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Como um queridinho da literatura finalmente conquistou o público

Entre uma adaptação vencedora do Oscar e um novo romance com ótimas críticas, Percival Everett passou de cult a superastro

Por Ellen Gamerman The wall street Journal
Publicado em
6 min
traduzido do inglês por investnews

[Publicado originalmente em 19 de março]

Percival Everett está preparado para um grande ano. 

“James”, sua obra baseada em “As Aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain, narrada da perspectiva do escravizado fugitivo Jim, está sendo muito elogiada, chegando até a entrar nas listas dos melhores de 2024. Executivos de editoras esperam que a chegada do livro na terça-feira marque a tão esperada popularização do autor veterano.

O romance veio depois de “Ficção Americana”, que acaba de ganhar o Oscar de melhor roteiro adaptado. Escrito por Cord Jefferson, o filme é baseado na obra “Erasure” de Everett, de 2001, uma sátira sobre a hipocrisia racial no mundo editorial. A comédia dramática é estrelada por Jeffrey Wright como um romancista frustrado que brinca com os preconceitos do setor impostos aos livros de autores negros.

Quando pensou em escrever “James”, Everett estava chocado por não encontrar mais versões alternativas de Jim na literatura contemporânea. Em sua narrativa, Jim, que na verdade atende por James, é um escritor e amante de livros que se faz passar por analfabeto para se proteger da ira de brancos inseguros. Alguns dos momentos mais engraçados do livro ocorrem quando ele e outro escravizado se esquecem de fingir ignorância na frente de outros. Elementos do romance de Twain de 1884 permanecem — ainda há a viagem de jangada pelo rio Mississippi com Huck e desentendimentos com alguns dos mesmos personagens desagradáveis —, mas isso é apenas um ponto de partida. 

Everett, de 67 anos, que escreve a lápis em vários cômodos de sua casa em South Pasadena, na Califórnia, visitou todos os lugares, da vida rural à antiguidade em seu trabalho. Seus livros exploram temas variados com humor e, às vezes, trapalhadas existenciais, como em “I Am Not Sidney Poitier, romance sobre uma pessoa chamada Not Sidney Poitier que se parece com o ator Sidney Poitier. 

Recentemente, o autor conversou com o WSJ sobre ter percebido o preconceito em uma reunião de livreiros em Nova York, sobre escrever em cadernos e ser (mais ou menos) reconhecido em uma loja de bagel. 

Como decidiu escrever “James”?

Sempre gostei do Huck Finn. Seu uso de forma alguma é a expressão de algum tipo de insatisfação com a obra. Acho que é um livro importante. Mas é deficiente. Twain parou na metade e o deixou de lado por um tempo, e acho que essa quebra é bastante evidente na escrita da obra. Por razões mercenárias, ele incluiu Tom Sawyer, porque estava tentando vender o livro, então a qualidade e a natureza do tratamento de Jim necessariamente mudam. Jim se torna muito mais objetificado na última parte do livro. Mas, mais importante, Twain não poderia descrever Jim, não seria possível para ele. E também é a história de Huck. Não é razoável esperar que ele descrevesse Jim dessa forma.

Que tipo de pesquisa o senhor fez para o livro?

Houve pesquisa geográfica, conheci aquela parte do país. Li Huck Finn 15 vezes seguidas para ficar de saco cheio e não o repetir. Eu realmente odiei o livro no final.

O senhor visitou a cidade natal de Twain, Hannibal, no Missouri. O que fez lá?

Comi um sanduíche e fui embora. Consegui o que queria com isso. Brinquei com a ideia de fazer um daqueles cruzeiros fluviais, mas é preciso ir ao YouTube e ver como são e com quem você estaria. De certa forma é bonito, mas de outra forma acho que eu duraria talvez 15 ou 20 minutos em um desses barcos.

O senhor tem um ritual quando começa a escrever um romance?

Compro um caderno bem feio. Gosto de ir à loja e procurar o mais bobo — um com capa de unicórnio que seria para uma menina de seis anos. Acho que pode ser uma tentativa da minha parte de manter as coisas bobas, de me lembrar que são apenas livros. Há muitos acontecimentos sérios no mundo e, independentemente do tipo de livro que estou produzindo, não há razão para me levar tão a sério.

Qual caderno o senhor comprou para “James”?

Tinha um penduricalho estranho e um elástico inútil para mantê-lo fechado. Parecia um livro de uma criança do terceiro ano.

O senhor disse que uma vez que começa a escrever em um cômodo específico de sua casa, é nele que termina todo o livro. Qual foi esse cômodo para “James”?

Escrevi na sala de TV. Uso a televisão como ruído branco. Os oito episódios disponíveis de “Missão: Impossível” dos anos 1960 passavam o tempo todo. Escuto as coisas em um volume muito baixo para não incomodar os outros. Eu conhecia todos os episódios e nunca olhava para a TV, mas por algum motivo isso me ajudou a me concentrar. 

Quanto do senhor está no personagem interpretado por Jeffrey Wright em “Ficção Americana”?

Esse personagem é alarmantemente parecido comigo, embora não seja eu. Eu estava em um evento em Nova York, talvez uma festa. Meu romance “Frenzy”, sobre o deus grego Dionísio, fora lançado. Uma editora me disse: “Acabei de recusar seu romance”. Eu respondi: “Tudo bem. Acontece”. Nunca levo essas coisas para o lado pessoal. Mas então, ela perguntou: “Você pode me dizer o que ele tem a ver com pessoas negras?”. Parei e pensei: “Eu me pergunto se ela teria indagado a Saul Bellow o que seu romance tem a ver com o povo judeu ou a John Updike o que seu livro tem a ver brancos conservadores”.

O sucesso de “Ficção Americana” mudou sua vida?

Outro dia eu estava em uma loja de bagels. Foi muito estranho, esse homem ficou me olhando e eu pensei que talvez pela primeira vez na vida eu estivesse sendo atraente. Então, me aproximei do balcão e tive que dar meu nome e disse: “Everett”. Ele olhou para mim e falou: “Você é Percival Everett? Pensei que fosse Jeffrey Wright”.

Esta entrevista foi editada para maior clareza.

O romance “Erasure”, de Percival Everett, de 2001, inspirou “Ficção Americana”, que recentemente ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado Foto: Rich Stapleton para a WSJ Magazine

traduzido do inglês por investnews