Em Hong Kong, um dos países com a menor taxa de fertilidade do planeta, muitas pessoas em busca de ter filhos via fertilização in vitro estão sendo proibidas por regras rígidas demais, e acabam precisando sair do país ou recorrendo ao mercado negro.

Uma mulher em Hong Kong teve que viajar para dois países diferentes para tentar conceber um bebê por conta própria. Um casal gay na cidade recorreu a extremos ainda maiores: proibidos de usar barrigas de aluguel, eles se voltaram para alternativas ilegais no continente chinês para ter seu primeiro filho.

Enquanto isso, o país tenta incentivar mais famílias a engravidarem. Em menos de um ano, Hong Kong distribuiu US$ 67 milhões em “bônus” (cerca de US$ 2.500 para quem tiver um bebê). Há legisladores sugerindo até que escritórios governamentais pendurem fotos de bebês para encorajar a formação de famílias. Segundo a ONU, a taxa atual de fertilidade em Hong Kong é de 0,8, uma das mais baixas do mundo, junto com a Coreia do Sul.

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Limites para a barriga de aluguel

Como grande parte da Ásia (assim como no Brasil), Hong Kong proíbe a barriga de aluguel com fins lucrativos.

Mas o país também restringe o acesso a qualquer tratamento que envolva fertilização de óvulos a casais heterossexuais, casados e inférteis — excluindo pessoas solteiras e a comunidade LGBTQ. Embora a FIV (fertilização in vitro) contribua com apenas 4% a 5% dos nascimentos totais da cidade a cada ano, a questão está emergindo como um problema tanto de igualdade quanto econômico para um dos principais centros financeiros do mundo.

“Cada bebê conta. Cada bebê adicional que nasce será alguém que vai contribuir para a economia por meio de seus impostos, de seus salários, fazendo parte dessa força de trabalho”, disse Emily Tiemann, gerente de política de saúde do think tank Economist Impact em Nova York.

Legisladores em alguns países estão buscando liberalizar suas regras de tratamentos de fertilidade e “as taxas de natalidade ultra-baixas estão contribuindo para essa discussão”, afirmou ela.

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‘Turismo da fertilidade’

Enquanto isso, fóruns online estão inundados de informações de casais de Hong Kong e mulheres solteiras sobre destinos alternativos para tratamentos de infertilidade, com algumas clínicas e hospitais licenciados oferecendo assistência para viagens de pacientes estrangeiros. Serviços semelhantes a aplicativos de namoro também surgiram para conectar mulheres solteiras com doadores de esperma no exterior. Corretoras do mercado negro para doadoras de óvulos e barrigas de aluguel estão aproveitando a alta demanda pelo negócio.

As regras de Hong Kong sobre quem pode acessar tratamentos de fertilidade são “completamente ultrapassadas”, disse Winnie Chow, co-fundadora do escritório de advocacia CRB e que anteriormente serviu em um conselho que supervisiona as clínicas de FIV da cidade. Ela disse que isso é uma razão pela qual algumas pessoas se mudam.

“Há, de fato, um descompasso em tantos aspectos ao reconhecer o que pode ser uma estrutura familiar hoje em dia em Hong Kong moderna”, disse ela. “Então, se você fala sobre atrair talentos de alto nível, você pode simplesmente estar perdendo uma grande quantidade deles apenas por não conseguir reconhecê-los como uma unidade familiar.”

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Regras locais para a fertilização in vitro

Uma mulher de Hong Kong, que pediu para não ser identificada por medo de repercussões legais, congelou seus óvulos na Tailândia no final dos seus 30 anos.

Hong Kong impõe um limite de 10 anos para o armazenamento de óvulos, embriões e espermatozoides antes de serem descartados, o que significa que pessoas solteiras precisam encontrar um parceiro nesse período para acessar seus óvulos. A Tailândia não tinha tal restrição na época e os procedimentos eram uma fração do custo.

Quatro anos depois, a mulher recebeu a notícia devastadora: dois casos controversos de barriga de aluguel causaram tumulto na Tailândia e levaram o governo a proibir estrangeiros de usarem surrogatas tailandesas — e também proibiram mulheres solteiras de congelar seus óvulos ou realizar FIV. A clínica deu a ela opções, incluindo transportar seus óvulos congelados para uma clínica no Camboja de moto ou realizar uma FIV não oficial se ela pudesse apresentar um doador de esperma. Ela encontrou um que não atendia aos termos da clínica tailandesa, levando-a a se voltar para Mumbai, onde outra tentativa falhou.

Anos depois, ela se casou com um homem nascido em Hong Kong e teve um filho aos 44 anos. Seu primeiro lote de óvulos, agora livremente acessíveis para ela como mulher casada, ainda está armazenado na Tailândia. Ela disse que gostaria que houvesse menos estigma em torno de ser uma mãe solteira por escolha.

Segundo o escritório de advocacia CRB, a legislação de Hong Kong pune pessoas solteiras por realizarem tratamentos de infertilidade no exterior. Em resposta à Bloomberg, porém, o governo de Hong Kong negou a informação. “O regulamento não menciona nada sobre regular tratamentos de infertilidade realizados fora de Hong Kong, ou restringir/punir casados ou solteiros por buscarem tratamentos de infertilidade no exterior”, disse o Secretário de Saúde Lo Chung-mau, em um comunicado à agência.

Regras rígidas para a fertilização in vitro em Hong Kong acabaram se tornando um problema de economia e desigualdade. Foto: BSIP/Universal Images Group Editorial/Getty Images

Oportunidade desperdiçada

Nixie Lam, legisladora que está lutando para tornar os tratamentos de infertilidade mais acessíveis para casais e expandir seu uso para mulheres solteiras, disse que Hong Kong pode estar perdendo uma oportunidade de se tornar um centro de FIV, com clínicas de classe mundial e médicos altamente treinados.

Ela sugeriu atrair pacientes estrangeiros e cobrar um valor premium, o que poderia ajudar a financiar outras políticas de incentivo à natalidade de Hong Kong.

Lam, que gastou quase US$ 26 mil para ter seu primeiro filho por FIV, disse que o custo é um fator importante que impede as pessoas de buscarem tratamentos de fertilidade. Mas as pessoas também escolhem ir para outros lugares devido ao limite de 10 anos para o congelamento de óvulos.

“Se você congela aos 25, precisa encontrar um marido antes dos 35 para usar os óvulos”, disse ela. “Isso é um cronograma muito apertado para qualquer tipo de planejamento de vida.”

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Comunidade LGBTQ de fora

Os legisladores de Hong Kong têm debatido a flexibilização de algumas regras, incluindo a extensão do número de anos para uma mulher solteira manter seus óvulos congelados. O legislativo está preparando uma medida que ofereceria um crédito fiscal de cerca de US$ 13 mil por ano para tratamentos de infertilidade, numa cidade onde apenas um ciclo de FIV pode custar mais do que isso.

Mas os serviços de FIV e barriga de aluguel ainda estariam disponíveis apenas para casais heterossexuais. Hong Kong tem uma população LGBTQ estimada em 419 mil pessoas com um potencial de gasto de US$ 20 bilhões, de acordo com dados compilados pelo consultor de investimentos LGBT Capital.

Um homem gay canadense que vive na cidade disse que ele e seu marido, nascido em Hong Kong, acharam “impossível” ter um bebê e recorreram a serviços do mercado negro no continente chinês, onde uniões do mesmo sexo e barriga de aluguel são ilegais, e mulheres solteiras não podem nem mesmo congelar seus óvulos.

O canadense disse que eles trabalharam com uma agência para encontrar uma doadora de óvulos, depois uma barriga de aluguel no mercado negro e, finalmente, uma mulher que se passaria pela mãe na certidão de nascimento. Apenas um dos pais estava presente no nascimento, para evitar suspeitas ou escrutínio.

O casal teve que ir ao tribunal com a mãe registrada no papel para que ela renunciasse a todos os direitos parentais. O homem canadense estima que eles gastaram até US$110.000 para trazer seu filho ao mundo, quase esgotando suas economias.

Eles tiveram outro filho posteriormente no Canadá, com a irmã dele como barriga de aluguel. Com generosos subsídios governamentais de saúde e seguro, o nascimento do segundo filho custou cerca de US$ 14.000.

Riscos jurídicos

Chow, a advogada, disse que há “riscos enormes” para casais que realizam procedimentos legais de infertilidade em outros países, apenas para descobrir que não têm direitos parentais legais em Hong Kong.

Ela disse que processos judiciais recentes em Hong Kong começaram a expandir os limites das regras da cidade. Um casal lésbico da África do Sul ganhou em agosto o direito de ser reconhecido como pais iguais de seu bebê. E uma decisão histórica do tribunal em 2018 permitiu que parceiros do mesmo sexo de trabalhadores baseados em Hong Kong solicitassem vistos de dependente. Em dezembro, o tribunal superior de Hong Kong confirmou decisões que garantem direitos de habitação pública e herança para casais do mesmo sexo casados.

Ainda assim, as taxas de fertilidade ultra-baixas marcam uma “zona de desastre” para algumas economias, disse Tiemann, do think tank Economist Impact.

“Além da economia, há também o impacto no bem-estar pessoal de apenas permitir que as pessoas tenham a família que desejam”, disse ela. “É apenas uma forma de ter um pouco mais de igualdade também nas políticas.”