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O mercado negro que faz chegar a Starlink, de Elon Musk, aos inimigos dos EUA

Dispositivos de internet via satélite ajudam combatentes russos na Ucrânia e forças paramilitares no Sudão

Por Thomas Grove The wall street Journal
Publicado em
16 min
traduzido do inglês por investnews

Um vendedor da loja on-line shopozz.ru, com sede em Moscou, complementou seu negócio habitual de aspiradores de pó e suportes de telefone para carros vendendo dezenas de terminais de internet da Starlink, que acabaram na linha de frente russa na Ucrânia.

Embora a Rússia tenha proibido o uso da Starlink, o serviço de internet via satélite desenvolvido pela SpaceX, de Elon Musk, atravessadores proliferaram nos últimos meses, comprando terminais de usuários e enviando-os para as forças russas. Isso corroeu uma vantagem no campo de batalha outrora desfrutada pelas forças ucranianas, que também contam com os dispositivos de ponta.

O vendedor de Moscou, que em uma entrevista se identificou apenas como Oleg, disse que a maioria de suas encomendas veio dos “novos territórios” — uma referência às partes da Ucrânia ocupadas pela Rússia — ou eram “de uso dos militares”. Ele revelou que voluntários entregaram o equipamento a soldados russos na Ucrânia.

Em campos de batalha da Ucrânia ao Sudão, a Starlink fornece acesso imediato e amplamente seguro à internet. Além de resolver o antigo problema de comunicação eficaz entre as tropas e seus comandantes, a Starlink fornece uma maneira de controlar drones e outras tecnologias avançadas que se tornaram uma parte crítica da guerra moderna.

A proliferação do hardware de fácil utilização trouxe a SpaceX para a geopolítica confusa da guerra. A empresa tem a capacidade de limitar o acesso ao Starlink por meio do “geofencing”, tornando o serviço indisponível em países e locais específicos, além do poder de desativar dispositivos.

A Rússia e a China não permitem o uso da tecnologia Starlink, pois isso poderia comprometer o controle estatal da informação, além de suspeitas gerais em relação à tecnologia americana. Musk disse na plataforma X que, até onde sabe, nenhum terminal foi vendido direta ou indiretamente para a Rússia, e que os terminais não funcionariam nesse país.

O Wall Street Journal rastreou as vendas do hardware da Starlink em vários sites russos, incluindo alguns conectados a vendedores americanos no eBay. Também entrevistou intermediários e revendedores russos e sudaneses e acompanhou grupos de voluntários russos que levam os dispositivos para a linha de frente.

A investigação do WSJ descobriu que existe uma cadeia de suprimentos clandestina do hardware da Starlink usado em acordos de bastidores na África, no Sudeste Asiático e nos Emirados Árabes Unidos, colocando milhares de dispositivos brancos, do tamanho de uma caixa de pizza, nas mãos de alguns adversários americanos e acusados de crimes de guerra. Muitos desses usuários finais se conectam aos satélites usando o recurso de roaming da Starlink depois que os revendedores registram o hardware em países onde a Starlink é permitida.

Na Rússia, intermediários compram o hardware, às vezes no eBay, nos EUA e em outros lugares, incluindo mercados negros na Ásia Central, Dubai ou Sudeste Asiático, e depois o contrabandeiam para território russo. Voluntários do país se gabam abertamente nas redes sociais de fornecer os terminais às tropas. Eles fazem parte de um esforço informal para impulsionar o uso russo da Starlink na Ucrânia, onde as forças avançam.

O Kremlin não respondeu a um pedido de comentário.

Autoridades ucranianas disseram ter entrado em contato com a SpaceX para falar sobre o uso russo dos terminais da Starlink na Ucrânia e que estão trabalhando juntas em uma solução. O regulador de telecomunicações ucraniano publicou em março um decreto determinando que apenas os terminais Starlink registrados nas autoridades de Kiev funcionariam em áreas ocupadas ou ao redor da linha de frente. Contudo, não está claro quando essas novas regras entrarão em vigor ou como serão aplicadas. 

O secretário adjunto de Defesa para Política Espacial dos EUA, John Plumb, disse na sexta-feira que a SpaceX está trabalhando em conjunto com a Ucrânia para tentar acabar com o uso dos terminais no front pelos russos. “Estamos trabalhando com a Ucrânia e estamos trabalhando com a Starlink”, afirmou ele durante um briefing.

Nem a SpaceX nem Musk responderam a pedidos de comentários.

Um acordo de usuário publicado no site da empresa diz que os clientes não podem revender o acesso à Starlink sem autorização, e que aqueles que não cumprem essas regras podem perder o acesso ao serviço. As contas de consumidor geralmente devem ser iniciadas pelo usuário em seu próprio nome. Os clientes enfrentam limites na venda ou transferência dos terminais que compraram. 

No Sudão, que declarou a tecnologia ilegal, as Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês), poderoso grupo paramilitar que cresceu a partir da famigerada milícia Janjaweed do início dos anos 2000, usa a Starlink para acesso à internet de alta velocidade. As forças do governo lutam há um ano contra o grupo, que os EUA acusam de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e limpeza étnica. 

Autoridades militares sudanesas e revendedores Starlink não autorizados disseram em entrevistas que Abdelrahim Hamdan Dagalo, vice-comandante da RSF, supervisionou a compra de centenas de terminais Starlink de revendedores nos Emirados Árabes Unidos. Em setembro, o Tesouro americano incluiu Abdelrahim em uma lista negra, citando graves violações de direitos humanos por parte da RSF. 

Os terminais aumentaram a capacidade de comando dos rebeldes e os ajudaram a recrutar mais homens para a guerra, de acordo com as autoridades, inclusive nos últimos dois meses, quando grande parte do país ficou sem internet ou outros tipos de serviços de telecomunicação. 

As autoridades sudanesas entraram em contato com a SpaceX e solicitaram ajuda para regular o uso da Starlink, inclusive permitindo que os militares desligassem as áreas de serviço onde havia acesso por parte da RSF. A Starlink nunca respondeu ao pedido, afirmaram autoridades sudanesas.

Como entrei nessa guerra?

A SpaceX desenvolveu a Starlink como uma tecnologia civil, e Musk tinha grandes ambições para o serviço. Hoje, há quase 5.700 satélites Starlink operacionais orbitando a Terra, 2,7 milhões de clientes e um novo polo de produção no Texas. A receita foi de US$ 1,4 bilhão em 2022, em comparação com US$ 222 milhões no ano anterior. 

LEIA MAIS: Starlink: 56% dos satélites em órbita na Terra já pertecem à rede de Elon Musk

Como outros sistemas de comunicação espaciais, a Starlink depende de satélites em órbita, uma infraestrutura que contacta estações terrestres e terminais para dar aos usuários conexões de internet de alta velocidade.

O hardware é simples o suficiente para que, em seu site, a Starlink se vanglorie de que os usuários devem ser capazes de se conectar em minutos ao receberem um kit. O kit padrão inclui uma antena, um roteador e cabos. Os assinantes baixam um aplicativo para se registrar e controlar sua assinatura antes de se conectar ao sistema Starlink.

A Starlink diz em seu contrato de usuário que o serviço não foi projetado ou destinado para uso com armas militares. No ano passado, um alto executivo da SpaceX disse que a empresa tomou medidas para limitar o uso de seu hardware para fins militares diretos pela Ucrânia.

Musk algumas vezes expressou desconforto sobre o papel da Starlink na guerra da Ucrânia, dizendo a seu biógrafo, Walter Isaacson, que o serviço foi projetado para usos pacíficos, não ataques de drones. “Como entrei nessa guerra?”, disse ele a Isaacson.

No entanto, quem pode usar o Starlink e para quais fins nem sempre é algo muito claro. O hardware chegou ao Iêmen, devastado pela guerra, e foi contrabandeado para o Irã, que não aprova a tecnologia.

A Starlink disse que, se a SpaceX descobrir que um de seus dispositivos está sendo usado por quaisquer partes sancionadas ou não autorizadas, haverá uma investigação e a empresa pode desativar os terminais.

Depois que a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022, Musk ativou a Starlink no país. Apoiadores da Ucrânia, incluindo Polônia e a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional, compraram milhares de terminais Starlink para o país.

Os terminais ajudaram os soldados ucranianos, que estão em menor número e com menos armas, a derrotar os russos. Usando a conexão de internet segura fornecida pela Starlink, observadores ucranianos comunicam posições russas à sua artilharia através de drones.

Déficit russo

As tropas de Moscou muitas vezes não tinham o equipamento necessário para se comunicar com seus comandantes. Transmissões de rádio abertas, enviadas pelo que eram essencialmente walkie-talkies, foram bloqueadas ou captadas pela Ucrânia, transformando os soldados russos no campo de batalha em alvos fáceis.

A Rússia tentou introduzir novos dispositivos próprios, que só entraram em produção quando a invasão começou. Mas houve problemas para implementá-los na escala necessária, além das constantes falhas técnicas. Isso impediu que os russos tivessem um sistema de comunicação seguro e compatível para operações complexas.

“Como resultado, eles simplesmente começaram a falar menos uns com os outros”, disse Thomas Withington, pesquisador associado do Royal United Services Institute, think tank independente de segurança com sede em Londres. “O que está impulsionando o uso da Starlink é essa necessidade de comunicação segura, desde a tática na área das operações até a sede, além de um sistema de comunicação confiável que possa ser usado para controlar drones”, disse ele.

A Rússia trabalha há cerca de um ano para utilizar a Starlink no front, de acordo com uma pessoa com conhecimento da situação. Os russos começaram a usar os terminais amplamente no início deste ano, depois de descobrir como registrar os dispositivos em outros países, disse essa pessoa, sem dar mais detalhes. 

A procura por terminais Starlink no mecanismo de busca russo Yandex.ru devolve inúmeros revendedores como Oleg, que vendem o hardware on-line para compradores em Moscou e fora da capital russa.

Um site, strlnk.ru, prometia “desempenho testado” nas áreas ocupadas da Crimeia, Luhansk, Donetsk e Kherson, com taxas mensais a partir de US$ 100. O site fornecia contatos para um revendedor, incluindo um número de celular russo e um e-mail Yandex. Um representante da empresa não quis falar com um repórter do jornal.

Muitos dos revendedores na Rússia anunciam o hardware abertamente. O site para o qual Oleg trabalha exibe ofertas do eBay de pessoas de Ohio a Nova Jersey vendendo terminais Starlink. 

Um porta-voz do eBay disse que a empresa “cumpre as leis e regulamentos dos países em que opera e segue leis e sanções internacionais relevantes”. O EBay não mencionou as ofertas dos EUA constantes do site do empregador de Oleg. 

Voluntários costumam transportar o equipamento para a linha de frente. 

Valentina Kornienko e sua irmã conquistaram seguidores nas redes sociais no aplicativo de mensagens Telegram ao postarem sobre a entrega pessoal de encomendas. Elas divulgaram um vídeo em fevereiro em que aparecem entregando cinco terminais Starlink para soldados russos que lutam no leste da Ucrânia. Contaram que foi o primeiro de 30 sistemas destinados a ajudar as tropas de Moscou a dominar as forças ucranianas. 

“É algo novo e muito necessário, a Starlink”, declara Kornienko no vídeo. “Vamos testá-lo, e a próxima entrega será maior.”

No desenrolar da guerra, às vezes não fica claro exatamente onde a Starlink pode ser usada e para quê.

(Ilustração: Emil Lendof/ The Wall Street Journal | Fotos: Getty Images e Bloomberg)

Em setembro de 2023, Musk disse que recusou um pedido para ativar a Starlink na Crimeia, a península ucraniana do Mar Negro anexada pela Rússia em 2014, alegando que Kiev queria usar o serviço em um ataque a navios russos. Em um post no X, Musk disse que isso teria tornado a SpaceX cúmplice de um grande ato de guerra e escalado o conflito. 

Os revendedores russos da Starlink anunciam em seus sites que a Crimeia não está mais no “geofencing”, assim como as regiões ocupadas pela Rússia no leste e no sul da Ucrânia, onde as tropas de Moscou estão usando os sistemas em sua luta para tomar mais territórios ucranianos.

Um major de 27 anos da 92ª brigada da Ucrânia que usa o pseudônimo Angel disse em uma entrevista que viu russos usando a Starlink pela primeira vez no início deste ano, porque eles não pensaram em camuflar a característica antena branca, que mede cerca de 60 centímetros de altura e 30 de largura. 

“Eles estão usando principalmente os modelos mais novos”, contou ele, observando que os mecanismos russos são alvos de alta prioridade. “Isso mostra que há operadores de drones em algum lugar próximo.”

Ele disse que não notou nenhuma mudança no comportamento ou na estratégia russa desde que começaram a usar o Starlink.

Solução alternativa no Sudão

No Sudão, a Starlink não teve seu uso oficialmente autorizado. Mas a RSF descobriu uma solução alternativa que permite sua utilização.

Três revendedores sediados em Dubai disseram ao WSJ que, desde julho, enviaram centenas de dispositivos Starlink para o Sudão. Antes de enviá-los para o Chade ou o Sudão do Sul, disseram os revendedores, eles os ativam em Dubai e compram um pacote de roaming para toda a África, a um custo de cerca de US$ 65 por mês. Isso, segundo eles, permite que os usuários no Sudão contornem a falta de autorização local da Starlink no país. 

A Starlink disse em sua conta oficial no X que não envia terminais para Dubai e que não autorizou nenhum distribuidor terceirizado a vender seu hardware lá.

Como os dispositivos da Starlink chegam ao Sudão:

Kits são produzidos nos EUA/Contrabandistas nos Emirados Árabes Unidos os enviam à capital do Chad/Os kits cruzam ilegalmente a fronteira entre Chad e Sudão (Fonte: Contrabandistas e militares sudaneses)

Os revendedores afirmaram ter comprado um número menor de dispositivos no Quênia, um dos poucos países africanos que autorizou a Starlink, e em Uganda, que está em fase final de autorização de uso.

Mesmo antes disso, a RSF derrubava regularmente torres locais de telefonia celular, linhas de energia e outras infraestruturas de comunicações civis antes de grandes ofensas, de acordo com especialistas que monitoram o conflito.

Autoridades militares sudanesas disseram que um vídeo compartilhado pela conta oficial da RSF na plataforma X em março é um exemplo de como o grupo está usando a Starlink para mostrar sua força e atrair novos recrutas. O vídeo foi feito em El Geneina, capital de Darfur Ocidental, que não tem acesso à internet além da Starlink desde o início de fevereiro.

No vídeo, um proeminente líder árabe em Darfur, Masar Abdelrahman Aseel, diz a um grupo de combatentes uniformizados da RSF — alguns deles carregando metralhadoras e cacetetes de madeira — que está enviando mais cem mil combatentes para ajudar a milícia a vencer a guerra. Aseel afirma poder enviar até um milhão de combatentes para apoiar a RSF.

As autoridades sudanesas e um pesquisador que tem monitorado o uso das mídias sociais durante a guerra disseram que o clipe foi amplamente compartilhado no X, bem como por meio de grupos associados à RSF no WhatsApp e no Telegram.

Dois dos revendedores entrevistados pelo WSJ garantiram estar cientes de que fornecem dispositivos Starlink para a RSF. Depois de enviarem os kits para as capitais do Chade e do Sudão do Sul, os aparelhos cruzam a fronteira para o Sudão por meio de redes de contrabando controladas pela RSF, disseram os dois traficantes.

A RSF e seus aliados locais venderam alguns kits Starlink no Sudão, cobrando até US$ 2.500 cada — mais de cinco vezes o preço de venda oficial, disse Khattab Hamad, especialista sudanês em tecnologia da informação que trabalha como pesquisador do grupo de direitos digitais Collaboration on International ICT Policy for East and Southern Africa. Em algumas partes de Darfur, a RSF está exigindo impostos dos proprietários dos dispositivos, cerca de US$ 500 por ano, afirmou ele.

Em muitas cidades sudanesas, a RSF e os civis que obtiveram dispositivos Starlink montaram lan houses improvisadas, cobrando dos usuários entre US$ 2 e US$ 3 por hora para conectar smartphones ou laptops, de acordo com trabalhadores humanitários e ativistas locais.

Em janeiro, o líder do órgão regulador de telecomunicações do Sudão, Gen. Al-Sadiq Jamal Al-Din Al-Sadiq, escreveu uma carta ao escritório de Licenciamento e Ativação Global da SpaceX nos EUA reclamando da proliferação de dispositivos Starlink no Sudão. 

A agência, de acordo com dois funcionários sudaneses familiarizados com a carta, pediu à SpaceX que estabelecesse uma unidade conjunta com o governo sudanês para regulamentar as operações da Starlink no país, inclusive permitindo que os militares desligassem as áreas com acesso ao serviço usadas pela RSF.

As duas autoridades disseram que não houve resposta da SpaceX, levando o regulador a ordenar uma repressão à importação de kits Starlink. Em 31 de janeiro, o regulador emitiu um comunicado declarando que o uso da Starlink não era permitido e estava sujeito a penalidades não especificadas.

Mas os militares estão tentando obter seus próprios dispositivos Starlink para ajudar a minar a vantagem tecnológica da RSF.

Mohamed, o conselheiro de inteligência sudanês, disse que as autoridades estão trabalhando para encontrar maneiras de levar os dispositivos aos militares. “Temos que ter um plano B”, disse.

Escreva para Thomas Grove em [email protected], Nicholas Bariyo em [email protected], Micah Maidenberg em [email protected], Emma Scott em [email protected] e Ian Lovett em [email protected]

traduzido do inglês por investnews