No começo de 2023, Marcio Carlomagno era só preocupação com as dívidas do seu time de coração. Executivo do São Paulo Futebol Clube, ele recebeu do presidente do time, Julio Casares, a tarefa de renegociar as obrigações que o Tricolor tinha com vários bancos, como Bradesco, Daycoval, Rendimento e Tricury. Só com os empréstimos bancários, o passivo financeiro estava na casa dos R$ 240 milhões.
E a solução veio da Faria Lima. Em vez de sentar com os bancos, ou cogitar uma SAF, o clube foi por um caminho mais sofisticado, e menos ortodoxo: montou um fundo de investimentos.
O São Paulo tinha pressa.
Dois terços da dívida venceriam em até 12 meses. O terço restante precisava ser pago em 18 meses. Além de curta, a dívida era cara. “A média era CDI + 9%, CDI + 10%. A gente chegou a pegar operação CDI + 11%”, disse Carlomagno ao InvestNews. Os empréstimos serviam a propósitos diversos, alguns bem típicos de times de futebol, como a compra de atletas. “Mas isso estava fazendo a gente patinar financeiramente”, reconhece.
Os primeiros planos para a reestruturação financeira do time do Morumbi envolveram frustradas tentativas de renegociar com os credores – “primeiro batemos nas portas dos bancos que, teoricamente, são nossos parceiros” –, o que incluiu até uma tentativa de sindicalizar as dívidas. Não deu em nada. Além das conversas com bancos, o São Paulo tinha procurado family offices e fundos de investimentos.
LEIA MAIS: ‘Onde vai passar o jogo?’: a disputa entre Faria Lima, Globo e YouTube pelo futebol brasileiro
A situação só foi para frente depois de meses de conversa com a gestora Outfield, especializada em negócios do mundo esportivo. A empresa tem experiência em operações envolvendo Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs), mas o São Paulo não queria vender parte do patrimônio para um investidor, como fizeram outras equipes em dificuldades financeiras nos últimos anos – Cruzeiro, Botafogo e Vasco, para ficar nas mais conhecidas.
“Desenhamos uma série de formatos e procuramos a Galapagos Capital, [outra empresa do mercado financeiro] com quem temos uma parceria nos veículos de crédito”, conta Pedro Oliveira, sócio-fundador da Outfield. Juntas, as duas empresas botaram de pé um Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDC) de proporções inéditas no futebol brasileiro.
O FIDC funciona como uma espécie de condomínio de investidores que emprestam dinheiro a um ou mais beneficiários – neste caso, só o São Paulo – e ficam com cotas. Esse empréstimo é garantido por recebíveis, que aqui incluem direitos de transmissão, patrocínios, contribuições dos sócios do SPFC, naming rights e até receitas advindas da venda de jogadores.
Com essa estrutura, o São Paulo está levantando R$ 240 milhões para zerar a dívida bancária. Na prática, está trocando uma dívida curta e cara por uma mais barata e longa, o que deve liberar orçamento para outras áreas do clube. Lembra daquele CDI+11%? A taxa do FIDC deve ficar bem abaixo disso, graças ao risco diminuto da estrutura.
O que há de novo?
Os FIDCs e o futebol brasileiro já se cruzaram em outros momentos, mas as circunstâncias eram bem distintas.
“O Paulo Nobre chegou a usar um FIDC para restaurar a dívida do Palmeiras, mas ele usava capital próprio, foi quase um mecenas. O São Paulo mesmo já tinha tido a experiência de um FIDC, mas ele estava só cedendo recebíveis para antecipar recursos, não tinha um viés de reestruturação da dívida”, relembra Andrea Di Sarno, sócio e gestor na Galapagos Capital.
LEIA MAIS: No futebol e no metrô: o que leva empresas a pagar para dar nome às coisas?
Andrea faz referência aos empréstimos concedidos pelo então presidente do Palmeiras ao clube da Barra Funda entre 2014 e 2016, que depois foram absorvidos em um FIDC de R$ 100 milhões – com o próprio Paulo Nobre como único investidor. O “mecenato” ficou evidente pela ausência de prêmio na taxa de retorno, limitada ao CDI.
Em 2019, o São Paulo levantou R$ 40 milhões com um FIDC constituído pela Ouro Preto Investimentos. Além do valor muito menor do que o fundo atual, a grande diferença está na ausência de obrigações financeiras e de governança – os covenants. Guarde essa palavra, ela é importante para entender essa história e você verá mais detalhes adiante.
“O grande turning point aqui foi o São Paulo enxergar o FIDC como um instrumento para auxiliar o clube na resturação financeira. Não tem nada semelhante no futebol” argumenta Di Sarno.
Galapagos e Outfield foram buscar nos bolsos de seus clientes o dinheiro que alimenta o fundo feito sob medida para o momento e para os planos do São Paulo. Para convencer os donos da grana, os gestores fizeram ajustes técnicos no desenho do FIDC que revelam seu ineditismo – e também como os negócios do futebol são vistos com cautela pelos investidores.
O São Paulo ficou com as cotas subordinadas, que representam 40% do FIDC. É uma porcentagem excepcionalmente alta para este tipo de produto financeiro. Na prática, elas funcionam como um colchão de proteção para os investidores que detêm as cotas sêniores – os que de fato botaram dinheiro no fundo.
Em caso de problemas financeiros no FIDC, as cotas subordinadas absorvem as perdas primeiro, protegendo o capital dos investidores. O prejuízo, então, ficaria concentrado no clube.
Arrumando a casa
Os covenants – lembra da palavrinha? – são cláusulas restritivas negociadas entre as gestoras que criaram o FIDC e o São Paulo, único beneficiário deste fundo específico.
Por conta do FIDC, o São Paulo estará submetido, a partir de 2025, às seguintes regras:
- Limite de gastos com futebol: O São Paulo terá um limite de R$ 350 milhões por ano para gastos com o futebol profissional, incluindo salários de jogadores, comissão técnica, e outros custos relacionados. Nos últimos três anos, o São Paulo gastou mais do que R$ 350 milhões com futebol.
- Limite de gastos com administração: As despesas administrativas do clube também serão limitadas por um teto pré-estabelecido.
- Superávit financeiro: O São Paulo é obrigado a gerar superávit financeiro em todos os exercícios sociais até o prazo final das cotas do fundo. Isso significa que o clube não poderá gastar mais do que arrecada, garantindo a sustentabilidade financeira a longo prazo.
- Limite de endividamento: O FIDC também impõe um limite para o endividamento do clube, impedindo que ele assuma novas dívidas além de um determinado patamar.
Do ponto de vista de quem investe no FIDC – ou seja, de quem “empresta” ao São Paulo –, a operação fica menos arriscada pelo fato do São Paulo se dispor a cumprir regras fiscais e de governança que, se não forem respeitadas, dão aos credores o direito de resgatar os valores investidos. Isso fragilizaria muito as finanças do clube, além de afetar a credibilidade do São Paulo junto a bancos e possíveis credores.
Por via das dúvidas, é melhor cumprir todas as regras, né.
A grande virada
Com a terceira maior torcida do país, o São Paulo é uma das poucas equipes do Brasil com condições de apostar em um produto como o FIDC para catalisar uma mudança econômica que o coloque no mesmo patamar de times como o Palmeiras e Flamengo, hoje bem à frente dos demais clubes quando o assunto é capacidade financeira – e contas em dia.
Em outras palavras, um FIDC é para quem pode, não para quem quer.
Por estar apoiado na expectativa de receita futura, é um mecanismo que só está ao alcance de equipes que têm comprovada capacidade de geração de receitas, garantias sólidas e gestão profissionalizada. E, mesmo no caso do São Paulo, só foi possível porque em 2016 houve uma reforma no estatuto do clube que permitiu a melhoria da governança.
A situação política do time também ajudou. O FIDC foi aprovado pelo conselho do SPFC com 82% de apoio em um momento de especial força política do presidente Casares – a equipe tinha acabado de vencer o inédito título da Copa do Brasil, em 2023.
LEIA MAIS: Futebol, negócios e família: a aposta total de um faria limer no Sfera FC
O bom clima interno abriu o caminho para uma arrumação financeira que exigirá disciplina e austeridade. Se tudo der certo, estará concluída até 2030, ano do centenário do São Paulo.
A meta é chegar à efeméride faturando R$ 1 bilhão ao ano, 30% mais do que hoje, e com um perfil de dívida equilibrado. Hoje, o São Paulo deve cerca de R$ 700 milhões, que geram despesas financeiras anuais de R$ 90 milhões – três vezes o que o time do Morumbi investe na formação de atletas.
É uma situação complicada, mas que o time resolveu encarar com alguma engenhosidade e, assim, evitar a SAF, já adotada por mais 60 clubes brasileiros.
“Nós não podemos terceirizar o nosso problema, precisamos fazer a lição de casa porque o São Paulo tem condições de ser autossutentável”, defende Marcio Carlomagno, o executivo do time. “É a hora de nós conduzirmos. Precisamos ter dentro de casa as soluções para os nossos problemas.”
Veja também
- Black Friday: Camisas de futebol entram na onda dos descontos; veja lista
- Melhor do mundo, Vini Jr. já é uma empresa com CEO, CFO e faturamento anual de R$ 300 milhões
- ‘Onde vai passar o jogo?’: a disputa entre Faria Lima, Globo e YouTube pelo futebol brasileiro
- No país do futebol, sonho se torna realidade para os fãs da NFL
- Futebol, negócios e família: a aposta total de um faria limer no Sfera FC