Aliança de casal idoso. Foto: Adobe Stock

Cada vez mais brasileiros estão reescrevendo suas histórias afetivas e optando por recomeçar a vida a dois quando já estão aposentados. Essa decisão não passa apenas pelo crivo da saúde. Outras áreas, como a divisão e a proteção do patrimônio acumulado ao longo da vida, precisam ser consideradas.

De forma mais ampla, esse movimento acompanha as profundas transformações sociais e demográficas pelas quais o Brasil atravessa. De 1990 a 2023, por exemplo, a expectativa de vida do brasileiro saltou de 65,3 anos para 76,4 anos — e a projeção é que atinja 83,9 anos até 2070.

Ao viver mais, o brasileiro vem firmando mais vínculos afetivos. Veja os números: em 2022 (último ano com dados mais recentes), o país registrou 74.798 casamentos entre pessoas com mais de 60 anos, de acordo com o IBGE. Desse total, 35.029 uniões envolveram pessoas de 60 a 64 anos e outras 39.759, casais acima dos 65 anos. O crescimento é expressivo: houve um aumento de 23,5% em relação a 2018, quando foram contabilizadas 60.580 uniões nessas faixas etárias.

Embora o número total de matrimônios no Brasil tenha caído 7,8% no mesmo período, as uniões na terceira idade seguem em alta, impulsionadas por uma geração que valoriza mais a autonomia, a saúde e as novas possibilidades de relacionamento.

Até fevereiro de 2024, porém, casais acima de 70 anos eram obrigados a adotar o regime de separação obrigatória de bens, conforme estipula o Código Civil de 2002. Nesse modelo, em caso de falecimento, o cônjuge sobrevivente só podia pleitear a parte dos bens que comprovadamente ajudou a construir durante a união, ficando de fora da herança do parceiro.

Esse cenário mudou após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que garantiu a liberdade de escolha do regime de bens para pessoas com 70 anos ou mais, tanto no casamento quanto na união estável. Desde então, cartórios já registram uma mudança de comportamento: cerca de 20% dos casais em que pelo menos um dos dois cônjuges tem mais de 70 anos passaram a optar por regimes alternativos, como comunhão parcial ou universal de bens, refletindo a busca por relações mais alinhadas à realidade.

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A advogada Lorena Bentes Henriques, que integra o setor cível do escritório Fonseca Brasil, explica que o Supremo se baseou no princípio da dignidade humana para referendar o novo entendimento. “A Constituição veda qualquer tipo de discriminação em razão da idade, além de entender que pessoas conscientes de suas escolhas devem decidir o destino que querem dar aos seus bens”, diz.

Entenda a decisão do STF

O STF analisou o caso de uma mulher que buscava fazer parte do inventário do marido falecido. Eles formalizaram uma união estável quando ele já tinha mais de 70 anos. No Tribunal de Justiça de São Paulo, os desembargadores negaram o pedido. Afinal, o casal não havia formalizado o regime patrimonial e, nesse caso, a lei exige que seja aplicada a separação obrigatória de bens, no qual os cônjuges não são herdeiros um do outro.

O caso chegou ao STF em fevereiro de 2024. E lá, a decisão do TJ-SP foi mantida. Mas o Supremo abriu a possibilidade de as pessoas com 70 anos ou mais escolherem qualquer regime de bens, como o de comunhão parcial, total ou universal. Só que a decisão do STF passou a valer apenas para casos futuros.

Nessa decisão, o Supremo também estabeleceu proporções na repartição do patrimônio. Tipo: 70% dos bens ficam para um, 30% para outro. Ou partilhar os bens que adquiriram para uso comum, como uma residência de praia ou casa onde vivem, são algumas possibilidades.

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Quero mudar regime de bens: e agora?

Pessoas com 70 anos ou mais que já eram casadas ou viviam em união estável antes da decisão do STF, em fevereiro de 2024, também podem alterar o regime de bens de seu relacionamento. Para casamentos, a mudança exige o ingresso de uma ação judicial assinada por ambos os cônjuges, que precisam apresentar uma justificativa para a alteração — como, por exemplo, a consolidação de uma relação sólida ao longo dos anos.

Segundo especialistas, como a alteração costuma ser do regime mais restritivo (separação obrigatória) para um mais amplo, há maior facilidade para a aceitação do pedido, desde que não haja indícios de fraude contra credores ou prejuízo a terceiros, análise que cabe ao juiz responsável pelo caso.

Já para casais em união estável ou que ainda não formalizaram a relação, basta lavrar uma escritura pública em cartório, seja de pacto antenupcial ou de declaração de união estável, escolhendo o novo regime de bens desejado. O procedimento é realizado em Tabelionato de Notas e passa a valer para o patrimônio adquirido a partir da alteração, não retroagindo para bens já partilhados anteriormente.

A decisão do STF reforçou a autonomia das pessoas idosas, permitindo que escolham o regime patrimonial mais adequado à sua realidade, e já começa a impactar o comportamento dos casais: em estados como Maranhão e Rio Grande do Sul, entre 17% e 44% dos casais com pelo menos um cônjuge acima de 70 anos já optaram por regimes alternativos à separação obrigatória de bens em 2024.

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Regime de bens pode ser contestado?

A resposta é sim. E essa tarefa cabe aos herdeiros que desejarem contestar a decisão da pessoa idosa de não optar pelo regime de separação de bens. Para isso, é necessário demonstrar que ela não estava em plenas condições mentais no momento da assinatura do ato, o que pode levar à sua anulação.

“Eles deverão, antecipadamente, promover uma ação de interdição civil ou juntar comprovantes de medicamentos utilizados pela pessoa idosa, atestados médicos e declarações de cuidadores que embasem a falta de capacidade”, explica Júlia Moreira, sócia PLKC Advogados.

Também não é incomum que tabeliães, ao redigirem escrituras públicas, exijam das pessoas idosas atestado médico que comprove sua plena capacidade mental. No entanto, esta prática é contestada por uma parcela de advogados, com o argumento de que ela gera constrangimento.

“A pessoa idosa sofre etarismo quando questionada, em situações como essa, a apresentar qualquer tipo de atestado médico, como se necessitasse de validação de terceiros para exercer sua autonomia. A sua manifestação deveria ser suficiente, quando apresentada pessoalmente diante de um tabelião, que detém fé pública”, complementa a advogada Júlia Moreira.

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É melhor se antecipar

Que fique claro: os efeitos da decisão do STF valem para patrimônio futuro, ou seja, para depois de firmada a Escritura Pública ou feita a modificação do regime do casamento por meio de ação judicial.

Mas o genitor pode se antecipar e fazer um planejamento sucessório, mediante doação de patrimônio em vida para os herdeiros necessários, neste caso, os filhos anteriores ao segundo casamento. Os novos bens que vierem a ser adquiridos, durante o novo casamento, poderão serão destinados ao cônjuge.

Também é possível elaborar um testamento, deixando parte do patrimônio disponível (50%) para um determinado herdeiro, ou criar empresas para planejar e destinar, no momento da morte, o patrimônio para cada um dos herdeiros, medidas estas que podem evitar futuros desgastes desnecessários.

“Se por um lado não é justo que uma pessoa recém-casada fique com a herança de uma vida conquistada junto aos filhos do primeiro casamento depois de eventual falecimento do cônjuge, também não é justo que essa mesma pessoa, casada 10, 15, 20 anos durante a velhice de seu companheiro, não herde nada. O mais importante é que haja conversa sobre o assunto e tudo esteja planejado”, recomenda a advogada Marina Dinamarco.

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