Hollywood descobriu Deus bem antes da Netflix. Em 1956, Os Dez Mandamentos, de Cecil B. DeMille, colocou Moisés na tela grande com tanta pompa que Charlton Heston virou ícone bíblico — e também político, mas isso é outro capítulo. O filme custou o equivalente a US$ 155 milhões em valores corrigidos pela inflação, rendeu US$ 1,2 bilhão e virou um clássico da era dos épicos bíblicos.

Mais recentemente, tivemos A Paixão de Cristo (2004), O Céu é de Verdade (2014), Deus Não Está Morto (2014), Quarto de Guerra (2015)… Mas, se antes a fé era exceção no mercado audiovisual, agora virou catálogo.

Segundo a The Economist, que publicou em março um panorama global sobre o tema, o número de filmes religiosos nas plataformas de streaming saltou de cerca de 200 em 2022 para 487 em 2025, somando os catálogos de Netflix, Prime Video e outras gigantes. Somente em 2024, sete novos projetos cristãos foram aprovados por esses serviços – um salto em relação aos anos anteriores, quando praticamente nada desse tipo passava no comitê de orçamento.

The Chosen, por exemplo, foi recusada por todos os estúdios tradicionais antes de ser financiada por crowdfunding – “uma vaquinha”. A produção, que retrata a vida e os milagres de Jesus Cristo, já soma 280 milhões de visualizações globais e já entrou no catálogo da Netflix. No Brasil, a série foi exibida pelo SBT em horário nobre — a primeira TV aberta do mundo a fazer isso, segundo o canal.

De acordo com a Associação Brasileira de Empresas e Profissionais Evangélicos (Abrepe), o setor do entretenimento cristão movimenta R$ 21,5 bilhões no Brasil – o dado é de 2022, o mais recente disponível – e gera até dois milhões de empregos diretos e indiretos.

Boa parte dessa força vem da TV. A Record, controlada pela Igreja Universal do Reino de Deus, consolidou as novelas bíblicas como carro-chefe da emissora. A virada aconteceu em 2015, quando Os Dez Mandamentos cravou 28 pontos no Ibope na Grande SP com a cena da abertura do Mar Vermelho. No cinema, o filme derivado da novela levou 11,3 milhões de pessoas aos cinemas, segundo a Ancine. Um marco para o audiovisual brasileiro — e um susto para a Globo Filmes.

No SBT, o movimento foi mais tímido, mas não menos calculado. Com Daniela Beyruti, evangélica, à frente da presidência da emissora, o canal tem se aproximado discretamente do público cristão. Exibir The Chosen foi um gesto estratégico: ocupou o horário pós-novela da Globo e colou o selo de “programação família” que agrada a uma parte crescente da população.

Fé no fone

Se a TV mostrou o potencial do conteúdo cristão, o streaming e os podcasts provaram que a demanda não é episódica — é diária.

Em 2024, o podcast Café com Deus Pai, do pastor Junior Rostirola, se tornou o mais ouvido do Brasil no Spotify, segundo o ranking da própria plataforma. São mais de 3 milhões de seguidores e episódios que ultrapassam os 200 mil plays diários.

Não é um caso isolado. Podcasts como Metanoia, Irmãos.com e os conteúdos como o de Frei Gilson no YouTube mostram que tanto evangélicos quanto católicos têm construído seus próprios ecossistemas de mídia digital.

Junior Rostirola, do podcast ‘Café com Deus pai’. Foto: Divulgação

No YouTube, o gospel foi o gênero musical mais buscado em várias regiões brasileiras em 2023, de acordo com o relatório anual da própria plataforma. O estilo também cresceu 46% em ouvintes no Spotify no mesmo ano.

Multiplicação de plataformas

Não é que o conteúdo cristão não existia antes. O que mudou foi o ambiente.

De um lado, a multiplicação de plataformas — Netflix, Prime Video, YouTube, Spotify, Instagram, podcasts — reduziu a dependência de um grande estúdio ou emissora. Hoje, é possível escalar um conteúdo cristão por meio de comunidades digitais ativas. Os produtores de The Chosen, por exemplo, mantêm um app gratuito com episódios legendados.

Do outro, há uma mudança demográfica real: a população evangélica no Brasil passou de 9% em 1991 para mais de 31% em 2022, segundo o Censo do IBGE. E as projeções indicam que, até 2030, os evangélicos podem ultrapassar os católicos como o maior grupo religioso do país.

Esse público consome conteúdo com valores específicos e quer se ver representado — seja numa novela bíblica, num devocional de cinco minutos ou num podcast de fé com linguagem moderna. Para as plataformas, é o melhor dos mundos: uma base fiel (literalmente), com alto engajamento e consumo recorrente.

Não são só os evangélicos. Cada vez mais grupos católicos focam nas novas mídias como estratégia de evangelização.

A Canção Nova, comunidade católica conhecida por seu canal de TV, também se transformou em uma operação multiplataforma com forte presença no YouTube, Spotify e eventos ao vivo. Já a Comunidade Católica Shalom, um grande grupo de eventos religiosos com sede em Fortaleza (CE), produz conteúdos com músicas, pregações e lives, especialmente voltados aos mais jovens.

A fé sempre foi um bom enredo. O que mudou foi o formato — e a percepção de que conteúdo cristão pode ser, sim, entretenimento de massa, uma aposta de quem busca audiência estável num mar de algoritmos voláteis. E, no caso das tramas bíblicas, há ainda a vantagem de não ter de pagar direitos autorais.

O Brasil está na linha de frente desse movimento. Com milhões de fiéis, produtoras especializadas e um público cada vez mais online, o país é simultaneamente consumidor e exportador desse novo tipo de storytelling.

Dá pra dizer que a fé virou mercado? Sim. Mas talvez seja mais preciso dizer que ela virou plataforma. E engajamento. Ter seguidores, afinal, nunca foi tão importante.