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A loucura do boom imobiliário da China era fácil de ver, mas ninguém quis impedir

Incorporadoras, compradores e banqueiros ocidentais ignoraram os sinais de alerta, “anomalias financeiras” e “travessuras”

Por Rebecca Feng The wall street Journal
Publicado em
15 min
traduzido do inglês por investnews

Quando o gestor de fundos de hedge de Nova York, Parker Quillen, visitou um novo empreendimento no norte da China chamado Tianjin Goldin Metropolitan, ele se perguntou como seria possível para o desenvolvedor vender tudo aquilo.

Havia apartamentos a partir de US$ 1 milhão, planos para um prédio de escritórios maior que o Empire State, uma ópera, shoppings e hotéis. Sua metragem quadrada total deveria exceder a área terrestre de Mônaco.

Quillen quis saber se havia um plano para atrair compradores. Polo, respondeu a agente de marketing que o guiava pelo empreendimento. 

“Polo? O esporte à cavalo?”, perguntou ele. 

“Exatamente”, foi a resposta dela. 

A agente, em um traje de montaria, o conduziu por um estábulo com mais de 100 cavalos de polo. Quillen perguntou se o fundador do Goldin, um bilionário entusiasta do polo que enriqueceu vendendo monitores de computador, havia feito um estudo de viabilidade para o projeto. Ela disse que não fazia ideia.

“Então percebi que a ideia era que executivos internacionais viriam para Tianjin e montariam suas sedes corporativas aqui porque gostam de polo”, disse Quillen. “Fiquei tipo, ai meu Deus.”

Quando Quillen retornou a Nova York, despejou mais dinheiro em suas apostas contra as ações imobiliárias chinesas. 

Isso foi em 2016, época em que o boom imobiliário do país asiático estava apenas começando. Mesmo assim, a verdade era óbvia para quem sabia o que procurar: o boom havia se transformado em uma bolha — e provavelmente terminaria muito mal.

Contudo, a situação ficou ainda pior, porque ninguém queria que parasse. Incorporadoras chinesas, compradores de casas, agentes imobiliários e até os bancos de Wall Street que ajudaram a sustentar o crescimento ignoraram os sinais de alerta. 

Os desenvolvedores encontraram maneiras de ocultar suas dívidas com a ajuda de banqueiros e advogados. Mesmo assim, os compradores que suspeitavam que o mercado imobiliário estava sobrecarregado continuaram comprando. Investidores chineses e estrangeiros em busca de retornos polpudos inundaram as incorporadoras com financiamentos. 

Tudo isso operava com a suposição aparentemente inabalável de que o governo da China nunca permitiria que o mercado quebrasse. Os chineses haviam investido a maior parte de sua riqueza em moradia. Deixar o mercado quebrar poderia acabar com grande parte da poupança da população — e corroer a confiança no Partido Comunista. 

Agora, a China está pagando o preço por não agir antes e controlar tudo isso. 

Mais de 50 incorporadoras chinesas deram calote em suas dívidas internacionais. Cerca de 500 mil pessoas perderam o emprego, de acordo com o Keyan, think tank privado focado em propriedades chinesas. Cerca de 20 milhões de unidades habitacionais em todo o país permanecem inacabadas, e estima-se que US$ 440 bilhões sejam necessários para concluí-las. 

O preço das casas usadas nas principais cidades caiu 5,9% em março. Os governos locais, que perderam sua renda com a venda de terras para incorporadoras, passam por dificuldades para pagar suas dívidas. A economia como um todo está fragilizada, já que o setor imobiliário e as indústrias a ele ligadas, que antes representavam cerca de 25% do Produto Interno Bruto (PIB), se transformaram em um obstáculo ao crescimento.  

“Não vale nada”

Em 2016, no mesmo ano em que Parker Quillen visitou o campo de polo em Tianjin, dois contadores de Hong Kong viajaram para a China continental e pegaram a estrada em um Buick alugado.  

A empresa de Gillem Tulloch e Nigel Stevenson, a GMT Research, se especializou em desenterrar o que chamam de “anomalias financeiras” e “travessuras”, e suspeitaram que isso estava ocorrendo no mercado imobiliário chinês. 

Décadas antes, na era Mao Tsé-Tung, o mercado era controlado pelo Estado, e a maioria das pessoas vivia em casas fornecidas por suas unidades de trabalho do Partido Comunista. Na década de 1990, as autoridades começaram a liberalizar o mercado, e incorporadoras privadas surgiram em todos os lugares, erguendo fileiras e mais fileiras de prédios habitacionais em um dos maiores booms de investimento da história. 

Quando Tulloch e Stevenson começaram sua viagem, muitos funcionários do governo e economistas já alertavam para uma bolha. Mas sempre que o mercado aparentava vacilar, o governo intervinha. Pequim implementou novas políticas para estimular as compras, reduziu as taxas de juros e suspendeu os limites de compra de casas. A confiança foi restaurada e as vendas voltaram a decolar. 

Tulloch e Stevenson desconfiaram. Enquanto percorriam o país, ficaram surpresos com o número de prédios vazios e projetos inacabados. 

Eles se concentraram na China Evergrande Group, a maior incorporadora do país em termo de vendas. Seu fundador e presidente, Hui Ka Yan, estava em vias de se tornar o homem mais rico da China, com uma riqueza pessoal de mais de US$ 40 bilhões em 2017, de acordo com a Forbes.

Tulloch e Stevenson visitaram 40 projetos da Evergrande em 16 cidades, concluindo que muitos deles eram “ativos mortos”, que geravam pouca ou nenhuma renda. Entre eles, hotéis com baixa ocupação, espaços de lojas vazios e empreendimentos inteiros longe dos grandes centros populacionais. 

Em um dos projetos, em uma cidade portuária a poucas horas da fronteira com a Coreia do Norte, seis torres residenciais estavam abandonadas, sem trabalhadores, moradores ou equipe de marketing. No entanto, de acordo com Tulloch e Stevenson, a Evergrande ainda tratava o projeto em seus livros como um ativo funcional, sem mencionar seu valor. 

Tulloch e Stevenson prestaram especial atenção aos estacionamentos da Evergrande. Muitos estavam quase vazios. De acordo com seus cálculos, a empresa construiu cerca de 400 mil vagas de estacionamento que não conseguia alugar nem vender, mas em declarações auditadas continuou a avaliá-los em US$ 7,5 bilhões, ou quase US$ 20 mil cada uma. 

A incorporadora classificou as vagas de estacionamento como propriedades de investimento em vez de ativos de inventário — uma manobra contábil, incomum entre seus pares, que permitiu à Evergrande exagerar seu valor e ganhos contábeis antecipadamente, explicaram os dois contadores.

“Pelas nossas contas, a empresa está insolvente, e seu capital não vale nada”, escreveram aos clientes no final desse ano, em um relatório intitulado “Auditores adormecidos”. O relatório concluiu que a Evergrande só continuaria funcionando com mais empréstimos. 

A Evergrande defendeu suas práticas contábeis e comerciais, dizendo que seus resultados financeiros foram auditados.

Tulloch e Stevenson disseram que muitos de seus clientes concordaram com sua análise, mas acham que poucos deles agiram de acordo com ela. 

Tinham razão para não fazer isso. O mercado imobiliário da China estava às vésperas de uma recuperação, graças ao plano do governo de resgate do mercado imobiliário lançado um ano antes. No ano seguinte, 2017, as vendas de casas aumentaram 11%, e as ações da Evergrande listadas em Hong Kong subiram 458%. 

Para muitos chineses, o setor imobiliário parece um investimento melhor e mais seguro do que as ações. Muitos compraram várias unidades e as deixaram vazias, satisfeitos apenas por ver seu valor aumentando.

Chen Yanzhi, hoje com 35 anos, diz que começou a comprar casas ainda na faculdade, depois de ganhar um pouco de dinheiro negociando ações. Começou a visitar novos projetos pelo país, adquirindo unidades sempre que via uma que gostava. 

Ao longo de uma década, ela comprou e vendeu mais de 20 casas em lugares como Nanjing, Xangai e província de Hainan. A primeira custou cerca de US$ 70 mil. Anos depois, pagou US$ 3,8 milhões por uma propriedade em Xangai. “Amo casas, e amo tudo relacionado a elas”, afirmou Chen em uma entrevista. 

Os jovens fizeram fortuna trabalhando para as desenvolvedoras.

Remen Xia, de 40 anos, era gerente de vendas da Evergrande, na província de Jilin, no norte da China, antes de migrar para outras empresas imobiliárias. Em 2018 e 2019, contou ele, ganhou US$ 280 mil anuais, quando o salário médio de Jilin era inferior a US$ 4,5 mil, de acordo com o provedor de dados Wind. 

As incorporadoras precisavam de muito capital, o que significava taxas para os financiadores dispostos a levantá-lo. De 2017 a 2021, as construtoras chinesas levantaram US$ 258 bilhões com a venda de títulos denominados em dólar, de acordo com o provedor de dados Dealogic. Bancos, incluindo pesos-pesados de Wall Street, como Goldman Sachs e Morgan Stanley, levantaram US$ 1,72 bilhão para bancar esses negócios. 

Banqueiros se reuniam para falar sobre negócios no lobby do hotel Four Seasons de Hong Kong. Um gestor de fundos de hedge lembrou que participava de festas pelo menos uma vez por mês em iates de propriedade de incorporadoras chinesas, com champanhe e belas escorts.

“Cavar buracos”

Bancos chineses e instituições internacionais como Fidelity, Invesco, BlackRock e Pimco investiram em títulos imobiliários chineses. A demanda por esses títulos, com retornos de dois dígitos, excedeu em muito a oferta, então os investidores pareciam dispostos a tolerar estruturas de negócios duvidosas.

Uma tática popular, que banqueiros e investidores apelidaram de “cavar buracos”, envolvia o uso de subsidiárias de fachada para pedir dinheiro emprestado, garantido pelas empresas controladoras. A garantia era válida durante todo o ano, exceto, de acordo com documentos analisados pelo Wall Street Journal, em 30 de junho e 31 de dezembro. os dias de corte que a maioria das empresas imobiliárias chinesas usa para basear seus resultados financeiros. 

A estrutura permitiu que as controladoras evitassem divulgar os passivos contraídos pela garantia da dívida das controladas em seu próprio balanço. Isso não é ilegal, segundo advogados e contadores, porque um balanço patrimonial deve fornecer apenas um instantâneo da saúde financeira de uma empresa em um momento específico.

As desenvolvedoras às vezes ofereciam a mesma garantia várias vezes ao pedir dinheiro emprestado, de acordo com desenvolvedores e banqueiros familiarizados com a atividade. 

Um executivo de um fundo de hedge se lembra de ver a mesma lista de garantias — ações de subsidiárias de incorporadoras, recebíveis ou jatos particulares e mansões de funcionários da empresa — em meia dúzia de ofertas de dívida privada. Mesmo assim, ele comprou a dívida, dada a necessidade de altos retornos.

“Se um gestor de carteiras optar por não ignorar a emissão de garantias e se recusar a comprar esses títulos, seu desempenho despenca e ele será demitido”, explicou. 

Os bancos chineses estavam tão ansiosos para financiar tais ofertas que às vezes concordavam em investir dezenas de milhões de dólares de seu próprio dinheiro nos títulos, independentemente do preço, de acordo com banqueiros e um executivo de uma empresa desenvolvedora. Essa participação dos bancos sugeria a outros investidores que o negócio era bom, segurando assim a taxa de juros e barateando o levantamento de fundos para as incorporadoras. 

“Naquele momento, escolhemos os investidores, e não o contrário”, disse o executivo.

A Evergrande, que se tornou a maior desenvolvedora da China, pretendia se tornar uma das cem maiores empresas do mundo até 2020.  

Um executivo de uma agência de classificação de risco chinesa revelou que a Evergrande lhe pediu para conceder à empresa uma classificação de crédito soberano, o que sinalizaria que era tão segura quanto o governo chinês. 

Três grandes empresas nacionais chinesas atribuíram-lhe classificações AAA, a mais alta possível. A S&P Global deu à Evergrande apenas uma classificação B-mais, colocando-a no reino do junk-bond. 

A mídia estatal chinesa destacou a discrepância, com o Diário do Povo escrevendo que isso se devia em parte à “falta de compreensão das empresas [chinesas]”. O Diário do Povo culpou as empresas ocidentais por “exagerarem os riscos potenciais da economia e das empresas chinesas” e disse que as empresas internacionais podiam estar ajudando a venda a descoberto, ou shorts.

Depois de uma breve pausa nos lockdowns do coronavírus no início de 2020, o mercado retomou sua escalada implacável. 

O valor total do número de casas e do estoque das incorporadoras chinesas atingiu US$ 52 trilhões, de acordo com o Goldman Sachs, duas vezes o tamanho do mercado residencial americano e maior do que todo o mercado de títulos dos EUA. Os chineses tinham quase 78% de sua riqueza ligados a imóveis residenciais, em comparação com 35% nos EUA, de acordo com um relatório do Banco China Guangfa Bank e da Universidade de Finança e Economia Southwestern.

Céticos como Quillen, o gestor de fundos de hedge de Nova York, e Tulloch e Stevenson, os contadores de Hong Kong, ficaram perplexos. 

Quillen havia perdido milhões de dólares nos shorts que acumulou após sua visita ao empreendimento de Tianjin. Apostar contra as ações imobiliárias da China, disse ele, era como ter uma conversa com o diabo na qual este prometia que uma ação de US$ 10 cairia a zero em dois anos. “Mas o que o diabo não disse é que, nesses dois anos, a ação chega a cem antes, e só depois cai para zero”. 

No final de 2020, estava cada vez mais difícil ignorar os sinais de alerta. 

Os preços em Tianjin eram comparáveis com os das áreas mais caras de Londres. Milhões de unidades em toda a China ficaram vazias. 

Quillen deduziu que então a situação estava clara. O presidente Xi Jinping continuou declarando que “casas são moradias, não especulação”, e surgiram relatos de que os reguladores estavam planejando estrangular o crédito. Quillen fez novos shorts.

“Linhas vermelhas”

No primeiro dia de 2021, os reguladores impuseram uma política conhecida como “três linhas vermelhas”, que restringiu novos empréstimos por incorporadoras que já haviam recebido muito investimento. Os bancos começaram a exigir o pagamento antecipado dos empréstimos. Os investidores pararam de comprar títulos das incorporadoras. 

Em poucos meses, a Evergrande não conseguiu pagar fornecedores de materiais de construção e mão de obra. Em agosto de 2021, paralisou a construção em centenas de empreendimentos. Procurou ajuda do governo no final daquele ano, mas não houve resgate.

Os chineses compradores de casas, assustados com a possibilidade de que as incorporadoras ficassem sem dinheiro e deixassem imóveis inacabados, pararam de comprar. Nas cem maiores incorporadoras da China, as vendas despencaram. A emissão de títulos de alto rendimento por incorporadoras chinesas caiu de US$ 23 bilhões em 2021 para US$ 431 milhões em 2022, de acordo com a Dealogic.

As incorporadoras se viram em uma crise de liquidez em um efeito dominó. 

No final de 2021, um fundo de títulos de alto rendimento gerido pela BlackRock ainda tinha US$ 941 milhões de exposição a títulos imobiliários da China, e um fundo Pimco, US$ 741 milhões, de acordo com a Morningstar. A Fidelity International tinha US$ 1,28 bilhão de exposição em um fundo de títulos.

Chen, a investidora que comprava e vendia casas há anos, contou que metade de suas casas agora estão sem inquilinos, e várias valem menos do que ela pagou. Porém, disse que não tem pressa para vender e continua otimista. 

Xia, ex-gerente de vendas da Evergrande, deixou o setor no início de 2023 depois que seu então empregador, outro desenvolvedor, parou de pagar seu salário por seis meses. Ele agora administra contas em aplicativos chineses de vídeos curtos. 

Stevenson, um dos contadores de Hong Kong, havia escrito em agosto de 2021 que ainda era possível lucrar com o shorting das ações da Evergrande, embora as ações listadas em Hong Kong estivessem 95% abaixo de seu pico. Ele previu que iriam a zero. 

Em dezembro de 2021, a Evergrande deu calote em seus títulos internacionais. Em janeiro de 2024, um tribunal de Hong Kong ordenou que a empresa fosse liquidada e a negociação de suas ações foi suspensa a US$ 0,02 cada.

Em março, o regulador de valores mobiliários chinês disse que a Evergrande superestimou suas vendas em 2019 e 2020 em um total de US$ 78,4 bilhões, tornando-se possivelmente uma das maiores fraudes financeiras. 

A PricewaterhouseCoopers renunciou ao cargo de auditora da Evergrande no início de 2023, dizendo que não conseguiu obter informações relacionadas ao reconhecimento de receita de algumas vendas de imóveis, entre outras questões. Tulloch, o outro contador de Hong Kong, disse que recentemente enviou o relatório Evergrande de 2016 de sua empresa para uma linha de reclamações na PwC, mas que não espera uma resposta. 

A Goldin Financial, empresa que desenvolveu o projeto de Tianjin visitado por Quillen, está falida. Uma torre de escritórios lá, projetada para parecer uma bengala, tornou-se uma das favoritas dos exploradores urbanos internacionais, que fazem vídeos lá e postam no YouTube. O Guinness Book of World Records certificou-o como o edifício desocupado mais alto do mundo.

Os cavalos, vinhos e móveis do polo foram parar em um site de leilões em 2021.

Quillen, agora diretor de investimentos da Contrarian Alpha Management, não revelou o quanto acabou ganhando em suas apostas contra as desenvolvedoras chineses. Ele disse que qualquer pessoa que apostasse contra as ações após o pico de 2017 e não ficasse preocupada quando a ação subisse teria obtido um retorno de 100%. 

Ele afirma se sentir vingado, mas lamentou que sua aposta não tivesse sido maior.

Escreva para Rebecca Feng em [email protected]

traduzido do inglês por investnews