo o Fe65 é transformado em pelotas – muito pelo contrário. Porque não existe tanto mercado assim para matéria-prima de primeiríssima linha (da mesma forma que não há tanto mercado assim para macarrão trafilato al bronzo…). 

Só que o mercado para o Fe65 também não é tudo isso. Boa parte dele vai para a produção de Fe62, mais barato. Exato. A Vale pega minério de Carajás e mistura com variantes menos ferrosas das minas do Sul/Sudeste – em geral, Fe58.

Ele é mais barato que Fe62, claro. Mas tem baixa demanda. Qualquer mercado tem um equilíbrio ideal entre qualidade e preço. No de minério, quem satisfaz melhor essa condição é o 62%.

Ele domina 75% das exportações globais. As variantes com maior teor de ferro, incluindo as pelotas, ficam com 15%. As mais pobres, abaixo do Fe62, só 10%.

O que a Vale faz, então, é misturar parte do nobre Fe65 de Carajás com o plebeu Fe58 do Sul/Sudeste para produzir Fe62. A mineradora chama esse produto de “BRBF” (Brazilian Blend Fines).  

E a fatia do BRBF vem crescendo nas exportações da Vale. Por um motivo simples: a crise no mercado imobiliário chinês. Com menos prédios subindo, as siderúrgicas vendem menos aço, e o caixa delas míngua.

O Fe62 requer mais coque para se transformar em aço. Só que uma siderúrgica com o caixa apertado tende a aceitar um custo operacional maior para poupar na hora da compra do minério. Se o preço do coque estiver baixo, mais ainda. E é o que está acontecendo. A cotação do combustível caiu 30% desde o início de 2024.

Parte do complexo de Carajás (PA), a maior fonte de minério nobre do planeta

Essa conjunção astral amassou a demanda por minério nobre. No primeiro trimestre de 2025, a venda de BRBF aumentou 40%. E essa variante respondeu por mais da metade da produção de minério da Vale. A venda de minério mais barato que o Fe62 cresceu também: 10% em relação ao ano passado. 

Do outro lado, as vendas de Fe65 caíram 51%; as de pelotas, o produto mais nobre do mercado, em 19%, Juntas, elas recuaram para cerca de 20% de tudo o que a Vale vendeu no trimestre, contra um terço no mesmo período do ano passado. 

Diante desse cenário, a Vale anunciou em julho que vai reduzir a produção de pelotas para 31 a 35 milhões de toneladas, contra até 42 milhões antes. 

O que nos traz de volta a Simandou. Se entrar mesmo em operação neste ano, a mina da Guiné vai pegar o mercado de minérios nobres empobrecido – uma situação que pode perdurar por anos. Não é a melhor notícia para a Rio Tinto. 

Mas não é isso que melhora as perspectivas para a Vale. A chegada de um novo player no mercado de minério nobre pode fazer tudo, menos empurrar os preços para cima. 

Neste ano, com a crise de demanda na China, o prêmio pelo Fe65 já caiu 40%, de US$ 14,1 por tonelada para US$ 8,5. Com Simandou entrando em operação forma-se uma tempestade perfeita para uma redução ainda maior nesse bônus.    

Quando a Vale quis Simandou para chamar de sua

A Vale, diga-se, sempre soube que a mina da Guiné seria uma pedra em seu sapato. Tanto que já tentou incluir Simandou em seu portfólio de ativos. Em abril de 2010, na gestão Roger Agnelli, a Vale comprou os direitos de exploração de 51% da mina. O movimento era um pet project do então CEO, que sonhava em criar uma “nova Carajás” na África, mais perto do grande cliente, a China.   

Não faltavam objeções dentro da própria Vale. Tirar Simandou do zero significava construir um porto para escoar o minério, mais 640 km de ferrovia para levar o Fe65 da mina até o mar. Tudo isso sob a corrupção endêmica do governo da Guiné. 

Quando Agnelli sai da Vale, em 2011, a ideia começou a arrefecer. E em 2014, sob o comando de Murilo Ferreira, a mineradora desistiu de Simandou. Passou a concentrar seus esforços financeiros na ampliação do complexo de Carajás – que já tem a estrutura de escoamento em operação desde 1985, com 892 quilômetros da Estrada de Ferro Carajás levando o minério do interior do Pará até o porto de Itaqui, em São Luís do Maranhão.     

Essa ampliação foi o desenvolvimento do bloco S11D, na parte sul da Serra de Carajás. Ele estava inexplorado quando Agnelli voltou os olhos para Simandou. Em 2016, vieram as primeiras extrações. Em 2018, já eram 55 milhões de toneladas por ano saindo do S11D. No ano passado, o recorde: 77 milhões. Ou seja, 40% da produção de Carajás veio de lá.

O objetivo da Vale é elevar a produção do S11D a 120 milhões de toneladas por ano, o mesmo potencial de Simandou. Tudo isso com menos investimento em logística – e em remédio para dor de cabeça – do que a empresa teria para produzir na Guiné. Impossível dizer que foi uma má decisão.  


Agradecimento:  Rafael Marchi, diretor-executivo para infraestrutura da Alvarez & Marsal Brasil