Saber ler por inteiro as demonstrações financeiras das empresas é considerado quase um pré-requisito para comprar ações. Este é um dos critérios que, junto dos anos de estudo, diferenciam os investidores experientes (mais conhecidos como “tubarões”) dos iniciantes (vulgarmente chamados de “sardinhas”). Os press releases entregam as informações “mastigadas”, mas existem atalhos que podem ajudar os amadores a entender as entrelinhas de um balanço, fugindo de receitas fáceis para investir.
Afinal, como explicar o fato de que algumas empresas acabam apresentando prejuízo em determinado trimestre mas, em resposta, as ações sobem contra todas as expectativas? Como entender quais indicadores são relevantes, fugindo da dobradinha clássica “lucro/prejuízo”? Foi preciso confrontar especialistas em contabilidade para entender este contra-senso.
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Um exemplo que se pode citar é o da Usiminas (USIM5), que reportou prejuízo líquido de R$ 395 milhões no segundo trimestre, enquanto suas ações subiram ao redor de 2% após a divulgação do resultado negativo. O InvestNews consultou a professora do Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Caroline de Oliveira Orth, e o professor e coordenador da Fundação Instituto de Administração (FIA), Marcos Piellusch, para entender quais pontos são importantes ao analisar o balanço das empresas. Veja abaixo:
1 – Nivelar as expectativas
Sem dúvida a contabilidade é um instrumento muito usado pelos analistas para compor suas carteiras de recomendações, mas se fosse simples, qualquer um faria. Não bastasse a necessidade de especialização, o instrumento contábil ainda tem uma limitação implícita.
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“O resultado corporativo mostra o passado, e o investidor está preocupado com o futuro”, alerta Piellusch. São contradições que precisamos superar quando percorremos essa intersecção entre a economia real e o mercado de ações movido por expectativas.
Orth percebe a mesma tendência e avança para um reflexão sobre o indicador mais primordial: o lucro. “Os investidores preferem mais um prejuízo verdadeiro do que um lucro mascarado”, afirma ela, correlacionando a situação da crise macroeconômica causada pela pandemia com o fato de as ações da Usiminas terem subido mesmo com o resultado pior que o esperado.
“O lucro é uma medida muito superficial”, concorda Piellusch, apresentando um exemplo familiar. Um motorista de Uber que faz sua contabilidade não irá tirar do próprio bolso todo mês o equivalente à depreciação no valor do seu carro, de modo que esta despesa nem sempre aparecerá pesando no seu lucro, mas não deixa de ser um custo operacional.
E contas à parte, existem diversos outros fatores que influenciam no preço de uma ação, desde uma recomendação feita por uma agência de risco ou grande fundo investidor, até episódios individuais da vida privada do CEO da empresa. De novo, a ideia principal aqui é enxergar os caminhos que os professores procuram para responder porque as ações de uma empresa subiram mesmo divulgado prejuízo, e usar estes caminhos como atalhos.
2 – Conhecer o RI da empresa
Se você já sabe o que é Relações com Investidores, pule estes parágrafos, caso contrário, vamos lhe apresentar um mundo completamente novo. Dá próxima vez que estiver curioso sobre os resultados de uma empresa, procure no Google o “nome da empresa”, seguido das siglas “RI”, quer dizer “relacionamento com o investidor”.
Geralmente, as empresas de capital aberto possuem sites especializados em transparência e dados caros ao investidor: datas de assembleias, lançamentos, balanço financeiro, conferências. Nesses sites, também é muito comum as centrais de download, onde será possível encontrar o ITR, ou Interim Financial Report. Nele vão estar expostos diversos números sobre a operação da empresa em um determinado período.
Por trás da contabilidade, existem alguns textos e notas explicativas que vão ajudar a entender como o cenário macroeconômico impulsionou ou enfraqueceu aquele resultado. Agora, de volta ao nosso atalho.
3 – Perguntar: é um prejuízo pontual?
Para tentar relacionar o resultado negativo da Usiminas com a sua valorização na Bolsa, Orth deu os primeiros passos para além do lucro. Ou seja, elas procurou saber quais eram os resultados da empresa em períodos diferentes. No caso, ela notou de pronto que se tratava de um prejuízo pontual, uma eventualidade trazida pela crise da pandemia. “Ela [a Usiminas] apresentou um prejuízo em momento muito delicado da economia, e em que são raras as empresas que não apresentam”, completa Orth.
4 – Entender a composição do gasto operacional
Ao observar o setor de atuação da Usiminas e o momento econômico, Piellusch e Orth levantaram a hipótese de que a companhia teria dívida em dólar, o que geraria para a operação da empresa uma “perda cambial”, nas palavras do professor da FIA.
Para Orth, os questionamentos partem de uma observação: “raramente uma empresa tem receitas menores que os custos”. Então existe algo, que dependeria de um conhecimento maior da operação para determinar o que está empurrando os custos para sobrepor a receita. Este algo poderia ser, por exemplo, uma dívida em dólar em um cenário de disparada da moeda americana.
5 – Eliminar outras variáveis
Para fazer seu argumento, Piellusch buscou entender a precificação da ação da empresa no próprio mercado de ações. “Muitas vezes, o mercado analisa se a ação está cara ou barata, levando em conta a diferença entre o valor contábil e o valor de mercado [medido pelo valor da ação vezes o número de ações negociadas]”, explica.
Já Orth traz outros pontos a observar. “Fazendo uma rápida pesquisa pela internet, encontro dois eventos: o Itaú comprando ações da Usiminas e uma mudança na avaliação da JP Morgan [agência de avaliação de risco].” E reforça para não nos esquecermos: “Por que a contabilidade mudou é fácil de identificar. Vai estar escrito no relatório de administração e, sabendo um pouco de macroeconomia, você sabe que faz sentido. Agora, a influência no preço da ação nem sempre é explicada por um só motivo. Existem muitos fatores.”