Fundada há 161 anos na Alemanha, a Bayer é responsável por alguns dos produtos mais conhecidos da história da indústria farmacêutica — da icônica Aspirina ao contraceptivo intrauterino Mirena. No campo, sua presença é ainda mais notável: o glifosato, princípio ativo do herbicida Roundup, transformou práticas agrícolas ao redor do mundo.
A frase publicitária “Se é Bayer, é bom”, cunhada há décadas, ainda reverbera entre consumidores.
Mas atrás do slogan memorável e de produtos que há décadas habitam farmácias e campos em todo o mundo está uma companhia pressionada por litígios, dívidas, protestos de investidores e que passa por uma das maiores reestruturações de sua história.
Mesmo com atuação global em saúde, nutrição e agricultura, a Bayer tem amargado prejuízos bilionários e viu seu valor de mercado derreter 80% desde a ruidosa compra da Monsanto, em 2018. A aquisição colocou o popular RoundUp no catálogo da Bayer – e resultou em indenizações bilionárias que alimentam a indústria de litígios nos Estados Unidos. Lá, tribunais têm ligado a manipulação do glifosato a diagnósticos de câncer – o que a Bayer nega. A Agência de Proteção Ambiental dos EUA diz não haver evidências de que o glifosato cause câncer em humanos.
Em um dos casos, julgado em 2024, um júri da Pensilvânia determinou o pagamento de US$ 2,25 bilhões e concluiu que a Monsanto “foi negligente e não alertou sobre os perigos” do herbicida que hoje pertence à Bayer.
Esse contraste entre a imagem consolidada da gigante alemã e sua realidade atual revela o tamanho da crise enfrentada pela Bayer.
Os resultados financeiros dos últimos anos ajudam a entender o desafio: a companhia teve perdas líquidas de € 2,55 bilhões em 2024, após prejuízo de €2,94 bilhões em 2023. A receita ficou em €46,6 bilhões, queda de 2,2%.
Sob a liderança do CEO Bill Anderson, a empresa tenta, ao mesmo tempo, lidar com o impacto financeiro de litígios bilionários, reorganizar sua estrutura e sustentar um portfólio pressionado por concorrência e custos regulatórios. O dividendo por ação despencou de € 2,40, em 2022, para apenas € 0,11 em 2024 — uma queda de 95% e que representa a tentativa de preservar caixa frente aos custos judiciais e operacionais.
A Bayer se divide em três frentes: Crop Science (agronegócio), Pharmaceuticals (medicamentos prescritos) e Consumer Health (produtos de prateleira, como analgésicos e vitaminas).
No Brasil, onde é uma das líderes no agronegócio, o cenário ilustra tanto a força quanto a vulnerabilidade do modelo da Bayer: uma base sólida em biotecnologia e sementes de soja, mas também exposição significativa a produtos como o glifosato.
O portfólio da empresa no país inclui a semente Intacta2 Xtend (RR3), que já alcança 30% de toda a área de soja plantada no Brasil.
A Bayer tem também uma posição sólida em pesticidas, mas os tempos são outros: cresce a concorrência com genéricos vindos Ásia – principalmente Índia e China –, os preços do glifosato caíram e o modelo de negócios baseado em barter — que consiste na venda de insumos agrícolas com pagamento em grãos colhidos no futuro — começa a ser pressionado por margens mais estreitas e riscos regulatórios.
Procurada pelo InvestNews, a Bayer Brasil não destacou um porta-voz para comentar os temas abordados nesta reportagem.
O peso da Monsanto
“O mercado de proteção de cultivos está em declínio acentuado, com mais e mais genéricos vindo da Ásia”, reconheceu Bill Anderson, CEO global da Bayer, durante a assembleia anual de acionistas realizada em abril de 2025. Em um dos momentos mais dramáticos de seu discurso, ele admitiu que a empresa se aproxima de um ponto em que pode ser forçada a interromper as vendas de glifosato, ingrediente ativo do herbicida Roundup — o mesmo que rendeu à companhia 67 mil processos judiciais nos Estados Unidos, herança direta da aquisição da Monsanto.
A empresa já desembolsou mais de US$ 11 bilhões em acordos judiciais e agora tenta levar o debate à Suprema Corte dos EUA, em busca de um entendimento nacional sobre os limites da responsabilidade civil relacionada ao glifosato. Ao mesmo tempo, procura apoio legislativo em estados como Dakota do Norte e Geórgia, enquanto avalia encerrar a produção do produto em sua planta de Louisiana.
A compra da Monsanto, fechada em 2018 por US$ 63 bilhões, foi uma das maiores da história da indústria química. A aquisição fez da Bayer uma companhia muito mais endividada do que antes dela, um legado que o conglomerado alemão ainda carrega no balanço. O negócio ainda eliminou a marca original e transferiu à Bayer todos os seus ativos e passivos. Tornou-se um fardo.
Desde então, a Bayer perdeu mais de 80% do seu valor de mercado.
‘Pay the Bill‘
Nesse contexto, Bill Anderson virou o centro das atenções. Ex-Roche e Genentech, o executivo assumiu a Bayer em junho de 2023 com uma missão: acelerar decisões, reduzir burocracia e reorientar a cultura da companhia. Desde então, a Bayer demitiu mais de 11 mil funcionários em todo o mundo, sendo 2 mil só no primeiro trimestre de 2025.
Ele simplificou a estrutura organizacional, cortou metade dos cargos de liderança e transferiu poder de decisão para as equipes mais próximas dos produtos e clientes.
“Hoje, 90% da organização está distribuída entre seis ou sete camadas hierárquicas, com algumas áreas operando com apenas três”, afirmou Anderson durante o encontro com acionistas. Esse modelo de gestão, batizado de “Dynamic Shared Ownership“, propõe a descentralização radical de poder. Os times passam a trabalhar de forma autônoma, com decisões tomadas por quem está mais próximo do cliente, e não mais por hierarquias tradicionais. A lógica, segundo o CEO, é gerar “mais velocidade a menor custo”.
Os primeiros resultados apareceram principalmente na divisão farmacêutica. Em 2025, a Bayer lançou o Bandtra, um anticoagulante voltado à prevenção de eventos trombóticos, e o Elinzanetant, desenvolvido para aliviar sintomas da menopausa. Também ampliou as indicações de dois de seus principais medicamentos: o Kerendia, voltado à proteção renal em pacientes com diabetes tipo 2, e o Nubeqa, indicado para diferentes estágios do câncer de próstata.
A unidade de Pharma respondeu por 39,1% da receita da Bayer no ano passado, e o bom desempenho no primeiro trimestre de 2025 animou o mercado: a divulgação do balanço fez as ações da companhia subirem mais de 11%.
Já a divisão de agronegócio, que representa a maior parte da receita da Bayer, as vendas caíram 3,3% na comparação anual.
Ainda assim, Anderson preferiu manter a previsão financeira para o ano, citando riscos macroeconômicos, cambiais e — principalmente — os impactos do contencioso nos EUA.
Há meses, o executivo tenta junto aos acionistas autorização para um possível aumento de capital de até 35%, como forma de preservar o grau de investimento da empresa e enfrentar os custos dos litígios. Quando o assunto foi a público pela primeira vez, dois dias após a divulgação do balanço de 2024, o mercado reagiu mal: as ações caíram 10% e investidores relvantes da Bayer, como Deka Investment e Union Investment, protestaram.
“Os resultados de Anderson até aqui são desastrosos”, disse Ingo Speich, diretor de governança da Deka, em entrevista à Bloomberg publicada em abril. As críticas também miraram em uma suposta falta de sinergias reais entre os negócios de sementes e pesticidas — outra herança da Monsanto. “A Bayer virou uma casa em chamas”, disse um analista ouvido pela reportagem da Bloomberg. “É um gigante que virou anão. Um monte de cacos de vidro.”
A tentativa de reinvenção
Enquanto tenta equilibrar inovação e contenção de danos, a Bayer atravessa uma transformação profunda. Suas três divisões refletem esse processo: a Consumer Health, responsável por 12,7% da receita, busca crescer em mercados emergentes; a Pharmaceuticals teve desempenho acima do esperado no início de 2025, puxada por novos medicamentos; e a Crop Science segue no centro dos esforços de reestruturação, ainda sob o impacto da compra da Monsanto.
O foco estratégico está dividido entre o agro em crise e as promessas da medicina. “Temos cinco prioridades claras: crescer com inovação, conter litígios, gerar caixa, restaurar a lucratividade no agro e construir uma organização enxuta”, afirmou o CEO Bill Anderson.
Em 2024, a empresa investiu €5,8 bilhões em pesquisa e desenvolvimento, priorizando novos tratamentos cardiovasculares e para menopausa, além de sementes de nova geração, defensivos menos agressivos — como o fungicida Iblon e herbicidas com menor residual ambiental —, além de tecnologias digitais como a plataforma FieldView, que coleta dados em tempo real para orientar decisões no plantio e no manejo das lavouras.
A Bayer projeta € 3,5 bilhões em vendas incrementais no agro até 2029, mas o futuro ainda é incerto. Parte do mercado pressiona por uma cisão, separando o braço farmacêutico do agrícola, enquanto a direção insiste na reestruturação como caminho.
O plano passa por corte de custos, descentralização e inovação — medidas ambiciosas que ainda enfrentam resistências internas, ceticismo externo e um passivo jurídico bilionário. A Bayer caminha por um terreno instável e precisa provar que será capaz de se reconectar com sua reputação e com o mercado.