Poucas mudanças provocadas pelo segundo mandato do presidente Trump poderiam ser tão impactantes para a Europa quanto a decisão da Alemanha de abandonar a austeridade fiscal para fortalecer suas forças armadas e modernizar sua economia.

Em uma coletiva de imprensa convocada às pressas na noite de terça-feira (4) em Berlim, Friedrich Merz, que está na fila para se tornar o próximo chanceler da Alemanha, anunciou uma ruptura com uma postura que governou as relações do país com seus parceiros europeus por décadas.

A partir de agora, as famosas regras fiscais rigorosas da Alemanha não se aplicarão mais aos gastos militares, disse Merz.

“Diante das ameaças à nossa liberdade e à paz em nosso continente, devemos fazer o que for necessário”, afirmou Merz. Ele acrescentou que o país precisa se rearmar e, para isso, precisa reconstruir sua força econômica.

Devido à sua escala e natureza ilimitada, essa onda de gastos representa uma ruptura com décadas de ortodoxia fiscal. Influenciada pela hiperinflação dos anos 1920, que levou à ascensão de Adolf Hitler, pela depressão dos anos 1930 ou pela crise da dívida da zona do euro na década de 2010, gerações de governantes alemães enfatizaram a importância de finanças públicas sólidas e estabilidade econômica, incorporando a frugalidade à psique nacional.

Os anúncios combinados marcaram o momento em que a Alemanha mais se aproximou de reinventar seu modelo econômico dependente de exportações, que enfrenta dificuldades, ao impulsionar a demanda doméstica para compensar o comércio internacional fraco e a demanda global morna por produtos alemães.

Se aprovada, a mudança fiscal pode permitir que os vizinhos da Alemanha aumentem seus próprios gastos militares, como Trump insiste que façam. Também pode estimular a economia da região. A lista de compras militares de Berlim, em particular, pode beneficiar empresas em toda a região.

“A Alemanha e seus parceiros europeus estão cientes de que isso não é um exercício de simulação”, disse Sudha David-Wilp, vice-presidente de relações externas do German Marshall Fund dos Estados Unidos. “A movimentação de Merz… teria sido considerada radical há seis meses, mas agora é esperada e necessária.”

Ao iniciar uma reaproximação com o presidente russo Vladimir Putin, considerado por muitos líderes europeus como a maior ameaça ao continente, Trump convenceu os europeus de que teriam que cuidar de sua própria segurança — e investir dinheiro real nisso.

Isso representou um desafio particular à Alemanha. O país há muito busca liderar pelo exemplo na Europa, contendo seus próprios gastos públicos para inspirar e coagir seus vizinhos a fazer o mesmo.

Um dos defensores mais vocal das regras fiscais da Alemanha foi o próprio Merz. Embora ele tenha deixado a porta aberta durante sua campanha eleitoral para alguns ajustes nas regras, que estão consagradas na constituição, economistas disseram que o acordado desta semana é algo completamente diferente.

“Isso é muito mais do que uma reforma”, disse Dirk Schumacher, chefe de economia europeia do banco francês Natixis. “Se seu governo vai ser um sucesso, parece que Merz decidiu que dinheiro para gastar seria um ingrediente necessário.”

Ainda há grandes questões sobre o anúncio. A isenção das regras fiscais e o fundo de infraestrutura são emendas constitucionais, e não há garantia de que possam garantir a maioria de dois terços necessária no parlamento. Merz e seus futuros parceiros de coalizão ainda precisam decidir quanto querem aumentar os gastos militares.

Economicamente, a Alemanha será provavelmente a principal beneficiária. Após anos de frugalidade, o país tem uma das dívidas públicas mais baixas da Europa como porcentagem do PIB. Mas, o subinvestimento crônico também deixou o país com um sistema ferroviário pouco confiável, redes móveis irregulares, uma rede elétrica envelhecida e uma administração pública presa à era do papel.

O índice de ações blue-chip da Alemanha subiu mais de 3% para um nível próximo ao recorde na quarta-feira (5). A capitalização de mercado da Rheinmetall, uma empresa de defesa sediada em Düsseldorf com cerca de 30 mil funcionários, disparou recentemente para mais de €50 bilhões, equivalentes a cerca de US$ 53 bilhões. Isso se aproxima do valor da Volkswagen, cuja força de trabalho é 20 vezes maior.

A capitalização de mercado da empresa de defesa Rheinmetall, sediada em Düsseldorf, disparou nos últimos dias. Foto: Reprodução/ X

Os títulos públicos tiveram seu pior dia desde os anos 1990, à medida que os investidores anteciparam um aumento na emissão de dívida. O rendimento dos títulos de 10 anos subiu cerca de 0,29 ponto percentual para 2,79% — os rendimentos sobem quando os preços caem.

Apesar da venda, a maioria dos economistas acredita que a Alemanha tem margem confortável para tomar empréstimos devido à sua baixa dívida. Mas, custos de financiamento mais altos podem dificultar que países europeus mais endividados aumentem suas compras militares.

Jens Südekum, professor de economia internacional da Universidade Heinrich-Heine em Düsseldorf, foi um dos quatro economistas que elaboraram um plano secreto para o futuro governo de Merz e seus parceiros de negociação sobre gastos com defesa e investimentos.

Uma simulação que realizaram mostrou um multiplicador de 1,5 para investimentos em infraestrutura, o que significa que o fundo de €500 bilhões poderia se transformar em €750 bilhões de PIB adicional até 2035, com pouca pressão inflacionária, explicou Südekum.

Até lá, a relação dívida/PIB da Alemanha poderia ser 10 pontos percentuais mais alta do que seria de outra forma, acrescentou ele. “Mas talvez esse seja um preço que vale a pena pagar por um país mais seguro e habitável.”

Vários economistas do setor privado aumentaram suas metas de crescimento para a Alemanha na quarta-feira. A Morgan Stanley disse que os pacotes combinados de defesa e investimentos poderiam valer mais de €1 trilhão. A taxa de crescimento anual da Alemanha poderia subir para entre 1,5% e 2% a partir de 2027, em comparação com uma trajetória de crescimento anterior próxima de zero, de acordo com o Bank of America.

Distribuídos ao longo de 10 anos, os investimentos extras em infraestrutura valeriam cerca de €50 bilhões por ano. Calculando de forma conservadora, Schumacher disse que isso deveria impulsionar o crescimento do PIB em 1 ponto percentual anualmente.

Ao aumentar a taxa de crescimento potencial da economia, a modernização da infraestrutura também poderia facilitar o crescimento do país sem medo da inflação.

Maiores gastos do governo geram empregos e gastos das famílias, levando a maiores receitas fiscais. Isso significa que os gastos adicionais podem, às vezes, se pagar, deixando a dívida do governo praticamente inalterada como porcentagem do PIB.

O próximo governo ainda precisa concordar com um programa completo de política econômica. Retirar os gastos militares futuros e os investimentos em infraestrutura do orçamento regular poderia liberar espaço para os cortes de impostos corporativos e de renda que Merz defendeu em sua campanha.

Há algum desacordo entre economistas sobre como os gastos militares afetam o crescimento ou se eles deslocam os gastos privados. Embora os investimentos em infraestrutura possam se pagar, os benefícios são menos óbvios no caso de equipamentos militares, que funcionam mais como uma apólice de seguro.

Ainda assim, alguns dizem que o impacto pode ser positivo, em parte porque a Alemanha tem capacidade ociosa, como trabalhadores subutilizados ou fábricas inativas. Com sua indústria automotiva cortando empregos, a Alemanha tem muitos trabalhadores qualificados que poderiam fazer uma transição suave para a construção de trens ou tanques. A Rheinmetall concordou no verão passado com a Continental para recrutar trabalhadores redundantes do fornecedor automotivo.

“Se você agora impulsionar o setor industrial, acho que parte dessa capacidade poderia voltar ao mercado”, disse Guntram Wolff, professor de economia da Université Libre de Bruxelles.

Os economistas também acreditam que o setor de defesa da Alemanha pode se tornar uma nova fonte de exportações. Os EUA representaram 42% das exportações militares entre 2019 e 2023, em comparação com apenas 5,6% da Alemanha, de acordo com um relatório recente do Barclays.

Os gastos militares também podem impulsionar o crescimento da produtividade por meio de efeitos indiretos no setor privado. Várias inovações militares, historicamente, foram transferidas para o mundo civil, incluindo a internet e o sistema de posicionamento GPS. O crescimento inicial do Vale do Silício nas décadas de 1950 e 1960 foi amplamente apoiado por investimentos em defesa.

Um aumento temporário nos gastos militares de 1% do PIB poderia aumentar a produtividade de longo prazo em 0,25%, de acordo com um relatório recente do think tank Kiel Institute for the World Economy.

Há riscos também. A economia da Alemanha tem um desemprego relativamente baixo e escassez de trabalhadores qualificados, disse Joerg Kraemer, economista-chefe do Commerzbank em Frankfurt. As empresas podem ter dificuldade em encontrar trabalhadores para grandes projetos, o que poderia levar a inflação e salários mais altos.

“Quando se trata de infraestrutura, será difícil encontrar mão-de-obra”, disse Kraemer.

A maioria concorda, no entanto, que a jogada ousada de Merz tem mais vantagens do que desvantagens, especialmente se fortalecer a confiança econômica em um momento de maior incerteza geopolítica, encorajando investimentos e consumo.

“Há um argumento de investimento de que os gastos militares tornam a Europa mais segura”, disse Jacob Kirkegaard, pesquisador sênior do Peterson Institute for International Economics, “nos libertando da dependência de presidentes americanos cada vez mais imprevisíveis.”

Traduzido do inglês por InvestNews

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