Três anos atrás, William Hamilton, um americano com ascendência japonesa, jamais havia pensado em pisar no Brasil, um país longínquo com o qual ele tinha zero conexão. Mas a pandemia levou ao nomadismo digital e, durante uma visita ao irmão, que passava férias por aqui, acabou se hospedando por uns dias no Edifício Copan, no centro de São Paulo.
Foi o suficiente para ele repensar seus planos. Hoje, o prédio ondulado virou seu segundo lar. “O Copan é um oásis”, diz ele, que passa no Brasil o máximo de dias ao ano que o visto de turista lhe permite, aproveitando os cafés e restaurantes do centro ou cantinhos da Vila Madalena – como o Beco do Batman, seu ponto favorito na cidade.
Mesmo após arrumar um emprego híbrido nos EUA neste mês, ele já tem passagem de volta para cá em novembro e cogita aderir a uma tendência em alta no Brasil: solicitar um visto de residente.
O país fechou o primeiro semestre com residência autorizada para mais de 20 mil estrangeiros de 154 países diferentes, segundo as estatísticas de imigração laboral divulgadas em 31 de julho pela Coordenação-Geral de Imigração Laboral (CGIL), órgão do Ministério da Justiça que emite as permissões segundo regras já estabelecidas pela política migratória brasileira.
O InvestNews analisou quase 395 mil processos de imigração desde 2015. Pela tendência registrada em 2024, o perfil de quem pede para viver aqui é masculino, com entre 30 e 45 anos, altamente escolarizado e contratado por empresas estrangeiras para prestar serviços pontuais em solo (ou águas) do Brasil.
Entre janeiro e junho foram 20.691 concessões. Dá 3.448 por mês, em média. Uma alta de 63% em relação à média mensal do primeiro semestre de 2023, e a maior desde 2015.
Chineses: de carona no mercado de carros elétricos
A China foi a principal nacionalidade, com 3.349 concessões em 2024, 558 por mês. A razão aí é óbvia: a onda de montadoras chinesas chegando ao país, liderada por BYD e GWM.
“Falar de imigração é falar de mercado de trabalho”, explicou Jonatas Luis Pabis, coordenador-geral do CGIL, em entrevista ao InvestNews. De acordo com ele, o fortalecimento das chinesas trouxe mais um efeito colateral para a imigração.
O fenômeno aumentou a competitividade no mercado automotivo. As montadoras que já estavam instaladas aqui, então, passaram a chamar mais estrangeiros, de diversos países, para fortalecer seus quadros.
Haitianos: a parte humanitária
Logo atrás da China vem o Haiti, com 2.531 vistos de residência no primeiro semestre. Neste caso, porém, não se trata de uma demanda do mercado de trabalho, mas de acolhimento humanitário. O Brasil sempre foi um destino amigável ao acolhimento de gente vinda do país mais pobre das Américas – lideramos as forças de paz da ONU por lá ao longo de 13 anos, entre 2004 e 2017, o que estreitou os laços entre as duas nações.
Uma portaria de 2023 facilita o trâmite migratório para quem veio do Haiti, obteve residência e, agora, deseja trazer familiares de lá.
Já o fluxo vindo da Venezuela tramita diretamente via Polícia Federal, sem detalhamento sobre os detalhes laborais. Entre janeiro e julho, foram mais de 48 mil registros de residência por meio de medidas “excepcionais e temporárias” publicadas desde 2020.
Voltando à imigração laboral, completam o top 10 em 2024 os estrangeiros vindos de Filipinas, Estados Unidos, Reino Unido, Índia, Itália, Alemanha, Japão e Bangladesh, nessa ordem.
Considerando todo o período entre 2016 e junho passado, as Filipinas são o país que mais acumulou permissões de residência no Brasil:
Mas por que tantos filipinos?
Por conta do crescimento das exportações – boa parte delas por via marítima. Em 2016, o Brasil exportou US$ 242,4 bilhões (em valores corrigidos pela inflação). Em 2023, US$ 339,7 bi. Um aumento de 31%. Num horizonte maior, o aumento é brutal: 840% desde o ano 2000.
E aí entra um dado nem tão familiar para os brasileiros: falou em comércio via mar, falou em Filipinas. O país é um arquipélago formado por 7 mil ilhas. Um quarto de todos os trabalhadores marítimos do mundo são filipinos. E alguns milhares deles atuam no Brasil. A maior parte, longe dos brasileiros. “Eles trabalham embarcados. Descem pouco em terra. Tiram a autorização de residência, mas não se fixam. Vêm e vão, vêm e vão”, diz Jonatas.
O mar não atrai apenas filipinos, claro: 20% dos imigrantes que vieram trabalhar no Brasil labutam em navios com bandeira estrangeira.
Jogadores de Camarões, abatedores de Bangladesh…
Um cruzamento dos 12 países com mais vistos emitidos em 2024 (desconsiderando a reunião familiar) e das 17 ocupações mais procuradas, que concentra 5.279 residentes (um quarto do total) revela mais especificidades nos perfis laborais de cada nação.
Enquanto os chineses são majoritariamente técnicos e os filipinos atuam basicamente na marinha mercante, de Camarões vieram 543 pessoas para atuar especificamente como atletas profissionais de futebol. Curiosidade: outros 11 vieram como treinador ou preparador físico. O total foi de 553. Ou seja, apenas um veio com alguma ocupação não ligada ao futebol.
Outros 454 cidadãos de Bangladesh conseguiram visto para trabalharem como abatedores – 90% do total de ocupantes dessa função.
Já 86 japoneses têm o cargo de diretores de empresas e 75 cidadãos dos Estados Unidos receberam autorização para atuarem como missionários:
Mercosul também em alta
Os números da CGIL incluem países do Mercosul, mas em menor número, já que um acordo permite que os cidadãos do bloco possam solicitar residência no Brasil diretamente na Polícia Federal.
Segundo o Observatório das Migrações Internacionais (Obmigra), todos os oito países vizinhos tiveram alta nos registros de entrada, na comparação com o ano anterior.
Foram mais de 37 mil no total do ano passado, aumento de 18%. No primeiro semestre, segundo levantamento do Obmigra feito a pedido do InvestNews, já foram 18 mil, média de 3 mil por mês, com destaque para Argentina e Peru, que mantêm média mensal acima da de 2023.
Foi esse o mecanismo usado pelo argentino Francisco Simon em 1999, quando era um jovem solteiro recém-formado em Buenos Aires e recebeu de um compatriota argentino uma oferta de emprego a mais de 2 mil quilômetros de distância, em São Paulo.
Essa aventura de 25 anos atrás ainda não acabou: aos 51 anos, com esposa, filhos e um apartamento paulistanos, ele é descrito como “o argentino mais brasileiro do Brasil” no emprego atual: Simon é country manager nacional da fintech Clara, multinacional de pagamentos.
Ele chegou a passar três anos no Rio de Janeiro, que foi o estado com mais residências aprovadas neste semestre (7.869), principalmente por causa do trabalho marítimo, seguido de perto por São Paulo, com 5.632.
Simon diz preferir São Paulo pelo ambiente mais urbano e a facilidade de chegar de carro à praia, à montanha e ao isolamento da natureza. Nutriu por anos o hábito de levantar cedo aos sábados para comer pastel de feira no seu bairro do coração, a fronteira entre Pinheiros e Vila Madalena. “É um evento cultural muito específico”, diz.
Foi aqui que ele trilhou uma carreira em multinacionais como Microsoft, Sony e Meta, mas sem sonhar com uma transferência para as matrizes.
“Sempre soube que era feliz no Brasil. Estou convencido de que continuarei morando aqui para o resto da minha vida.”
Francisco Simon, argentino e country manager da clara no brasil
Simon e o americano Hamilton têm origens e histórias distintas, mas ambos concordam que a diversidade do Brasil e a hospitalidade dos brasileiros são diferenciais raros no resto do mundo.
Hamilton, como dissemos, é um nômade digital – não aparece no radar da CGIL. Desde 2021, quando o Brasil adotou uma regra específica para oferecer residência por até 2 anos a estrangeiros que façam trabalho remoto sediados no Brasil, quase mil autorizações já foram concedidas.
No primeiro semestre, o ritmo foi de 64 novas concessões por mês nessa modalidade – alta de 74% em relação a 2023, com 40% delas representando pedidos de prorrogação da estada. O perfil é de pessoas entre 20 e 24 anos, principalmente de países ricos.
A medida foi tomada pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg) a pedido, segundo as atas de reuniões, de prefeituras como a do Rio de Janeiro, para alavancar a economia após a pandemia.
As autoridades citaram o êxito de outras cidades do mundo, como a Cidade do México, para atrair trabalhadores remotos. O governo municipal da capital mexicana divulgou que, em 2021, 15% do faturamento com turismo (mais de US$ 500 mil) veio dos nômades digitais.
Pabis, coordenador da CGIL, diz que o número de nômades digitais no Brasil ainda é baixo por dois motivos. Primeiro, pela dificuldade de o detentor do visto de turista apresentar documentos comprovando a renda mínima de US$ 1.500 por mês, exigida pela nova portaria.
Em segundo lugar vem o desconhecimento das regras. “De modo geral, os países vinculam sua política de migração laboral ao desenvolvimento econômico”, diz ele, citando casos como o da Espanha, que aprovou uma lei específica para startups, e o da Tailândia, que tem normas mais rígidas que as nossas para nômades digitais, mas investe em campanhas pesadas para atrair esse público.
Além dos nômades digitais, o Brasil também concede residência para outros casos ainda pouco divulgados. Vale para quem investe a partir de R$ 1 milhão em imóveis ou R$ 500 mil numa empresa aberta aqui.
Novas resoluções devem sair em breve, antecipa Pabis: uma, já aprovada, para facilitar a permanência de estudantes de fora que concluam a graduação em universidades brasileiras e outra, ainda em estudo, para atrair investidores interessados em aportar recursos na economia verde.