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Como o governo chinês pune os muito endividados

A repressão de Pequim a milhões de devedores inadimplentes dificulta saldar débitos

Por Brian Spegele The wall street Journal
Publicado em
11 min
traduzido do inglês por investnews

FOSHAN, China — Qin Huangsheng imaginava uma vida melhor na cidade quando deixou sua aldeia natal para se tornar operária aos 16 anos. Agora, aos 40 anos, ela tem US$ 40 mil em dívidas pessoais e um salário base de US$ 400 por mês.

Os cobradores a perseguem. Ela está impedida de comprar passagens no trem de alta velocidade, apenas uma das penalidades que o governo impõe cada vez mais às pessoas que não pagam suas contas. Nos velhos trens lentos que pode tomar, Qin às vezes olha para os outros passageiros e pensa: “Me pergunto se todos são devedores como eu”. 

Pessoas em toda a China estão enroladas por dívidas e por um sistema que as penaliza por não pagarem o que devem. Pequim está reprimindo os inadimplentes, confiscando seus salários ou impedindo-os de obter empregos no governo, além da restrição de acesso a trens de alta velocidade e viagens aéreas. Muitos são proibidos de comprar apólices de seguro caras e dizem que não podem sair de férias ou ficar em bons hotéis. E podem ser presos caso não cumpram as restrições.

O número de pessoas em uma lista pública de inadimplência do governo aumentou quase 50% desde o final de 2019, chegando a 8,3 milhões hoje. Os tribunais podem incluir indivíduos quando estes não cumprem sentenças de devolução do dinheiro ou se são considerados pouco cooperativos nos processos legais.

Crescimento: Dívida pessoal na China aumentou nos últimos anos – Dívidas familiares, por mês 

Ao contrário dos EUA, a China não permite que a maioria das pessoas — incluindo aquelas que passaram por uma onda de azar — declarem falência para amortizar dívidas e continuar tocando a vida, uma política que alguns estudiosos chineses criticam, dizendo ser injusta.

O endividamento das famílias aumentou 50% nos últimos cinco anos, para cerca de US$ 11 trilhões hoje. Embora isso seja menor do que os US$ 17,5 trilhões que os americanos devem, é uma soma enorme em um país onde a população ganha muito menos. 

Com os preços das casas caindo, a deflação correndo o risco de se consolidar e o desemprego persistente, os líderes chineses estão ansiosos para fazer com que as pessoas gastem mais. Mas cada dólar usado para pagar uma dívida é um a menos que poderia ser usado para comprar roupas novas ou viajar. A ameaça de punição devido a atrasos no pagamento de dívidas está fazendo com que muitas famílias sejam mais conservadoras com seu dinheiro.

As vendas de bens de consumo no varejo na China aumentaram 4,7% no primeiro trimestre em comparação com o do ano anterior, disse o governo nesta terça-feira, ficando atrás do crescimento econômico total de 5,3%. Enquanto muitos chineses reduzem seus gastos, o governo prioriza o incentivo à manufatura e às exportações, uma estratégia que está exacerbando as tensões comerciais com o Ocidente.

Com tantos consumidores sob pressão financeira, empresas ocidentais, incluindo Apple, Estée Lauder e General Motors, relataram vendas mais fracas na China. 

Autoridades chinesas não responderam a perguntas sobre o sistema da lista negra. O governo já disse anteriormente que busca atingir apenas aqueles que têm a capacidade de pagar suas dívidas, mas se recusam a fazê-lo. 

Por trás do aumento da dívida pessoal da China

O longo boom imobiliário da China foi uma causa significativa do aumento das dívidas pessoais, porque muitas pessoas tiveram que pedir empréstimos para comprar casas. Alguns compradores contraíram dívidas extras para adquirir mais imóveis para fins de investimento, às vezes deixando-os vazios. Agora que o boom acabou e os preços estão caindo, muitos estão presos a dívidas que não conseguem liquidar.

O número de casas hipotecadas à venda aumentou 43% em 2023, chegando a cerca de 400 mil propriedades, de acordo com a empresa de pesquisa imobiliária China Index Academy.

O aumento das dívidas pessoais também é em parte o resultado de mais pessoas usando cartões ou linhas de crédito pessoal para lidar com as despesas à medida que a economia estagna. 

Muitos economistas dizem que é improvável que uma crise financeira ao estilo da dos EUA ocorra em breve na China. O controle estatal do sistema bancário significa que o governo pode absorver perdas e injetar capital em uma emergência. As dívidas das famílias também se estabilizaram nos últimos dois anos, já que muita gente dá prioridade ao uso de dinheiro extra para pagar passivos em vez de comprar ou investir em ações.

Ainda assim, a prevalência de grandes dívidas pessoais é um problema para o governo.

“O crescimento do endividamento das famílias tende a levar a resultados macroeconômicos ruins, mesmo na ausência de uma crise financeira”, disse Amir Sufi, economista da Universidade de Chicago. A China não tem uma solução simples. “Geralmente, quando um ciclo começa, é difícil prever quando terminará”, completou Sufi.

Um sistema difícil para quem deve 

A China tenta há anos elevar os gastos pessoais para aliviar a tradicional dependência de sua economia em infraestrutura e crescimento imobiliário. Seus bancos emitiram dezenas de milhões de novos cartões de crédito a cada ano, com saldos pendentes saltando 50% entre 2018 e 2023, para mais de US$ 1 trilhão. Aplicativos privados de tecnologia, como Alipay e WeChat, também começaram a ajudar os consumidores a garantir empréstimos conforme seus sistemas de pagamento digital disparavam em popularidade. 

Porém, quando as dívidas não são pagas, a renda de um indivíduo pode ser confiscada pelo Estado para cobrir seus passivos, deixando que sobreviva com uma pequena “mesada”.

Na cidade de Guangzhou, no sul do país, um homem de 38 anos pediu um aumento de sua mesada mensal aos tribunais, de 9.500 yuans para 12 mil yuans, o equivalente a cerca de US$ 1.600, para ajudar nos gastos com uma criança recém-nascida. Os juízes indeferiram o pedido no final do ano passado e, em vez disso, concluíram que sua mesada deveria ser cortada em quase 40% porque ele já estava recebendo muito, mostram os registros judiciais.

 

O número de chineses endividados aumentou nos últimos anos

Um mercado paralelo surgiu para ajudar as pessoas na lista de inadimplentes. Em um dos casos, as autoridades de Xangai prenderam uma quadrilha de cambistas que reservava passagens de trem de alta velocidade em nome de devedores que estavam impedidos de fazê-lo. No início de 2021, as autoridades localizaram um devedor que usava o serviço e o prenderam, de acordo com um tribunal local.

O sistema atual dá prioridade à proteção de credores — muitas vezes poderosas instituições estatais — em detrimento da ajuda a indivíduos em dificuldades. Especialistas que estudam a questão dizem que a China precisa urgentemente de um sistema nacional de falência pessoal para alcançar o objetivo do líder Xi Jinping de tornar o país mais equitativo, forçando credores e devedores a compartilhar os custos de empréstimos não pagos. 

“O sistema de falência pessoal é um mecanismo de redistribuição da riqueza”, escreveu Li Shuguang, especialista que aconselhou o governo sobre a política de falência, em um comentário on-line em meados do ano passado. 

Mudanças nesse sistema foram frustradas em parte por opositores que acreditam que isso só encorajaria mais pessoas a não pagar suas dívidas.

A saga de uma mulher 

Para Qin, a ex-operária, o fácil acesso ao crédito acabou saindo pela culatra. 

Quando tinha 16 anos, em 1999, Qin embarcou em um ônibus noturno de sua casa na zona rural no sul da China para o centro industrial de Dongguan, ao norte de Hong Kong.

Seus pais, que são agricultores, não tinham como pagar os cerca de US$ 15 necessários para que ela tentasse uma vaga no ensino médio. Ela prometeu fazer isso por conta própria e encontrou trabalho em fábricas que produziam chinelos e bijuteria.

Alguns anos depois, Qin conseguiu seu primeiro cartão de crédito. Com ele, comprou um computador para aprender a digitar e conseguir um emprego melhor.

Quando a conta foi paga, Qin disse que tentou cancelar o cartão. “Guarde-o para uma emergência”, disse-lhe a funcionária do banco.

Qin progrediu em sua carreira e acabou se mudando para a metrópole de Guangzhou. Em 2010, segundo ela, estava gerenciando licitações de uma empresa que fornecia equipamentos de segurança contra incêndio para empreendimentos imobiliários. Seu pé de meia crescia constantemente com as comissões lucrativas que ganhava durante o boom imobiliário.

Quando o setor desacelerou, ela foi para outro. Um conhecido estava envolvido em uma startup que desenvolvia um software para ajudar donos de pequenas empresas a coletar dados do WeChat para gerar mais tráfego de pedestres e auxiliar nos esforços de marketing.

Qin contou ter investido o equivalente a cerca de US$ 150 mil de suas economias no empreendimento. 

A startup esgotou seu investimento inicial tentando fazer o software funcionar. Qin disse que então concordou em começar a colocar algumas das despesas, incluindo material de escritório, aluguel e salários de funcionários, em seus cartões de crédito, além de acessar linhas de crédito pessoal via WeChat e Alipay. 

O roadshow da empresa foi recebido calorosamente, disse ela. Mas as perspectivas diminuíram após o início da pandemia de Covid. 

As dificuldades da empresa deixaram Qin com o equivalente a dezenas de milhares de dólares de dívida. Ligações telefônicas de cobradores de dívidas se tornaram uma ocorrência diária.

Sem a opção de falência, Qin concluiu que um novo emprego era sua única saída para os problemas.

“Enquanto estiver viva, posso trabalhar duro para ganhar o dinheiro de volta”, afirmou ela.

Seu novo caminho apresentou dificuldades inesperadas. Em 2021, enquanto se preparava para uma viagem de negócios a Xangai, mais de 700 quilômetros a nordeste de Guangzhou, Qin percebeu que havia perdido seu acesso ao trem de alta velocidade, onde um documento de identidade do governo é obrigatório para a compra de passagem. Ela pegou o trem lento — e depois saiu desse emprego, em parte porque as restrições de viagem estavam impossibilitando seu trabalho. 

As autoridades locais não responderam a perguntas sobre o caso de Qin e o Wall Street Journal não conseguiu verificar alguns detalhes de seu relato. 

Hoje, ela trabalha em uma loja em Foshan, ao sul de Guangzhou, vendendo medicamentos chineses tradicionais. Com um salário base de cerca de US$ 400 por mês, tem dificuldade para saldar suas dívidas, mas contou que conseguiu saldar a dívida de dois de seus cartões de crédito até agora, com cerca de US$ 40 mil em débito ainda. 

Qin tenta se manter otimista, esperando que a procura por remédios aumente, dado o envelhecimento da população chinesa, facilitando a chegada de bônus e potencialmente possibilitando a abertura de sua própria loja. Mesmo assim, ela teve que ser criativa para ganhar dinheiro e saldar suas dívidas.

Sua função atual exige que colete pagamentos de clientes usando uma carteira digital no WeChat. Mas ela conta que essa função em sua conta foi congelada várias vezes desde 2022, fazendo-a buscar a ajuda de sua família.

Ela decidiu não revelar aos pais a dimensão de seus problemas. Se soubessem a verdade, disse Qin, “não conseguiriam dormir”.

Escreva para Brian Spegele em [email protected]

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