A Temu chegou ao Brasil com uma ambição clara: transformar radicalmente o mercado de e-commerce – que, diga-se de passagem, já vinha em plena revolução desde a pandemia. Em apenas doze meses, o aplicativo chinês, controlado pela gigante misteriosa PDD Holdings, tornou-se o segundo maior marketplace do país em número de usuários, superando Amazon e Shopee, e ameaçando a hegemonia do Mercado Livre.
Em maio, o site da Temu recebeu 250 milhões de acessos no Brasil, de acordo com a agência digital Conversion. Foi o líder nesta métrica pela primeira vez. No Android, o aplicativo da Temu lidera a categoria “compras”; no iOS, briga cabeça a cabeça com a Shein.
“Eles apostam tudo em gamificação, políticas agressivas de troca e devolução, e iniciam [as operações em novos mercados] sempre pelo cross‑border. A ideia é criar uma robusta base de clientes acostumados a comprar diretamente do fabricante chinês antes de erguer a operação local”, explica Alberto Serrentino, especialista em varejo e sócio‑fundador da consultoria Varese Retail.
Seu apelo é direto: frete grátis, produtos por preços irrisórios, visual colorido, navegação viciante apoiada em joguinhos que induzem o consumidor a ficar mais tempo ali, enchendo o carrinho. É compra, mas tem carinha de bet.
“Eu não acredito que a gamificação se aplique a todo tipo de cliente aqui do Brasil e que funcione com a mesma eficiência que na Ásia – mas em especial com público brasileiro jovem, essa estratégia tem um apelo forte e permite diminuir o custo de aquisição de clientes”, afirma Serrentino.
Por trás da explosão está uma empresa que, embora tenha sede legal em Dublin, opera com lógica e controle típicos da China — e cujas estratégias, modelo de negócios e estrutura societária permanecem envoltos em mistério: a PDD Holdings.
Controladora da Temu e de sua versão chinesa, o Pinduoduo, a PDD Holdings criou uma operação global a partir do zero – e fez isso em só três anos. Ela a sustentou com bilhões de dólares em perdas, subsidiando fretes, promoções e anúncios, enquanto coleta dados em massa e testa o limite da regulação em cada país onde desembarca.
A receita da Temu
O motor da Temu é um modelo de negócio conhecido como consumer‑to‑manufacturer (C2M). O aplicativo cruza buscas, curtidas e carrinhos para prever tendência de demanda em tempo real. Com esses dados, encomenda lotes mínimos a fábricas chinesas, que topam margens inferiores às praticadas em marketplaces tradicionais. Em troca, a plataforma ganha acesso direto a consumidores estrangeiros — algo que, até poucos anos atrás, exigiria uma cadeia de distribuição complexa.
Quem paga a conta das “ofertas inacreditáveis” é a própria PDD, que investe pesado em publicidade – a empresa chinesa é uma das principais anunciantes da americanas Meta e Google. A Temu anunciou em dois Super Bowls consecutivos – 2023 e 2024 –, pagando milhões de dólares por inserções de 30 segundos na televisão mais cara do planeta.
Segundo o JPMorgan, o grupo teria investido US$ 1,7 bilhão em publicidade em 2023 e até US$ 3 bilhões ao longo de 2024. O prejuízo por pedido entregue fora da China pode variar de US$ 7 a US$ 30, de acordo com o Morgan Stanley. A lógica por trás disso? Ganhar escala o mais rápido possível, mesmo à custa de perdas – (mais sobre isso adiante).
A estratégia é amplificada pela gamificação: cupons rotativos, recompensas por indicação, temporizadores e roletas de desconto transformam o ato de comprar em um jogo. A experiência torna-se quase viciante e impulsiona o engajamento na site e no aplicativo.
Ricardo Pastore, professor e coordenador do Núcleo de Varejo da ESPM, acrescenta que o sucesso da Temu se apoia na própria lógica de entretenimento que mantém o usuário em looping e a “oferta inédita” ― produtos importados que, em um país tradicionalmente fechado como o nosso, soam quase exóticos.
Quando o consumidor brasileiro se depara com um gadget que custaria o triplo numa loja local ― ou que ele nem sabia que existia ― o engajamento explode.
Pastore também observa que os preços muito baixos geram desconfiança quanto à qualidade ou à precisão das medidas dos produtos. Ainda assim, a mecânica de gamificação — com cupons, recompensas e interação constante — constrói uma experiência em que frustrações pontuais são “compensadas” por outras compras bem-sucedidas. “No balanço, o usuário sente que a experiência compensa e volta a jogar”, resume.
No Reclame Aqui, a Temu tem nota 4,8 (vai até 10) e a reputação está avaliada como “não recomendada”.
Tudo isso é sustentado por um algoritmo que parece estar anos-luz à frente dos tradicionais concorrentes brasileiros. A Temu mede reações em tempo real, ajusta estoques e preços dinamicamente, e oferece cupons personalizados para converter indecisos. Tudo é monitorado: tempo na página, hesitação no clique, taxa de abandono. É o e-commerce levado ao extremo da eficiência algorítmica.
Brasil, a nova linha de frente
Se nos EUA a operação começa a enfrentar desgaste após o fim das isenções para encomendas de até US$ 800, no Brasil o cenário é outro. Desde sua chegada em junho de 2024, a Temu cresceu de forma acelerada e seu avanço gerou uma resposta rápida dos concorrentes.
O Mercado Livre ampliou os subsídios de frete grátis para itens de baixo valor; a Amazon reduziu comissões para sellers de roupas baratas; Magalu passou a destacar “achadinhos” em suas vitrines digitais. Todas intensificaram campanhas de entrega rápida e garantia local — justamente os pontos onde a Temu ainda não consegue competir. Mas o cerco é real: ao operar com prejuízo e investir pesado em tráfego, a Temu encarece a aquisição de usuários para todo o setor.
“A chegada da Temu reorganiza as regras competitivas”, avalia Serrentino. “Empresas que já operavam com margens apertadas precisam buscar diferenciais além do preço. Ter logística nacional, serviço ao cliente e credibilidade ganha relevância.”
“No Brasil, eles vão brigar muito de frente com o Shopee e com a Shein. Principalmente com a AliExpress também, que tem toda a base de cross-border. Então, [os principais competidores da Temu] são os asiáticos, porque têm modelos parecidos com algumas características similares”, projeta o especialista.
A tributação também entrou em cena. Desde agosto de 2024, compras internacionais de até US$ 50 passaram a pagar 20% de imposto — a chamada “taxa das blusinhas”. A medida buscou equilibrar o jogo entre plataformas estrangeiras e o varejo nacional.
Esse é um ponto sensível do app: a informação sobre o imposto a ser pago só aparece no momento em que a compra é fechada. E, muitas vezes, esse custo surpreende o consumidor.
Sede em Dublin, controle em Xangai
A ascensão meteórica da Temu tem um lado opaco. A estrutura societária da PDD Holdings é, segundo analistas, deliberadamente confusa. Oficialmente sediada na Irlanda, a holding segue tomando decisões-chave na China, com conselhos e times executivos sediados em Xangai.
Embora seja uma empresa de capital aberto na Nasdaq, é conhecida entre profissionais do mercado como uma empresa pouco transparente. No caso da Temu, a sede está em Boston, uma resposta ao escrutínio regulatório ocidental sobre empresas chinesas.
Não há dados públicos sobre os resultados financeiros específicos da Temu. Os balanços consolidados da PDD não revelam margens, subsídios ou performance por país. Fundos ouvidos pelo Financial Times reclamam da baixa transparência e comunicação truncada com investidores.
“A escala do Pinduoduo é uma coisa brutal na China. Eles têm uma base ativa de 900 milhões de usuários. São geradores de caixa, dão resultado. É muito difícil saber qual é a agenda da Temu. Se é uma agenda de crescimento e conquista de espaço internacionalmente, pode ser que eles tenham um plano de investimento que preveja sustentar condições agressivas por um tempo para formar base. Mas é muito difícil avaliar isso sem ter os números”, avalia Alberto Serrentino.
A PDD opera por meio de entidades registradas em paraísos fiscais, como Ilhas Cayman, e utiliza estruturas conhecidas como VIEs (Variable Interest Entities), que tornam opaca a relação entre acionistas e os ativos reais da companhia. Isso dificulta o escrutínio regulatório e a responsabilização legal em caso de controvérsias. A holding tampouco possui CFO desde 2023 — e raramente responde a perguntas de analistas em conferências públicas.
Enquanto isso, as preocupações aumentam. Um relatório do Congresso dos EUA classificou a Temu como empresa de risco altíssimo para trabalho forçado, devido à ausência de rastreamento na origem dos produtos. A União Europeia detectou níveis de substâncias tóxicas em brinquedos e louças.
E em março de 2023, o app-irmão Pinduoduo foi removido do Google Play após pesquisadores do Google identificarem versões maliciosas do aplicativo — com comportamento típico de malware, acesso não autorizado a dados e execução de código sem consentimento.
Há ainda o impacto ambiental: encomendas fracionadas, embarcadas por via aérea, com altíssimo volume de resíduos. Críticos falam em “fast everything”, expressão que resume a aceleração do consumo descartável impulsionado por pechinchas diárias.
A Temu afirma seguir regras dos mercados em que atua, diz não se valer de trabalho forçado e que desenvolve sistemas que permitem a ela rastrear a origem dos produtos vendidos em sua plataforma. Apesar de algumas especulações de mercado sobre a busca por rentabilidade em médio prazo, não há planos públicos confirmados ou dados financeiros detalhados que sustentem um cronograma claro de equilíbrio global.
O InvestNews tentou falar com representantes da Temu, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.