A Natura tem um encontro marcado com seu futuro. Vai acontecer no dia 25 de abril a partir das 9h30. Nessa data, acionistas do Brasil e de outros países vão se reunir digitalmente para votar sobre o maior processo de reestruturação do grupo desde a compra da Avon em 2019.
As propostas deixam claras as intenções da companhia: encerrar de vez a tentativa de ser uma empresa global e concentrar sua estratégia no Brasil. Em outras palavras, retomar o ponto onde parou antes das aquisições internacionais, como a australiana Aesop, em 2013, a rede britânica The Body Shop, em 2017, e a Avon, um dos maiores ícones da indústria cosmética dos EUA, em 2019.
Na prática, a holding fez uma desglobalização: vendeu a Aesop e a The Body Shop ainda em 2023 e, agora, só falta negociar a Avon Internacional. Essa mudança de rumo aconteceu depois da constatação de que o sonho de se tornar um dos maiores fabricantes de cosméticos do planeta era, na realidade, um grande sorvedouro de recursos. Com uma estrutura tão complexa e atuando em tantas geografias – mais de 100 países no auge após as aquisições – o custo começou a ficar insustentável.
O último passo para encerrar esse capítulo da aventura internacional será dado na assembleia do dia 25, quando será votada a incorporação da holding Natura & Co pela antiga Natura Cosméticos. Significa que a estrutura criada para aquisição da Avon há quase cinco anos e que simbolizou a ascensão global do grupo deixa de existir. Isso para que a “Natura original” volte a se tornar a principal operação da gigante brasileira.
“A marca mesmo com reconhecimento forte global passou a enfrentar desafios, como rentabilidade e falta de crescimento em vários mercados.”, diz Gustavo Harada, chefe de alocação da Blackbird.
Na nova configuração da companhia, o atual CEO da Natura & Co, Fabio Barbosa, sai da direção executiva e passa a ocupar a presidência do conselho de administração. No lugar de CEO da Natura Cosméticos vai assumir João Paulo Ferreira. Essa movimentação tem uma consequência historicamente significativa para o conglomerado. Indica que o trio de co-presidentes do colegiado e sócios-fundadores, Guilherme Leal, Antônio Luiz Seabra e Pedro Passos, começa a passar o bastão das decisões estratégicas para uma nova geração de executivos.
Novo CEO vai ter de desatar nó da Avon
Ferreira, de 55 anos, teve uma passagem de 20 anos pela gigante global de bens de consumo Unilever antes de ingressar na Natura. Paulistano de fala pausada e objetiva, o engenheiro elétrico formado pela USP costuma expressar nas entrevistas uma visão pragmática sobre a marca e o modelo da companhia. São frases que soam como música aos ouvidos de investidores. “A Natura transforma os desafios sócio-ambientais em negócios”, afirmou em entrevista à CNN no fim do ano passado. “A companhia decidiu usar a biodiversidade brasileira como fonte de diferenciação e inovação e conseguiu transformar isso em produtos de altíssima performance.”
Agora à frente do grupo, Ferreira terá como um dos principais nós a serem desatados fazer a gigante de cosméticos voltar à lucratividade e, ao mesmo tempo, proteger o legado da marca. O executivo, logo de cara, vai ter de desenrolar a venda das operações da Avon fora da América Latina, medida vista pelo mercado como essencial para a companhia voltar ao equilíbrio financeiro.
A própria empresa reconhece essa questão. “A Avon International continuou apresentando desempenho insatisfatório ao longo do trimestre, enfrentando desafios para crescer receitas que impactaram ainda mais a sua rentabilidade”, disse o atual CEO da holding Fabio Barbosa na apresentação de resultados do quarto trimestre de 2024. A subsidiária Avon Products, que opera nos EUA, atualmente passa por um processo de recuperação judicial sob as regras do “Chapter 11”, legislação americana que trata do tema.
A Natura acorda do sonho internacional
A futura venda da Avon Internacional basicamente encerra o capítulo de expansão global da companhia brasileira. Virou quase um movimento de “reshoring” para a brasileira. A Natura conseguiu vender a Aesop para a L’Oréal por aproximadamente US$ 2,525 bilhões, em abril de 2023. Já a The Body Shop foi comprada pelo grupo de investimentos alemão Aurelius por US$ 254 milhões. A transação foi anunciada em 14 de novembro de 2023.
Mesmo assim, no ano passado, a Natura & Co registrou um prejuízo líquido de R$ 8,929 bilhões. O resultado reverteu o lucro obtido em 2023, de R$ 2,974 bilhões. A receita líquida do grupo alcançou R$ 24 bilhões em 2024 com alta anual de 21,5%.
A co-chefe de pesquisa de ações e chefe de varejo na XP, Danniela Eiger, ressalta que a venda da Avon fecha um ciclo e prepara a companhia para retomar a lucratividade. “É sim um passo importante, não somente para colocar nos trilhos, mas para fechar um capítulo de simplificação de estrutura.˜ A analista lembra que a empresa brasileira pagou um preço alto pelo voo internacional. “Querendo ou não, isso trouxe complexidades para entendimento do case pelos investidores e também um distanciamento em relação às geografias.”
A salvação da lavoura: simplificar a estrutura
A volta da Natura às raízes e com foco renovado em seu mercado natal ocorre em uma época em que a própria fórmula ESG passa por um questionamento de investidores: afinal, a estratégia da defesa da sustentabilidade é, de fato, um diferencial em termos de retornos de longo prazo? Ao mesmo tempo, gestoras têm debatido sobre se tem havido exagero em uma eventual visão inflexível e exclusivista que transforma alguns setores tradicionais em vilões, como o óleo e gás.
Os executivos da Natura têm evitado comentar as mudanças antes da assembleia no dia 25. Mas a empresa reconheceu em posicionamento enviado ao InvestNews que um dos objetivos é tornar a estrutura mais simples. “Ao propor a incorporação da holding não operacional do grupo pela Natura Cosméticos S.A., a companhia dá mais um passo importante no processo de simplificação e melhor prepara a governança da empresa para este novo ciclo.”
Uma empresa de perfil singular
A Natura durante grande parte de sua história foi uma empresa de donos. Isso imprimiu um perfil único ao grupo brasileiro. O modelo de negócios, baseado em valores como biodiversidade, inovação e consumo consciente, se consolidou devido às convicções pessoais de seus fundadores.
O espiritualizado Luiz Seabra, por exemplo, trouxe um senso de propósito para a companhia desde o início. Vários episódios mostram essa faceta do fundador. Um dos mais conhecidos remonta aos idos de 1969. O recém-nascido laboratório tinha perdido seu único cliente, o que levou o empresário a questionar a viabilidade do negócio.
Seabra decidiu então fazer uma consulta a um famoso adivinho, Sana Khan, muito conhecido na época por ter previsto as presidências de Getulio Vargas e Jânio Quadros, quando ainda eram jovens políticos. Ao ouvir as palavras do místico, ele sentiu um arrepio. “Vejo um trator que vai se mover lentamente no início”, disse o adivinho, enquanto tocava sua testa. “Mas vai gerar uma força que nada conseguirá deter.”
As palavras de Khan lhe trouxeram a convicção que buscava para seguir em frente: “a partir daí, a frase ‘o impossível é apenas o começo das possibilidades’ passou a fazer sentido para mim”, relembrou em uma palestra a empreendedores. “Era como se estivesse no meu coração o tempo todo.”
Já Guilherme Leal se juntou ao grupo em 1979. O atual co-presidente do conselho sempre teve um engajamento em causas sociais e ambientais. Participou, por exemplo, da criação do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.
Em 2010, Leal foi candidato a vice-presidente da República na chapa da ex-senadora Marina Silva, pelo Partido Verde. Sua visão de longo prazo sobre sustentabilidade ajudou a moldar o modelo de produção da Natura, baseado em cadeias de valor sustentáveis e interdependentes, com preocupações sobre impactos sociais, ambientais e econômicos.
O terceiro nome do trio de acionistas de referência, Pedro Passos, juntou-se ao grupo nos anos 1980. Costuma ser descrito como o mais técnico e racional e teve atuação intensa na gestão e organização interna da empresa. Gestores ouvidos pelo InvestNews avaliam o executivo como uma personalidade que se contrapõe aos estilos mais idealistas dos outros fundadores.
Um futuro que olha o passado
Agora a nova Natura vai precisar equilibrar esse legado com um processo de transformação diante das mudanças de hábitos de consumidores e da expansão das plataformas digitais. Um exemplo é conciliar a inauguração de lojas físicas em shoppings com o reforço da mais tradicional força de venda da empresa: a rede de consultoras.
Hoje são 1,6 milhão de revendedoras que, com o livrinho da Natura a tiracolo, levam os produtos da marca diretamente dezenas de milhões de consumidores. Essa legião de colaboradores se transformou em um dos grandes pilares da marca ao longo das décadas e até hoje se mantém como principal canal de distribuição do grupo.
A analista da XP, Danniela Eiger, acredita que os pontos físicos não concorrem diretamente com a venda direta e se tornam uma maneira de expor mais a marca. “A Natura tem sido mais vocal em relação à questão de multicanalidade. Nós enxergamos com bons olhos essa questão de diversificação de canal.”
Outro ponto positivo é que após se desafazer da Aesop, negócio que rendeu cerca de R$ 15 bilhões aos cofres da empresa, a questão do endividamento está endereçada, afirma Danniela. “A venda resolveu essa situação mais complexa do ponto de vista de liquidez.”
Agora falta estancar o sangramento financeiro. Harada, da Blackbird, lembra que a lição de casa inclui “focar na transformação digital, melhorar a rentabilidade, otimizar operações, reduzir custos e aumentar as vendas”. Significa que a empresa vai ter de sair do modo avião e voltar às origens daquele trator profetizado pelo adivinho consultado por Seabra há 55 anos.