Meninas desaparecidas: como a política chinesa do filho único separou famílias
A ONU estima 24 milhões de ‘meninas desaparecidas’ na China desde o início da político do filho único
Ricki Mudd nasceu na China em 1993, durante a era da política do filho único. Ela se lembra apenas de fragmentos de sua infância, mas ficou sabendo que passou parte dela escondida em uma sacola.
Aos cinco anos, estava em um orfanato chinês quando foi adotada, uma das mais de 150 mil crianças chinesas que foram para o exterior. A maioria eram meninas. No Ocidente, essas crianças eram uma das consequências mais visíveis da política do filho único, que terminou em 2016. Este mês, Pequim determinou o fim das adoções estrangeiras.
A China está enfrentando uma crise demográfica, com queda nas taxas de natalidade e um rápido envelhecimento da população. As políticas de controle da população deram lugar a novas políticas na direção oposta. Porém, um dos legados da política do filho único é a escassez de mulheres em idade fértil.
LEIA MAIS: A regra na China é aposentadoria aos 50 anos. Mas isso vai mudar
Por causa de um decreto do governo que levou a abortos forçados e esterilizações, milhões de meninas nunca nasceram, ou então foram escondidas das autoridades. No processo, a proporção de gênero na China foi ficando cada vez mais distorcida, com 117 meninos nascidos para cada 100 meninas em 2004, em comparação com 106 em 1980, mostraram dados das Nações Unidas.
Um estudo do Fundo de População da ONU baseado no censo chinês de 2010 faz uma estimativa: 24 milhões de “meninas desaparecidas” do país, aquelas que em circunstâncias normais teriam nascido, mas que estão ausentes da população.
As meninas enviadas para outros países constituem uma pequena parte desse vazio e várias delas representam a escolha impossível que muitas famílias tiveram de fazer.
As adoções internacionais diminuíram nos últimos anos e praticamente pararam durante a pandemia. Nas duas décadas anteriores, famílias americanas adotaram mais de 80 mil crianças chinesas, como mostram dados do Departamento de Estado americano. Mais de 80% eram meninas.
À medida que iam se tornando parte da vida americana, a percepção era de que essas meninas haviam escapado de uma sociedade onde não eram valorizadas.
“Eu suspeitava que as mulheres eram consideradas inferiores na China”, disse Mudd.
O fato de que havia mais detalhes em sua própria história ficou claro depois que seus pais biológicos rastrearam o endereço de sua família adotiva e que ela foi à China para conhecê-los.
Lá, aos 12 anos, soube que seu nascimento havia complicado a situação de sua família. O lado materno queria mantê-la, mas a mãe de seu pai, sua nainai, argumentou que eles deveriam preservar sua cota de nascimento para um filho. Era uma atitude especialmente comum na China rural, onde os filhos são vistos como a continuação de uma linhagem.
Em “Ricki’s Promise”, documentário de 2014 de Changfu Chang, professor da Universidade de Millersville, na Pensilvânia, Mudd descreveu como seus pais a mantiveram escondida das autoridades, carregando-a em uma sacola de supermercado nas raras ocasiões em que saíam com ela. Eles a entregaram a uma família adotiva quando a menina tinha três anos, mas depois que as autoridades locais descobriram sua existência, ela foi enviada para um orfanato. Seu pai tentou em vão recuperá-la. Dois anos depois, ela voou para Seattle com seus novos pais.
LEIA MAIS: Como a indústria da China está causando um rombo na economia global
Quando Mudd conheceu seus pais biológicos, eles estavam divorciados, pois foram incapazes de superar a ruptura entre os dois lados da família por causa de seu destino.
Mudd ficou emocionada quando seu avô materno começou a chorar ao vê-la. “Ele deve ter ficado muito preocupado comigo”, disse ela. “Ele realmente me amava.”
Ela encontrou seu irmão mais novo, nascido dois anos depois dela, no karaokê, e se aproximaram cantando juntos a música popular “Te amo como os ratos amam arroz”.
Em uma segunda viagem à China, aos 18 anos, seus pais lhe pediram desculpas por terem se afastado dela. Ela finalmente conheceu sua nainai, que lhe preparou uma refeição. Mudd ficou chateada quando seu irmão disse que seus pais a amavam mais do que a ele. Ela respondeu que eles estavam apenas se sentindo culpados. No final da visita, disse à mãe biológica para tratar melhor o irmão.
Seus pais biológicos não quiseram ser entrevistados.
História da adoção
Nos anos 1990, uma década após o início da política do filho único, as autoridades de planejamento familiar iniciaram repressões mais severas, inclusive aos arranjos informais em que as meninas eram criadas por parentes ou vizinhos dos pais. Isso fez com que muitas crianças fossem enviadas para orfanatos estaduais e abriu as portas para a adoção internacional.
“O governo [chinês] em nenhum momento quis enviar muitos bebês para o exterior para adoção estrangeira”, disse Martin Whyte, professor emérito de sociologia da Universidade de Harvard. “Mas foi uma consequência da severidade da política do filho único, combinada com os costumes existentes nas aldeias rurais.” Whyte e sua esposa estavam entre os primeiros americanos a adotar meninas da China no início dos anos 1990.
Kay Johnson, que escreveu vários livros sobre as implicações da política de filho único, incluindo o de 2004 “Wanting a Daughter, Needing a Son” (Querendo uma filha, precisando de um filho), descobriu que muitas das crianças em orfanatos vinham de pais ou famílias adotivas que queriam mantê-los, mas tinham pouca ou nenhuma escolha. Johnson morreu em 2019.
Sua filha, LiLi Johnson, professora da Universidade Dalhousie em Halifax, na Nova Escócia, foi uma das primeiras meninas chinesas adotadas e levadas para o exterior. Em um universo alternativo, disse ela, é possível que tivesse sido adotada por uma família chinesa — “ou que eu não tivesse sido abandonada, para começo de conversa”.
Os orfanatos eram subfinanciados e superlotados. Taxas e doações coletadas de grupos de adoção no exterior ajudaram a aliviar a pressão financeira.
“A agência central de adoção da China e os orfanatos locais pareciam considerar [a adoção internacional] uma prática comercial”, disse Xue Xinran, escritora e cofundadora da Mothers’ Bridge of Love, organização sem fins lucrativos com sede em Londres dedicada a apoiar adotados chineses.
O Centro de Bem-Estar e Adoção Infantil da China, agência do Ministério de Assuntos Civis que lida com adoção no exterior, não respondeu a um pedido de comentário.
LEIA MAIS: A economia da China está com problemas, mas Xi Jinping prefere desviar deles
O crescente fluxo de crianças deixando os orfanatos estatais incomodou muitos chineses, incluindo algumas autoridades, de acordo com Robert Glover, fundador da Care for Children, instituição de caridade com sede em Norwich, na Inglaterra. Em 2003, foi contratado como consultor em uma tentativa nacional para colocar crianças carentes com famílias na China.
Uma das autoridades com quem Glover trabalhou foi Yan Mingfu, que havia sido vice-ministro de assuntos civis no início dos anos 1990. Glover se lembra de Yan ter dito que lhe doía ver crianças chinesas deixando a China para adoção. Yan morreu no ano passado.
A maioria das adoções foi realizada no consulado americano em Guangzhou, onde um hotel, o White Swan (Cisne Branco), estava sempre tão cheio de pais americanos conhecendo seus novos filhos que ficou informalmente conhecido como Cegonha Branca.
Em 2006, a mídia oficial documentou como uma rede de tráfico estava vendendo bebês para seis orfanatos na província de Hunan, revelação que chocou a comunidade de adoção no exterior. Em 2007, a China endureceu as regras de adoção internacional e os números começaram a diminuir.
Apenas 16 crianças chinesas foram adotadas por famílias americanas no ano fiscal encerrado em setembro de 2023. Depois de anunciar o fim das adoções internacionais, as autoridades chinesas disseram a diplomatas dos EUA na China que a política também se aplicava a todos os pedidos de adoção pendentes, de acordo com um porta-voz do Departamento de Estado.
Vidas paralelas
Pouquíssimos adotados se reconectaram com seus pais biológicos. Os orfanatos muitas vezes mudaram de endereço ou fecharam. Os registros são em geral incompletos e inconsistentes.
Kati Pohler é uma das poucas que consegue imaginar a existência paralela que poderia ter tido, graças a seu reencontro com sua irmã biológica na China.
Logo depois que Pohler nasceu em uma cidade rural no leste da China em 1995, a segunda de duas filhas, seu pai a deixou em um mercado com um bilhete que dizia: “Devido à pobreza de nossa família e à pressão do mundo, não tivemos escolha a não ser abandonar nossa filha na rua”.
Pohler, agora com 29 anos e trabalhando como professora de música em Praga, foi adotada por um casal americano quando tinha um ano. Duas décadas depois, o bilhete de seu pai biológico ofereceu pistas suficientes para permitir um encontro.
Um momento que tocou Pohler — capturado por Chang, o cineasta, em um documentário de 2017, “Meet Me on the Bridge” (Encontre-me na ponte) — foi quando seus pais biológicos lhe deram um envelope vermelho tradicional cheio de notas de dinheiro, algumas delas tão antigas que não estavam mais em circulação. Eram presentes do Ano Novo Lunar que guardaram para ela todos os anos desde seu nascimento.
Sua irmã, Xu Xiaochen, disse que só soube que tinha uma irmã mais nova quando estava no quarto ano. Uma surpresa foi que sua irmã mais nova era a mais alta das duas.
As irmãs, ambas de fala tranquila e introvertidas, não culpam seus pais por terem decidido abandonar uma das filhas, citando as restrições da época.
“Ainda é difícil para mim compreender algo tão rigoroso para uma geração inteira, o governo fazendo escolhas pessoais para as pessoas”, disse Pohler.
Ela não consegue deixar de se perguntar como teria sido crescer com sua irmã na China. “Sinto falta dessa parte de mim, o que ‘poderia ter sido’, às vezes”, disse ela. Em agosto, Pohler tornou-se tia quando sua irmã, que agora mora em Hangzhou, teve um filho.
“Espero que a escolha da China de encerrar seu programa de adoção internacional signifique que o país e seu povo estão prontos para cuidar daqueles que a sociedade muitas vezes ignora”, disse Pohler.
Alguns anos atrás, Mudd, agora gerente de uma empresa de tecnologia, providenciou para que seu irmão mais novo ficasse com seus pais adotivos e estudasse nos EUA. Ele agora voltou para a China e está trabalhando com comércio eletrônico.
“Acho que ele me vê como alguém com muitos privilégios, porque a cultura americana é muito menos intrusiva do que eu sinto que a cultura chinesa é”, disse ela.
Ela acredita ter tido sorte, porque recebeu todo o amor e apoio de que precisava de seus pais adotivos.
Os orfanatos ainda existem na China, a maioria com muitas crianças com problemas médicos. “Estou preocupado com as muitas crianças com necessidades especiais em orfanatos, dada a falta de recursos dedicados a elas na sociedade chinesa”, disse Chang, o cineasta.
O número de crianças sob cuidados do Estado caiu 73% em um período de dez anos, para 144 mil no ano passado, com mais de 70% colocadas com famílias locais e não em orfanatos, mostraram dados oficiais.
Em Hunan, onde a rede de tráfico de crianças foi desmantelada em 2006, um antigo orfanato foi convertido em uma casa de repouso.
Escreva para Liyan Qi em [email protected]
traduzido do inglês por investnews