Quem bate o olho no CEO do grupo automotivo Caoa pode até tomá-lo por estagiário. Mas não se engane. Aos 25 anos, Carlos Alberto de Oliveira Andrade Filho carrega a responsabilidade de tocar um patrimônio estimado em pelo menos R$ 10 bilhões, construído ao longo de mais de 40 anos pelo pai, de quem herdou também o nome.
Três anos depois da morte do patriarca, o futuro da Caoa permanece incerto aos olhos de quem acompanha de perto o setor automotivo do Brasil.
Ainda imberbe, Carlinhos – como é chamado por pessoas próximas – tem liderado negociações recentes e de grande importância para a Caoa. Nos últimos meses, a empresa precisou debater seu futuro junto à sul-coreana Hyundai, com quem tem uma parceria longeva. Agora, discute a relação com a estatal chinesa Chery, cujos interesses comerciais parecem se descolar dos planos da Caoa.
O leitor mais atento já deve ter percebido: CAOA é, na verdade, um acrônimo formado pelas iniciais do seu fundador. Carlos Alberto de Olivera Andrade morreu em 2021, de razão não divulgada, aos 77 anos. Sua partida acelerou os planos de transição que já eram públicos, mas a pouca idade dos filhos herdeiros – os dois homens, os dois de nome “Carlos” – criou um burburinho sobre o futuro do grupo.
Além das necessárias DRs com Hyundai e Chery, preocupa o avanço de concorrentes chinesas como BYD e GWM, que em breve vão produzir seus carros no país, em fábricas próprias. São uma ameaça ao modelo da Caoa, que já há 30 anos abre as portas do mercado brasileiro para montadoras estrangeiras.
Hoje, uma das poucas certezas é que o grupo fundado pelo “Doutor Carlos” está nas mãos de três pessoas: dos dois filhos do segundo casamento – além de Carlos Alberto Filho e o caçula Carlos Philippe, de 22 anos – e da viúva do fundador, Izabela Luchesi de Oliveira Andrade. O arranjo atual só aconteceu após o fim do imbróglio com as três filhas mais velhas de Carlos Alberto. Os acordos, estima-se, custaram R$ 900 milhões. Elas são frutos de outros relacionamentos do empresário.
Ao longo de duas semanas, o InvestNews ouviu pessoas próximas à família Oliveira Andrade e à Caoa, além de especialistas do setor e profissionais envolvidos em negócios recentes do grupo. Todos aceitaram falar com a reportagem sob anonimato. Os integrantes da família Oliveira Andrade, inclusive o CEO da Caoa, Carlos Alberto Filho, não quiseram ser entrevistados.
Éramos três
Quando Carlos Alberto de Oliveira Andrade morreu, em 2021, sua sucessão não estava pronta. Conhecido pelo estilo centralizador e já uma referência no setor automotivo brasileiro, o fundador da Caoa tinha 77 anos. Era público que os dois filhos do segundo casamento estavam sendo preparados para liderar a companhia na ausência do pai, mas ainda era bastante cedo: Carlinhos, o mais velho, tinha 22 anos e terminava os estudos na Brown University, nos Estados Unidos. O caçula, Carlos Philippe, 19, estava no meio da formação na Wharton School, também nos EUA.
À viúva, Izabela Molon Luchesi de Oliveira Andrade, coube tocar imediatamente os negócios do grupo e preparar a sucessão. Cinco dias após a morte do marido, ela assumiu o posto dele na presidência do Conselho de Administração da Caoa.
O perfil discreto de Izabela fez-se notar. A substituição no conselho foi amplamente divulgada pela imprensa na época, mas nenhuma matéria está acompanhada de uma foto de Izabela. Até hoje, nem no site da Caoa há registro do rosto da presidente do conselho do grupo.
Filha e neta de advogados, Izabela também formou-se em direito – também não há foto sua no Cadastro Nacional dos Advogados, mas o cadastro na OAB segue ativo. O pai de Izabela, Fábio Luchesi, fez fama como o “advogado dos latifundiários”, defendendo proprietários de terras desapropriadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra. Ela cresceu em uma família rica e dona de terras. E o casamento com Carlos Alberto de Oliveira Andrade, em 1998, selaria sua transição de milionária para bilionária.
Carlos Alberto já havia sido casado e tinha duas filhas: Emanuelle e Pauline Andrade. Ele também é pai de Danielly Loureiro, fruto de um relacionamento que data dos anos 1960. Danielly e a madrasta Izabela têm idades próximas, na casa dos 50 anos, e a relação entre as duas nunca foi das melhores. Piorou depois de os advogados de Danielly terem ido à Justiça para impedir que Izabela fosse a inventariante do espólio.
O esforço foi frustrado. Além de seguir como administradora do patrimônio, Izabela ainda assumiu a presidência do conselho da Caoa, reafirmando seu papel central no futuro da empresa.
A batalha de Danielly para que Carlos Alberto reconhecesse a paternidade se arrastou por décadas na Justiça. A morte do empresário levou aos questionamentos sobre a parte que lhe caberia na herança, já que somente os filhos dos dois casamentos constavam como sócios da holding familiar que controla o grupo Caoa. Por fim, Danielly vendeu seus direitos hereditários para Izabela e seus dois filhos. O valor é desconhecido.
A disputa entre os herdeiros de Carlos Alberto, no entanto, continuou nos anos seguintes, mas protagonizadas por Emanuelle e Pauline. As filhas do primeiro casamento questionaram mudanças feitas na holding da família e na capitalização de uma das empresas do grupo – ambas, supostamente, feitas sem a anuência das duas, o que seria obrigatório. Tudo teria ocorrido em benefício de Izabela, Carlinhos e Carlos Philippe.
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Em junho deste ano, essa disputa entre os herdeiros também chegou ao fim. Emanuelle e Pauline aceitaram vender suas participações na holding e na Caoa para a viúva e os filhos. Procuradas pelo InvestNews, as filhas do empresário preferiram não falar.
O Valor Econômico, que noticiou as negociações, estimou em R$ 900 milhões o custo total das transações que permitiram a Izabela, Carlos Filho e Carlos Philippe serem hoje os únicos controladores de 100% do grupo Caoa.
Hoje, Izabela segue como presidente do conselho de administração da empresa, que tem o filho caçula de 22 anos, Carlos Philippe, como vice-presidente. Carlos Alberto Filho, aos 25 anos, é o CEO.
O império Caoa
Carlos Alberto de Oliveira Andrade é personagem bem conhecido na indústria automotiva brasileira. A história do médico paraibano que saiu de casa para comprar um Landau e acabou dono de uma concessionária da Ford em situação falimentar – o que deu origem ao Grupo Caoa – é bastante difundida.
Até hoje, é a maior revendedora de carros da empresa americana no Brasil.
A Caoa ainda tem redes de concessionárias de outras marcas, somando mais de 240 lojas de carros e 150 oficinas autorizadas pelo Brasil.
Também fazem parte do grupo uma locadora de veículos, uma rede de seminovos, uma corretora de seguros – em parceria com a Évora – e uma financeira especializada em consórcios. Ufa!
Com o sucesso na revenda de veículos, Carlos Alberto viu na representação oficial de marcas que ainda não haviam fincado os pés no Brasil uma nova oportunidade. A abertura do Brasil à importação de veículos, em 1992, tornou o negócio viável. A primeira parceira exclusiva foi a Renault, negócio que deu certo por pouco tempo.
Na sequência, ele descobriu sua mina de ouro nas montadoras asiáticas interessadas em entrar no mercado brasileiro. Primeiro a japonesa Subaru, em 1998. Depois, a sul-coreana Hyundai, a partir de 1999 – o grande negócio da história do grupo.
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Em 2007, Caoa inaugurou sua fábrica em Anápolis (GO), onde passou a montar modelos da Hyundai. O acordo entre as empresas permitiu a fabricação doméstica de modelos de alto valor agregado, como a Tucson, que se tornou um grande sucesso de vendas no Brasil. A parceria também fortaleceu o mercado de peças local e fez crescer a rede de concessionárias.
Ao mesmo tempo, a Caoa cuidou bem da marca da Hyundai por aqui. Carlos Alberto sempre apostou na propaganda massiva como estratégia para transformar em objeto de desejo os produtos de uma empresa cujo nome parecia impronunciável em português. Na TV, um vozeirão anunciava carros revolucionários e seguidamente vencedores nos comparativos da mídia especializada. BMW, Porsche, Toyota… quando tinha um Hyundai no páreo, a vitória era da coreana.
A estratégia de marketing e distribuição funcionou. Ainda hoje a Hyundai é a quarta montadora que mais vende no Brasil, só atrás de Volkswagen, Fiat e General Motors – todas presentes no país há décadas.
Mas os planos da Hyundai para o Brasil não incluíam dependência perpétua da Caoa. Em 2012, a empresa asiática estreou sua fábrica própria em Piracicaba (SP). Lá, começou a produzir os carros da família HB20, feitos sob medida para o mercado brasileiro e até hoje entre os mais vendidos do país.
Tormenta
Além de um patrimônio estimado entre R$ 10 bilhões e R$ 15 bilhões (estimados por advogados de direito familiar no curso dos processos sobre a herança), Carlos Alberto legou aos filhos uma vitória importante sobre a Hyundai em um tribunal de arbitragem na Alemanha – o litígio se arrastava desde 2018, quando a companhia sul-coreana rompeu com a Caoa e tentou controlar 100% da importação e distribuição dos seus próprios veículos.
Com a vitória da Caoa, a fabricante asiática foi obrigada a manter a empresa brasileira como parceira exclusiva na produção e importação de veículos Hyundai no Brasil.
A decisão do tribunal de Frankfurt saiu 20 dias antes da morte do patriarca e foi crucial para as finanças da Caoa, garantindo ao grupo dos Oliveira Andrade uma posição vantajosa na repactuação do acordo entre as empresas, anunciada em fevereiro deste ano – o primeiro grande desafio de Carlos Alberto Filho como CEO.
Com o novo acordo, a Hyundai Brasil finalmente assumiu as vendas e a importação de todos os seus carros, unindo portfólios em uma rede de 250 concessionárias que inclui 46 unidades pertencentes à Caoa e que antes só vendiam os modelos importados da Hyundai. Nas lojas da própria Hyundai, a exclusividade era do HB20 e do Creta, feitos pela sul-coreana em Piracicaba, no interior de São Paulo.
Agora dona da estratégia comercial para a própria marca, a Hyundai viu vantagem na capilaridade da Caoa. Além disso, a Caoa ficou com uma participação das vendas totais e vai receber um valor por carro da Hyundai produzido em Anápolis – a fábrica de Piracicaba já opera na capacidade máxima.
As negociações foram lideradas por Carlos Alberto Filho. Desde que assumiu o cargo de CEO, no fim de 2022, o herdeiro do Doutor Caoa cercou-se de antigos funcionários do grupo – muitos dos quais participaram das primeiras negociações entre Hyundai e Caoa no fim dos anos 1990, quando Carlinhos estava por nascer.
Enquanto antigos funcionários retornavam ao grupo para auxiliar Carlinhos, parte do estafe que ajudava Carlos pai foi saindo aos poucos.
Mauro Correa, CEO da Caoa, deixou a empresa em fevereiro de 2023 e hoje comanda a HPE Automotores, companhia que fabrica modelos da Mitsubishi no Brasil. Márcio Alfonso, que foi CEO da Caoa Chery, hoje é diretor na GWM.
Pessoas próximas à família e à Caoa comemoraram o acordo com a Hyundai. As vendas dos importados da sul-coreana já não são as mesmas e a crescente presença das montadoras chinesas no Brasil constitui uma ameaça real à Caoa.
Com a situação entre Hyundai e Caoa resolvida, Carlinhos conseguiu riscar na sua lista dois dos maiores desafios da empresa. Além do novo contrato com a montadora da Ásia, a Caoa chegou meses antes a um acordo com a massa falida do Banco Santos.
No acordo firmado com o administrador da massa falida em julho de 2022 – quando a sucessão na Caoa estava em andamento e o CEO ainda era Mauro Correa –, a empresa automotiva pagou sua dívida com o banco por R$ 440 milhões. A Caoa era a maior devedora ali – R$ 3 bilhões nas contas do ex-controlador Edemar Cid Ferreira, morto em janeiro de 2024.
Negócios da China
As entradas de BYD e GWM no mercado de automóveis brasileiro foram sentidas pela concorrência. A BYD atacou pelo preço, forçando quedas nos valores de elétricos mais baratos de outras montadoras. Os SUVs-com-cara-de-BMW da Great Wall Motors também fazem sucesso e viraram novas opções para o público simpático aos modelos da linha Tiggo, carro-chefe da Caoa Chery.
Tanto BYD quanto GWM estão prestes a produzir localmente. A GWM, nas instalações de Iracemápolis (SP) – que já foram da Mercedes-Benz. E a BYD com uma fábrica em Camaçari (BA), onde antes funcionava a linha de produção da Ford.
Não é de agora que o mercado brasileiro está na mira das montadoras chinesas. A JAC Motors fez sua incursão no Brasil em 2011, pelas mãos do empresário Sérgio Habib, do Grupo SHC. A Chery veio ainda antes, em 2009. Era outro Brasil, com o Cristo decolando na capa da The Economist, Lula deixando a presidência com 87% de aprovação e o país caminhando para a posição número 4 entre os maiores mercados automotivos do mundo.
Só que a coisa logo desandou para as montadoras chinesas. Em 2011, um recém-inaugurado governo Dilma Rousseff se mostrou sensível às pressões das fabricantes de automóveis instaladas no Brasil. O resultado foi um aumento de 30 pontos percentuais no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de carros importados de fora do Mercosul. A decisão enterrou os planos da JAC para uma fábrica no Brasil.
Já a Chery conseguiu tirar sua fábrica do papel – a primeira fora da China. Localizada em Jacareí (SP), a unidade foi inaugurada em 2014 com a proposta de fabricar 50 mil veículos por ano, mas nunca chegou nem perto disso.
Em 2017, Caoa pagou US$ 60 milhões por 50,7% dos negócios da chinesa no Brasil, o que deu origem à Caoa Chery. A joint venture foi o mais perto que o grupo brasileiro chegou do sonho de ser uma montadora completa. No entanto, o casamento com a empresa – que é controlada pelo estado chinês – logo começou a dar problemas.
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Em 2022, a fábrica de Jacareí foi fechada com a promessa de que seria reaberta em breve para produzir os novos modelos elétricos desenhados na China. Mas a Chery tinha outros planos.
A empresa chinesa anunciou a criação das marcas Omoda e Jaecoo como suas grandes apostas para os mercados externos. Também deixou claro o interesse em trazê-las para o Brasil e permitiu que representantes das novas marcas dissessem aos quatro cantos que os veículos serão fabricados na planta de Jacareí.
A estratégia da Chery surpreendeu a família dona da Caoa. O temor dos Olivera Andrade é que o foco dos chineses na Omoda e na Jaecoo enfraqueça a marca sino-brasileira e comprometa a capacidade da Caoa Chery de concorrer com BYD e GWM. Na verdade, a Caoa Chery ainda passaria a concorrer com suas marcas “irmãs”. A Caoa só teria a perder.
Não está claro se os chineses têm interesse em descontinuar a marca Chery no Brasil. Oficialmente, não – até pela aliança local com a Caoa. Mas se a estatal chinesa botar o pé no freio em seus lançamentos para o mercado brasileiro, a Caoa Chery pode ficar sem ter o que mostrar nas suas vitrines.
A Chery poderia ainda fazer uma oferta pelo pedaço que hoje pertence à Caoa. Fontes ligadas às negociações dizem que o jovem CEO da empresa brasileira não teria interesse em se desfazer do ativo que permitiu à Caoa colocar seu nome na lista das montadoras, mesmo que fruto de uma parceria.
Produzir os veículos da Omoda e da Jaecoo na fábrica da Caoa em Anápolis também não seria viável, já que a planta está à disposição da Hyundai.
As negociações já duram dois anos. Atualmente, só 80 pessoas trabalham na fábrica de Jacareí, basicamente funcionários dedicados à segurança e à limpeza do local.
De novo, a Caoa está discutindo a relação com uma montadora estrangeira cuja marca ela ajudou a fortalecer no Brasil – mais uma que passou a desejar autonomia depois de aprender com a Caoa o caminho das pedras.
Enquanto isso, nas mais recentes – e raríssimas – aparições públicas, o herdeiro do Doutor Caoa tem falado em fazer da empresa uma montadora e distribuidora 100% brasileira, com produtos desenhados e fabricados aqui. O dinheiro viria de uma futura oferta inicial de ações (IPO, no jargão do mercado). Mas, pelo menos publicamente, não há números ou datas. Só promessas e sonhos.
As falas têm sido recebidas com ceticismo por especialistas do mercado. Criar uma montadora do zero, bancando os custos de desenvolvimento de cada modelo, exige um investimento gigantesco. E fazer isso sob a severa concorrência das montadoras chinesas parece inviável.
Eis o desafio de Carlinhos.
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