Uma década atrás, a Alemanha era a nação modelo.
Sua economia não apenas resistiu à ascensão da China, mas estava prosperando com ela. Suas finanças públicas equilibradas se destacavam em um mundo de enorme dívida pública. E enquanto os legisladores britânicos e americanos se envolviam em guerras culturais, os políticos alemães continuaram a praticar a arte da concessão.
Hoje, a Alemanha passou de padrão a pária. Seu modelo econômico está quebrado, sua autoconfiança, destruída e seu cenário político, fraturado.
O antigo motor de crescimento da Europa encolheu por dois anos consecutivos, anulando qualquer recuperação ocorrida desde a pandemia de Covid-19. Sua produção industrial caiu cerca de 10% no mesmo período e suas empresas, espremidas entre o aumento dos custos e a queda das exportações, estão cortando milhares de empregos por mês.
Existem causas externas para esse mal-estar, desde a guerra na Ucrânia até o protecionismo dos EUA e a desaceleração econômica da China.
No entanto, alguns analistas, economistas e historiadores acham que Berlim administrou mal sua resposta. O motivo: conservadorismo — definido aqui não como a ideologia política, mas como a preferência pelo status quo e não pela mudança, pela reação e não pela ação e pela cautela em detrimento do risco.
Isso se deve em parte ao sucesso. Enquanto a economia da Alemanha estava crescendo, deixando de lado a crise financeira e a crise da dívida da zona do euro, não havia pressão para corrigir o curso, disse o historiador Timothy Garton Ash, autor de “Homelands”, história da Europa nos últimos 50 anos.
“A Alemanha foi a última a acordar porque estava se saindo melhor”, disse ele. “É uma crítica às elites políticas, empresariais e, até certo ponto, intelectuais, porque teria sido seu papel olhar para o futuro e ver os próximos desafios.”
A criação de uma crise energética
A Alemanha foi pioneira na redução das emissões de CO2. O país promulgou sua primeira lei ambiciosa de energia renovável há um quarto de século e pretende se tornar neutro em gases de efeito estufa até 2045, antes da maioria das outras nações.
Menos conhecido é o pouco sucesso que teve. Embora as emissões tenham caído 60% em 2023 em relação ao nível de 1990, de acordo com o governo, uma queda acentuada naquele ano foi devida à recessão. Hoje, as emissões de CO2 per capita da Alemanha estão acima da média global e da União Europeia, superiores às do Reino Unido e da França e logo abaixo das da China, de acordo com o Our World in Data. Enquanto isso, as famílias alemãs pagavam os preços mais altos da eletricidade na UE no primeiro semestre de 2024, de acordo com estatísticas oficiais do bloco.
Uma razão para esse histórico misto foi a decisão da chanceler Angela Merkel em 2011, após o acidente nuclear de Fukushima, de acelerar a eliminação planejada da energia nuclear. Isso significou que a Alemanha precisava de mais combustível fóssil, incluindo carvão e gás natural russo, no processo de ampliar as energias renováveis.
Os EUA e os aliados europeus alertaram a Alemanha de que a nação estava muito dependente da Rússia. No entanto, Merkel manteve a situação em 2014, quando os russos anexaram a Crimeia. O mesmo fez seu sucessor, Olaf Scholz, quando Moscou invadiu novamente a Ucrânia e começou a estrangular as entregas de gás, elevando os preços e forçando Berlim a reabrir usinas a carvão ociosas.
“O problema com as sociedades de consenso é que às vezes o consenso está errado e, quando está, não há mecanismo de correção”, disse Wolfgang Münchau, autor de “Kaput—The End of the German Miracle”, publicado no final do ano passado. “É o oposto de uma sociedade de denunciantes.”
Após uma curta extensão no uso durante os meses de inverno, as últimas três usinas nucleares da Alemanha foram desligadas em abril de 2023, em meio a uma crise energética que começou a afundar a economia do país.
A indecisão alimenta a migração em massa
Quando Merkel deixou entrar centenas de milhares de requerentes de asilo do Oriente Médio, da Ásia Central e da África presos entre a Grécia e a Hungria em 2015, muitos alemães saudaram a mudança, reunindo-se nas estações de trem para cumprimentar os recém-chegados.
O maior afluxo de pessoas na história da Alemanha do pós-guerra resultou de uma não decisão. Conforme descrito por Robin Alexander, vice-editor do jornal Die Welt, em seu livro de 2017 “Die Getriebenen”, que se traduz como “Os Conduzidos”, as fronteiras da Alemanha já estavam abertas, sob as disposições da área Schengen, que não exige documentação para cruzar fronteiras. À medida que os migrantes se aproximavam, Merkel optou por não os impedir.
Por que? Devido ao risco de que um fechamento fosse contestado no tribunal e de que a polícia precisasse ter de usar a força para proteger as fronteiras.
“A fronteira permaneceu aberta, não porque Angela Merkel deliberadamente decidiu isso, nem qualquer outra pessoa no governo federal”, escreve Alexander. “No momento crucial, simplesmente não havia ninguém disposto a assumir a responsabilidade de fechá-la.”
Para Andreas Rödder, historiador e chefe do Republik21, um think tank conservador em Berlim, “Merkel sempre foi muito boa em sua análise de por que isso não funciona e por que isso é impossível, e ruim em descobrir como tornar as coisas possíveis. Essa é uma atitude alemã, mas também é muito europeia. Os americanos são muito melhores em tentar coisas e ver o que acontece.”
À medida que o humor público azedava com os migrantes, impulsionando a Alternativa para a Alemanha (AfD), de extrema-direita, sucessivos governos fizeram mudanças incrementais nas leis de imigração — com pouco efeito.
O país registrou mais de 250 mil pedidos de asilo no ano passado, menos que em 2023, mas maior do que em qualquer outro ano desde 2016. Hoje, os migrantes são menos propensos a trabalhar do que os alemães e mais propensos a cometer crimes. Só o governo federal gasta 30 bilhões de euros por ano, o equivalente a US$ 31,46 bilhões, em benefícios para refugiados e requerentes de asilo — mais da metade do orçamento de defesa do país.
Para Rödder, a incapacidade da Alemanha de mudar de rumo quando as circunstâncias evoluem, evidente tanto em suas políticas de energia nuclear quanto de imigração, trai o que ele chamou de “uma visão estática do mundo”, que se tornou arraigada desde a reunificação.
Quando a poeira baixou após a queda do Muro de Berlim, disse ele, espalhou-se na Alemanha a sensação de que o mundo também havia atingido um estado estável e que a Alemanha não precisava mais mudar.
Montadoras alemãs desgastadas
Uma década atrás, enquanto a Tesla criava um burburinho em torno de seus caros carros elétricos, os líderes automotivos da Alemanha fizeram duas suposições fatais: que sua experiência na fabricação de carros se traduziria para a era dos veículos elétricos e que a China continuaria a absorver um número cada vez maior de Audis e Volkswagens movidos a gasolina.
Fazer VEs, as empresas descobriram mais tarde, tinha basicamente a ver com baterias e software, algo que aqueles que se destacavam na fabricação de pistões e válvulas de combustível não eram necessariamente bons. Depois da Tesla, as montadoras chinesas agora ultrapassaram suas rivais alemãs em tecnologia de VEs, corroendo a participação de mercado da Alemanha.
“Se você domina o mercado há quase 40 anos, especialmente no segmento de alto padrão, a prontidão para repensar as coisas do zero, como Elon Musk fez, não é alta”, disse Jürgen Pieper, analista automotivo independente.
Para Münchau, isso denota uma fraqueza central da economia alemã: dependente de tecnologias analógicas — engenharia mecânica, produtos químicos —, sobreviveu graças a pequenas adaptações e sorte — desde a ampliação da UE até a ascensão da China, fatos que abriram novos mercados e locais de produção de baixo custo.
Mas o modelo está desgastado. Em 2023, a Alemanha registrou 133 mil pedidos de patentes, menos da metade dos números da Coreia do Sul e do Japão, de acordo com a Organização Mundial da Propriedade Intelectual. A maioria das patentes alemãs tem uso mecânico e industrial, com a tecnologia de computadores e as comunicações digitais dominando nos EUA e na China, respectivamente.
“Ainda hoje, o debate é sobre como colocar a fabricação de volta nos trilhos, estender a vida útil do modelo por mais dez anos”, disse Münchau. “As pessoas falam sobre competitividade, enquanto nos EUA falam sobre crescimento.”
Virando o navio
A Alemanha nem sempre foi avessa ao risco e alérgica a mudanças. Após a Segunda Guerra Mundial, a inovação e o empreendedorismo varreram o país e, na década de 1950, sua economia ultrapassou a da França e do Reino Unido.
Os líderes alemães aproveitaram as oportunidades e assumiram riscos no passado. O chanceler Helmut Kohl pressionou pela reunificação, apesar das dúvidas em Paris e Londres. Diante do desemprego recorde, o chanceler Gerhard Schröder instaurou reformas impopulares no mercado de trabalho e na seguridade social que colocaram a economia em um caminho de crescimento de 20 anos.
Hoje, “o acúmulo de múltiplos interesses especiais, como cracas no casco de um navio, mudou demais o equilíbrio contra a mudança”, disse Garton Ash. “Mas muito depende das qualidades de liderança pessoal do chanceler. E você só vai saber quando o cara começar a trabalhar.”
Traduzido do inglês por InvestNews
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