Aplicativos de apostas mantêm jogadores viciados

Publicado originalmente em 22 de fevereiro

MT. LEBANON, Pensilvânia — Kavita Fischer não conseguia acreditar em sua sorte.

Ela começou com US$ 750 e conseguiu uma ótima sequência de vitórias em meados do ano passado, algo que durou seis dias. Rodada após rodada de jogos de cassino on-line geraram ganhos de US$ 500 mil. O lucro compensaria cada aposta ruim e pagaria tudo o que ela devia.

Fischer, profissional de saúde mental de 41 anos com dois filhos, tinha dívidas com valores que chegavam a seis dígitos devido às perdas em jogos de azar on-line. Durante quase um ano, ela perdeu várias vezes, reclamando com pelo menos uma das empresas de jogos, dizendo que tinha um problema e que não conseguia parar. Como psiquiatra familiarizada com os impulsos humanos e o vício, Fischer sabia melhor do que muitos o que precisava fazer.

No entanto, enfrentou uma indústria habilidosa na arte de utilizar a análise de dados e o comportamento humano para manter os clientes apostando. As empresas monitoravam os altos e baixos do comportamento de apostas de Fischer e devam créditos de bônus para mantê-la jogando. Representantes de clientes VIP ofereciam incentivo e presentes.

Depois de seis dias de sorte, Fischer fez vários pedidos para começar a retirar o meio milhão de dólares do aplicativo de apostas PointsBet. Mas mudava de ideia a todo momento, colocando o dinheiro de volta no jogo.

Em um dia, perdeu quase tudo. “Não há nada em seu cérebro que diga: ‘OK, pare agora, acabou. Você ganhou seu dinheiro de volta, pode esquecer isso’”, afirmou Fischer. “Mas havia algo no meu cérebro que me fazia continuar.”

A indústria de jogos de cassino on-line, de mais de US$ 15 bilhões por ano, surgiu de uma decisão de 2018 da Suprema Corte americana que abriu caminho para que os estados permitissem e regulamentassem as apostas esportivas. Agora, 30 estados e o Distrito de Columbia aprovaram as apostas esportivas on-line 24 horas por dia. 

Os cassinos on-line, que se transformaram no vício de Fischer, são legais em seis estados e se tornaram uma mina de ouro para o setor.

Em novembro de 2022, Fischer baixou o aplicativo da DraftKings, uma das duas principais empresas de apostas on-line dos EUA, junto com a FanDuel. Ela queria contornar o estresse de um divórcio recente e o isolamento do trabalho de casa durante a pandemia. Encontrou o Slingo, jogo no estilo bingo, tão simples de jogar quanto uma máquina caça-níqueis.

Logo depois que Fischer começou a jogar, um representante da empresa enviou um e-mail se apresentando. Na DraftKings e em outras empresas de apostas on-line eles são identificados como “anfitriões VIP”. 

“Estou ansioso para trabalhar com você e estabelecer um bom relacionamento”, escreveu Jamyl Cogdell em 9 de dezembro de 2022. Ao longo de quatro meses, Fischer conta que trocaram dezenas de e-mails e mensagens de texto. Cogdell não respondeu aos pedidos de comentários, e a DraftKings não quis se pronunciar em seu nome.

A DraftKings e outras empresas de jogos doaram dezenas de milhares de dólares em créditos que mantiveram Fischer jogando muito depois de ela querer parar.

Os cassinos sempre cortejaram seus grandes apostadores com tratamento especial, mas as apostas on-line intensificaram as táticas do setor. As empresas acompanham de perto os hábitos de apostas 24 horas por dia, coletando dados como quanto tempo cada cliente passa em um aplicativo, quanto dinheiro joga, que tipo de aposta faz e quanto perde.

Com uma visão em tempo real da atividade de um cliente, os anfitriões VIP mantêm contato próximo. Eles conseguem monitorar quando os clientes usaram o aplicativo pela última vez e oferecer créditos e outros incentivos para persuadir seus jogadores mais valiosos — por definição, os maiores perdedores — a retornar. As opções de pagamento dão aos jogadores acesso imediato a fundos que alguns não conseguem cobrir.

Os anfitriões VIP são designados a jogadores com base em quanto estão apostando. A atenção pessoal compensa. Na PointsBet, adquirida em 2023 pela empresa de artigos esportivos Fanatics, os maiores apostadores em modalidades esportivas, que representam 0,5% da base de clientes, geraram mais de 70% da receita da empresa em 2019 e 2020, de acordo com documentos internos analisados por “The Wall Street Journal”.

Fischer às vezes apostava dezenas de milhares de dólares por rodada. Com suas perdas aumentando, ela mandou uma mensagem para sua irmã na Flórida, dizendo que tinha um problema de jogo. Sua irmã lhe disse para procurar ajuda.

Enquanto isso, as ofertas VIPs continuavam chegando.

“Como foi o seu fim de semana? Acabei de adicionar a seguinte oferta para começar bem a sua terça-feira: ganhe créditos de cassino de US$ 30 para cada US$ 1 mil apostados em caça-níqueis”, escreveu Cogdell a Fischer em 17 de janeiro de 2023, “até US$ 1 mil em 72 horas”. 

Fischer relembra que se tornou psiquiatra para entender os mistérios do cérebro humano. Ao longo de cerca de 11 meses, ela se tornou um mistério para si mesma. “Você sabe que está desperdiçando sua vida, seu tempo ou seu dinheiro”, disse ela. “Mas simplesmente não consegue parar.”

As empresas de jogos de azar on-line dizem que a maioria das pessoas joga por entretenimento e que é possível minimizar os danos aos clientes.

“A DraftKings está comprometida com os mais altos padrões de proteção ao consumidor e com o jogo responsável”, disse Jennifer Aguiar, diretora de compliance da empresa. A empresa não quis comentar sobre Fischer.

Esse relato é baseado em entrevistas, e-mails e registros financeiros.

Tente, tente novamente

Fischer, que era uma excelente aluna na escola de ensino médio na Flórida, terminou sua residência em psiquiatria em 2012 na Universidade de Pittsburgh. Ela valoriza a arte e a ciência de sua profissão, e procura conhecer os pacientes como forma de compreender suas doenças. 

Fisher mora em um sobrado com janelões que dão vista para as colinas de seu subúrbio de Pittsburgh. Seus dois filhos pequenos jogam futebol. Ao longo dos anos, ela às vezes visitava um cassino próximo para ver uma banda cover dos anos 1980, separando US$ 100 para pagar por comida, bebidas e jogos em sua noite. 

Durante a pandemia, as apostas no celular começaram como uma forma de relaxar depois que os meninos iam dormir. Logo, estava jogando até tarde da noite. Quando perdia, passava mais tempo e gastava mais dinheiro tentando reverter a falta de sorte. “Só mais uma vez vez”, ela se lembra de ter pensando. Em vez disso, suas perdas iam aumentando. 

Ela esperava conseguir sair da dívida, e os créditos gratuitos lhe davam um motivo para continuar tentando. A DraftKings lhe enviou uma barraca de acampamento para 14 pessoas, que ela vendeu por US$ 500. A empresa a convidou para assistir a um jogo dos Steelers de um camarote com comida e bebidas.

Em 9nove de janeiro de 2023, Fischer enviou um e-mail para seu anfitrião do DraftKings para dizer que estava “indo muito mal” no Slingo e deveria tentar um jogo diferente “ou parar de jogar completamente”. 

“Mas por enquanto, dá para você me enviar um crédito VIP?”, perguntou ela.

O anfitrião adicionou um bônus de US$ 500 à sua conta. “Espero que você tenha sorte!”, disse ele. Mais tarde naquele mês, ele pediu a Fischer que abrisse o aplicativo uma vez por semana para ver se conseguiria ganhar promoções e créditos.

Para financiar seu jogo, Fischer gastou sua poupança e seu fundo de aposentadoria e fez empréstimos pessoais. Ela usava cartões de crédito que tratam as transações de jogos de azar como adiantamentos em dinheiro, cobrando taxas de juros de até 33%. 

Fischer descobriu a Pavilion Payments, que trabalha com empresas de apostas para fornecer um serviço chamado VIP Preferred. O programa dá aos apostadores acesso ao dinheiro sem esperar que as transferências bancárias sejam liberadas. Quando a Pavilion, empresa com sede em Las Vegas, tentava cobrar a dívida de Fischer, ela em geral não conseguia pagar, e recebia avisos de cobrança. A Pavilion afirmou que promove o jogo responsável.

Fischer impôs limites às suas apostas várias vezes por meio de ferramentas existentes nos aplicativos, inclusive o da DraftKings. Ela limitava seus gastos ou bloqueava apostas temporariamente. Quando essas restrições expiravam, voltava a gastar.

Em janeiro, à medida que suas dívidas cresciam, tentou se inscrever em um programa estatal que permite que os jogadores se afastem de todos os aplicativos de apostas legais na Pensilvânia — por um ano, cinco anos ou pelo resto da vida. Fischer disse que recebeu uma mensagem de erro e acabou desistindo.

“Estou mal esta semana, você poderia, por favor, me dar mais um bônus para que eu possa tentar reverter minha sorte amanhã?”, escreveu Fischer em um e-mail em 8 de março de 2023 para seu anfitrião VIP. 

Este creditou US$ 500 em sua conta. “Espero que isso a coloque no caminho certo!”, escreveu ele.

Mais tarde, em março, o namorado de Fischer a levou para uma viagem a Cancún, no México, mas ela não conseguia parar de pensar em seus problemas financeiros. Tinha uma dívida de US$ 1.200 na hipoteca de sua casa e escreveu ao anfitrião do DraftKings perguntando se eles ofereciam empréstimos a clientes VIP.

Ele respondeu que não. E perguntou se Fischer estava jogando dentro de suas possibilidades. “Levamos o jogo responsável muito a sério aqui”, escreveu ele, incluindo um link para as ferramentas do DraftKings que permitiriam limitar as apostas ou impor uma proibição temporária.

Depois de voltar para casa, Fischer disse a ele que estava jogando dentro de seu orçamento. “Ok, perfeito”, foi a resposta, e lhe deu um crédito de US$ 250 “para você voltar à ação”.

Em abril, a DraftKings disse que Fischer não mais teria um anfitrião VIP, sem dar um motivo. Frustrada, ela exigiu que sua conta fosse fechada. Nos primeiros quatro meses de 2023, perdeu cerca de US$ 141 mil para a empresa. Durante esse tempo, a DraftKings deu a ela mais de US$ 36 mil em créditos de jogo. No total, perdeu mais de US$ 190 mil para a DraftKings em 2022 e 2023.

Fischer escreveu à DraftKings em maio dizendo que era viciada em jogos de azar e precisava de ajuda. “Acredito que poderia ter sido melhor protegida”, disse. “Meu anfitrião VIP podia ver o tempo que eu passava jogando e o dinheiro que eu gastava.” Ela pediu para ser ressarcida de uma parte de suas perdas.

Um membro da Equipe de Proteção ao Jogador da DraftKings disse em um e-mail que não haveria reembolso por suas perdas. 

“Lamentamos ouvir sobre sua experiência com nossa plataforma e os problemas financeiros que você está enfrentando agora”, escreveu um representante da Proteção ao Jogador da DraftKings. O e-mail incluía números de telefone para linhas diretas de jogos de azar e links para sites de vício em jogos.

“Eu teria parado há muito tempo”, disse Fischer. “Esses bônus VIP me traziam de volta.”

Estimulando o desejo

Os psicólogos dizem que, para os jogadores, apostar faz o cérebro liberar dopamina, substância química que cria uma sensação de prazer e antecipação. A sensação aumenta durante a espera do próximo giro da máquina caça-níqueis ou do próximo jogo de futebol. Os apostadores buscam essa sensação todas as vezes, independentemente de ganhar ou perder. Alguns não conseguem parar.

A indústria de apostas on-line no Reino Unido está sob escrutínio devido às preocupações com o vício em jogos de azar e às práticas de marketing das empresas de apostas. Os reguladores citaram bônus e programas VIP como ferramentas que as empresas utilizam para manter os clientes jogando e perdendo.

Em 2020, os reguladores britânicos impuseram restrições aos programas VIP, que visam grandes gastadores. As regras exigiam que as empresas verificassem se os apostadores poderiam pagar os valores que estavam apostando e controlassem as liberações de crédito. Desde então, os reguladores relataram uma redução de 90% no número de clientes em programas VIP.

Em 2022, a PointsBet categorizou seus clientes de apostas esportivas com base em seus padrões de apostas, de acordo com documentos internos da empresa vistos pelo Wall Street Journal. Um tipo de cliente valorizado era conhecido como “Dave”, que a empresa descreve como homem, com idade entre 30 e 45 anos, ganhando pelo menos US$ 150 mil anualmente. Os Daves apostam cerca de cem dias por ano, e sua aposta média é de US$ 500.

A empresa também rotulou os clientes que fazem uma aposta média de menos de US$ 20 como um “Chad”, marcando-os como jogadores menos desejáveis. A PointsBet parou de usar a terminologia quando foi comprada pela Fanatics, segundo um porta-voz desta.

Psicólogos que estudam o vício em jogos de azar dizem que as empresas coletam dados suficientes para identificar apostadores em esportes e clientes de cassinos on-line que apresentam um problema de vício. 

O maior sinal é a tentativa de recuperar as perdas jogando mais. Um indicador verificável é quando os apostadores fazem depósitos frequentes em suas contas de jogo, de acordo com um estudo britânico. 

Alguns dias, por exemplo, Fischer fazia 12 ou mais depósitos em um único aplicativo, de acordo com seus extratos bancários: US$100. US$300. US$500.

Quando os estados debatiam a legalização dos jogos de azar on-line, as empresas prometiam controlar os jogadores problemáticos, mas há poucas regulamentações para garantir isso.

No ano passado, os reguladores de Nova Jersey começaram a exigir que as empresas de apostas usassem dados de jogadores para identificar clientes em risco. Entre os sinais monitoráveis estão os jogadores que aumentam a quantidade de tempo que passam apostando a cada semana e aqueles que apostam até que tenham menos de um dólar em suas contas, de acordo com a Divisão de Fiscalização de Jogos de Nova Jersey. Outras indicações incluem apostadores que repetidamente tentam bloquear o acesso a aplicativos de apostas.

Cerca de 94 mil clientes receberam diferentes graus de intervenção das empresas on-line, incluindo tutoriais em vídeo e conversas sobre jogo responsável, até outubro do ano passado, de acordo com o gabinete do procurador-geral de Nova Jersey. 

Ajuda em caso de catástrofe

Em julho passado, depois que Fischer ganhou e perdeu US$ 500 mil  na PointsBet, um representante da cliente se ofereceu por e-mail para ajudá-la a definir limites de gastos no aplicativo. O representante pediu para marcar um horário para um telefonema para verificar sua situação. 

“Na PointsBet, queremos garantir que nossos jogadores tenham a melhor experiência possível, e acreditamos fortemente que a melhor maneira de fazer isso é jogar com responsabilidade”, disse o e-mail.

Em agosto, Fischer pediu novamente para ser banida de aplicativos de jogos de azar por meio do Conselho de Controle de Jogos da Pensilvânia. Em um e-mail automatizado em 3 de agosto, a agência disse que o pedido não havia sido aceito devido a discrepâncias nas informações fornecidas.

Uma semana depois, ela tentou novamente e acrescentou um apelo pessoal. “Eu tentei me excluir agora pela quarta vez, por favor, me avise se precisar de mais alguma coisa de mim. Os jogos on-line na Pensilvânia destruíram minha vida”, disse ela em um e-mail.

O conselho estadual confirmou seu banimento vitalício das plataformas de apostas on-line três dias depois. Doug Harbach, porta-voz do Conselho de Controle de Jogos da Pensilvânia, disse que a agência responde quando as pessoas têm problemas em conseguir o banimento.

Em um ano, Fischer apostou mais de US$ 400 mil de seu próprio dinheiro. “Você consegue culpar alguém que tem dependência de álcool?”, questionou Fischer. “Eu não.”

Ela refinanciou seu imóvel e conseguiu US$ 243 mil para pagar dívidas de cartões de crédito e empréstimos pessoais a uma taxa de juros mais baixa. Agora, terá de desembolsar US$ 2.400 por mês durante 15 anos, afirmou ela. A isso se soma o pagamento mensal de sua hipoteca de US$ 3.600 por mês. 

Para quitar mais R$ 120 mil em dívidas de cartão de crédito, Fischer tem planos de pagamento de R$ 2.500 por mês. Ela está fazendo plantões com um profissional de saúde local para garantir uma renda extra. 

Em agosto, Fischer participou de sua primeira reunião dos 12 passos para jogadores em uma igreja local. Sentia-se assustada e sozinha, pensando que haveria apenas algumas pessoas lá. Na verdade, havia um grupo de 25 integrantes. Um deles disse a ela para não se sentir só. Ela chorou.

“Eu estava tipo, ‘Não acredito que há tantas pessoas aqui’”, contou ela.

Fischer está planejando uma apresentação em março para psiquiatras em toda a Pensilvânia sobre como detectar problemas de jogo. Ela disse que queria contar sua história, apesar do risco profissional e pessoal, para ajudar a acabar com o estigma do vício em jogo. 

“Pode acontecer com qualquer um”, garantiu.

traduzido do inglês por investnews