Uma seleção semanal do jornalismo mais prestigiado do mundo
Presented by

As armas da China para iniciar uma nova guerra comercial

Diante da estagnação do crescimento, Xi Jinping decidiu apostar tudo na manufatura

Por Jason Douglas The wall street Journal
Publicado em
14 min
traduzido do inglês por investnews

A China está intensificando sua enorme máquina de exportação novamente, e desta vez não há onde os concorrentes se esconderem.

Uma startup de Massachusetts chamada CubicPV apostou em wafers de silício, componente de alta tecnologia usados em painéis solares. Impulsionada pela legislação climática do presidente Biden promulgada há dois anos, com bilhões de dólares em créditos fiscais e empréstimos do governo, a CubicPV anunciou planos no final de 2022 para uma fábrica de wafer de US$ 1,4 bilhão no Texas. 

Desde então, a China quase dobrou sua produção de wafers de silício, muito mais do que o país precisa. Os wafers extras tiveram de ir para algum lugar — e foram para o exterior, derrubando os preços em 70%. A CubicPV teve que interromper seu plano de produção no início deste ano, deixando engenheiros e outros funcionários desempregados, citando “um mercado distorcido resultante do excesso de capacidade da China”. 

LEIA MAIS: China exportou 190 carros elétricos por hora no 1º semestre

A milhares de quilômetros de distância, no Chile, a mineradora de minério de ferro e siderúrgica CAP enfrenta dificuldades causadas pelo persistente compromisso de Pequim com a fabricação da commodity de baixo custo, agora que uma onda do metal chinês barato atinge sua costa. A empresa disse este mês que fecharia sua siderúrgica gigante, Huachipato, no centro do Chile, indefinidamente, com a perda de cerca de 2,2 mil empregos. A empresa declarou que não consegue competir com o metal chinês de baixo preço, mesmo depois que o governo aumentou as tarifas sobre barras de aço e outros produtos importados. 

A solução de Pequim para uma economia chinesa fraca — fortalecer o setor industrial do país — está afetando empresas em todo o mundo e levantando o espectro de uma nova guerra comercial global.

A recente decisão da União Europeia de impor tarifas sobre veículos elétricos chineses importados é apenas o mais recente sinal de aprofundamento das tensões. Os Estados Unidos no início deste ano aumentaram as taxas sobre o aço, o alumínio, veículos elétricos (VEs), células solares e outros produtos chineses. A Turquia aumentou os impostos sobre os VEs chineses, enquanto o Paquistão aumentou as tarifas sobre artigos de papelaria e borracha chineses. 

Outros países abriram investigações antidumping para ver se os produtos chineses estão sendo vendidos abaixo do valor justo. A Índia está examinando pigmentos e produtos químicos chineses. O Japão examina os eletrodos. O Reino Unido investiga as importações de escavadeiras e biodiesel, enquanto a Argentina e o Vietnã examinam fornos de micro-ondas e torres eólicas chinesas.

Por trás de tudo isso está um cálculo ousado, mas arriscado, de Pequim, segundo o qual investir mais em manufatura pode restaurar a vitalidade econômica do país e aumentar sua resiliência industrial sem desencadear muita resistência internacional que acabe ameaçando o futuro da China. 

Entrevistas com assessores políticos em Pequim e pessoas que consultaram autoridades chinesas mostram que a liderança da China enfrentou uma encruzilhada crucial no ano passado, quando a crise imobiliária do país levou a economia a um de seus pontos mais fracos em décadas.   

LEIA MAIS: Economia da China está com problemas, mas Xi Jinping prefere desviar deles

Alguns conselheiros argumentaram que a economia chinesa precisava ser fundamentalmente repensada, indo de sua tradicional dependência pesada na manufatura e na construção para uma maior priorização do consumo doméstico — uma mudança que a deixaria mais parecida com os EUA e potencialmente a colocaria em um caminho de crescimento mais estável. 

Em vez disso, o líder Xi Jinping ordenou que as autoridades reforçassem o modelo chinês de manufatura liderado pelo Estado, com bilhões de dólares em novos subsídios e crédito. Ele usou um slogan para garantir que os funcionários entendessem a mensagem: “Garantir o novo antes de quebrar o velho”, ou “xian li hou po” em mandarim.

Fábrica da BYD na China (Bloomberg)

O “novo” no modelo de Xi não significa a adoção de um novo modelo de crescimento. Na verdade, é a maneira do líder de refinar sua ideia do tipo de manufatura a ser apoiada pelo Estado. Em essência, a frase pede indústrias que a China queira dominar no futuro — como VEs, semicondutores e energia verde — ao mesmo tempo em que mantém as áreas tradicionais de força do país em setores “antigos”, como o aço. Quaisquer problemas de excesso de capacidade podem ser empurrados para o futuro. 

O mantra apareceu em um relato oficial de uma grande conferência do governo em dezembro passado, quando a agenda econômica para 2024 foi mapeada. A leitura reconheceu “excesso de capacidade em algumas indústrias” e “demanda efetiva insuficiente”, mas o slogan de Xi ainda indicava uma ênfase na expansão da produção industrial.  

Xi repetiu o slogan em uma sessão legislativa anual em março, poucas semanas antes de a secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, viajar a Pequim para alertar a liderança sobre as consequências globais do excesso de capacidade de fabricação da China. 

Dois princípios guiaram o pensamento de Xi, dizem os conselheiros políticos chineses. O primeiro é que a China deve construir uma cadeia de suprimentos industrial abrangente que possa manter a economia doméstica funcionando no caso de sanções severas dos EUA e de outros países ocidentais. Na opinião do principal líder, continuam os conselheiros, a segurança industrial está no centro da estabilidade da China, conforme as tensões com o mundo desenvolvido vão aumentando.

LEIA MAIS: Para estimular consumo doméstico, China mira a ‘economia grisalha’

O segundo é uma objeção filosófica profundamente enraizada ao consumo no estilo americano, que Xi vê como desperdício.

Isso deixa a China com poucas opções além de investir em exportações para estabilizar sua economia enfraquecida e criar empregos para compensar as perdas na construção civil no país.  

O resultado: em vez de os trabalhadores chineses perderem o emprego, os metalúrgicos no Brasil, os engenheiros químicos na Europa e os fabricantes de painéis solares nos EUA podem perder o seu.

O apoio chinês entra em ação

Dados oficiais mostram que as prioridades de Xi estão presentes na economia. 

Os empréstimos à indústria, incluindo empresas manufatureiras, aumentaram 63% desde o final de 2021, enquanto os bancos chineses reduziram drasticamente os empréstimos a incorporadoras imobiliárias.

Os subsídios do governo, embora há muito centrais para o manual econômico da China, também aumentaram significativamente. As empresas listadas nas bolsas de valores de Shenzhen e Xangai declararam US$ 33 bilhões em subsídios governamentais em 2023, de acordo com o provedor de dados Wind — 23% a mais do que em 2019. 

A fabricante chinesa de baterias CATL recebeu o equivalente a cerca de US$ 790 milhões, o dobro do montante de 2022. Outros grandes destinatários incluíram a PetroChina, a China Mobile e a montadora BYD, apoiada por Warren Buffett. 

Ao todo, 99% das empresas chinesas de capital aberto agora contam com alguma forma de subsídio, de acordo com o Instituto Kiel, think tank alemão. A China gasta cerca de 4,9% de seu produto interno bruto em apoio a indústrias — várias vezes mais do que os EUA, Alemanha e Japão, de acordo com Scott Kennedy, especialista em China do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington.

Craig Allen, presidente do Conselho Empresarial EUA-China, grupo de lobby de empresas americanas na China, disse que a fixação de Xi na manufatura estava clara quando ele se reuniu recentemente com o governador de uma das províncias agrícolas mais pobres do país. 

Quando Allen perguntou ao governador sobre suas prioridades econômicas, este listou semicondutores, software, biotecnologia, robótica, aeroespacial, baterias e VEs.

“Eu teria pensado que atender às necessidades imediatas de seus constituintes predominantemente rurais, como melhorar as colheitas agrícolas, poderia estar no topo de sua lista de prioridades econômicas”, disse Allen.

O apoio financeiro maciço parece pronto para continuar. O Banco Popular da China disse em abril que criou um novo mecanismo com cerca de US$ 70 bilhões para garantir os empréstimos bancários a empresas de tecnologia. Em maio, um fundo nacional destinado a financiar a produção de semicondutores levantou US$ 48 bilhões de bancos estatais e outros veículos de investimento vinculados ao governo.

Mais carros e produtos químicos

Em uma série de artigos publicados pelo Diário do Povo em maio, Pequim defendeu sua capacidade de fabricar e exportar como algo positivo para o mundo, e não um problema, dizendo que os EUA e seus aliados estão “exagerando” o excesso de capacidade da China com o intuito de obter vantagens competitivas para si mesmos.

“A produção chinesa de veículos elétricos avançados, baterias de íons de lítio e produtos fotovoltaicos atendeu primeiro à nossa demanda doméstica, mas também enriqueceu a oferta global”, disse o primeiro-ministro chinês, Li Qiang, em um discurso na reunião de junho do Fórum Econômico Mundial em Dalian, na China. A verdadeira fonte da vantagem manufatureira da China não são os subsídios do governo, mas sua enorme escala, que ajuda a reduzir os custos, acrescentou. 

O impacto, de qualquer forma, é inevitável. A produção industrial no primeiro trimestre na China foi 8% maior do que quando sua crise imobiliária se agravou no final de 2021, superando facilmente o crescimento da produção nos EUA, Europa e Japão, de acordo com dados compilados pelo CPB Escritório Neerlandês para Análise de Políticas Econômicas, instituto de pesquisa dos Países Baixos. 

A China aumentou a capacidade para produzir cerca de 40 milhões de veículos por ano, embora venda apenas algo em torno de 22 milhões em casa. Está a caminho de produzir cerca de 750 gigawatts de células solares este ano, apesar de ter precisado de apenas 220 gigawatts no mercado interno em 2023. E espera-se que responda por 80% da nova oferta mundial este ano de produtos químicos básicos, como etileno e propileno, usados para fazer sacos de lixo, brinquedos e cosméticos — embora os preços na China estejam caindo há 19 meses, sinal de excesso de oferta.

LEIA MAIS: China decide concorrer com a Tesla no mercado dos robôs humanoides que produzem carros

Ao mesmo tempo, a produção de aço, uma das “antigas” indústrias chinesas, aumentou no ano passado, apesar da queda da demanda doméstica devido à contínua crise imobiliária. Executivos da indústria dizem que Pequim os tem estimulado a investir mais na atualização da produção de aço com tecnologias limpas e outros meios.

Os volumes gerais da exportação chinesa, excluindo o efeito dos movimentos da taxa de câmbio, aumentaram 10% desde o final de 2021, contra 1,5% das exportações mundiais no total. As exportações de aço da China saltaram 36% no ano passado em relação ao ano anterior.

Ao aumentar a produção quando já é responsável por cerca de um terço da produção industrial global, a China está efetivamente pedindo ao resto do mundo que não expanda sua participação na produção, mas a reduza, disse Michael Pettis, professor de finanças da Universidade de Pequim que escreveu extensivamente sobre os desequilíbrios no comércio global.

“O resto do mundo quer o oposto. O mundo não consegue se ajustar à situação”, disse ele.

A dor se espalha

Os EUA são, de certa forma, um dos países menos afetados, porque têm altas tarifas sobre muitos produtos chineses que ajudam a proteger os trabalhadores americanos. Mas o objetivo de Washington de expandir a manufatura dos EUA não pode ser alcançado se a superprodução na China continuar, e algumas indústrias — especialmente de energia renovável — estão sentindo a pressão.

A Qcells, empresa global de energia limpa de propriedade do conglomerado sul-coreano Hanwha, que tem uma grande presença nos EUA, disse recentemente que a empresa e seus pares estão perdendo milhões de dólares por mês.

A Comissão de Comércio Internacional, agência federal que analisa questões comerciais, deu em junho seu sinal verde inicial para uma petição antidumping apoiada por fabricantes americanos de energia solar que alegam que células e módulos solares fabricados por empresas chinesas são vendidos nos EUA por preços abaixo do valor de mercado, e que são injustamente subsidiados.

LEIA MAIS: Fazendas solares ocupam espaço de terras agrícolas na China

Outras partes do mundo sofrem um impacto maior. As montadoras europeias cortaram mais de dez mil empregos com a chegada cada vez maior de VEs chineses. Antonello Ciotti, presidente da PET Europe, associação comercial para fabricantes europeus de produtos químicos usados em fibras de poliéster para roupas e recipientes recicláveis, disse que os produtores europeus de PET cortaram centenas de empregos, quando as empresas tiveram de reduzir custos e produção para lidar com as importações chinesas. No final do ano passado, a UE impôs taxas antidumping sobre certas importações de PET chinês.

Fazendeiro capinando em volta de painéis solares (Jenson/ iStock / Getty Images)

O risco para Xi é que, ao contrário do primeiro “Choque Chinês” no início dos anos 2000 — quando a manufatura chinesa barata eliminou cerca de dois milhões de empregos nos EUA, mas também beneficiou os consumidores ocidentais —, o último impulso pode desencadear tantas medidas protecionistas que a China acabe com poucos mercados consideráveis para vender.

No passado, alguns países não se importavam tanto com o excesso de capacidade da China, já que muitas empresas — como as montadoras alemãs — se beneficiavam de seu acesso a peças baratas de fabricação chinesa, observa Jacob Gunter, analista do Instituto Mercator de Estudos da China em Berlim.  

“Mas agora, a China está direcionando sua política industrial diretamente para o coração da economia ocidental”, afirmou Gunter.

Reversão de política

A estratégia de Xi de “garantir o novo antes de quebrar o velho” marca uma mudança em relação aos anos anteriores, quando Pequim, às vezes liderada pelo próprio Xi, se esforçou para reduzir o excesso de capacidade, não o contrário. 

A China sofreu com o excesso de capacidade persistente no passado, às vezes aumentando a ira de seus parceiros comerciais por deprimir os preços globais do aço e de outros bens. 

Em 2015, Xi confiou a seu czar econômico na época, Liu He, a implementação de reformas que levaram ao fechamento de muitas siderúrgicas pequenas e privadas e outras empresas. Por um tempo, parecia que Xi e sua equipe econômica estavam prontos para finalmente controlar a superprodução.

Mas à medida que as tensões com os EUA aumentaram nos últimos anos e a economia da China enfraqueceu, a opinião de Xi mudou, dizem os conselheiros políticos chineses. Ele ficou mais preocupado em garantir que a China consiga produzir tudo o que precisa no caso de um conflito com os EUA e tornou-se menos simpático às reclamações ocidentais. 

As autoridades chinesas estão agora negando que o país tenha excesso de capacidade porque Pequim não quer dar motivos a Washington, Bruxelas e outros para estabelecer tarifas ou outras ações retaliatórias, dizem assessores políticos e pessoas que consultaram autoridades chinesas.

Ainda assim, alguns dos assessores mais próximos de Xi levantaram preocupações internamente de que o apoio do governo estava levando a um excesso de capacidade extremo em setores como veículos elétricos e baterias, tornando-os menos viáveis comercialmente.

“Todo mundo faz coisas na China”, disse Joerg Wuttke, ex-presidente da Câmara de Comércio Europeia na China e agora sócio da empresa de consultoria DGA Group, em Washington. “Mas ninguém ganha dinheiro.”

Escreva para Lingling Wei em [email protected] e Jason Douglas em [email protected]

traduzido do inglês por investnews