O governo de Rondônia ignorou o parecer de sua própria equipe jurídica ambiental e revogou uma multa contra a JBS, a maior processadora de carnes do mundo, por ter comprado gado criado em uma das unidades de conservação mais desmatadas da Amazônia.

O procurador-geral do estado de Rondônia (PGE), Thiago Alencar, decidiu no mês passado que a multa foi indevida, sob o argumento de que a JBS comprou o gado antes de 2022. Naquele ano, a legislação foi alterada para proibir a compra de animais provenientes de áreas de conservação desmatadas ilegalmente, segundo registros administrativos obtidos pela Bloomberg News.

A decisão da Secretaria de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (Sedam) ameaça desfazer quatro anos de trabalho de fiscais ambientais e de procuradores do Estado, que multaram e processaram frigoríficos pela compra de milhares de cabeças de gado de dentro da Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná.

200.000 cabeças de gado

Criada em 1996, a reserva deveria ser destinada ao uso sustentável por seringueiros e coletores de castanha.

Até recentemente coberta por floresta, agora está tomada por pastos que, somados, equivalem à área do município de São Paulo, onde vivem mais de 200.000 cabeças de gado.

“A responsabilização dos elos das cadeias produtivas pelo desmatamento ilegal é fundamental para interromper a continuidade dos danos”, disse Jair Schmitt, diretor de proteção ambiental do Ibama, que também já multou frigoríficos.

Ao todo, a PGE moveu cerca de 50 ações contra frigoríficos, incluindo gigantes do setor como JBS, MBRF Global Foods e Minerva, por supostamente adquirirem milhares de cabeças de gado de fazendas localizadas dentro da reserva entre 2017 e 2021.

As ações judiciais demandam um total de cerca de R$ 690 milhões para ajudar a restaurar parte dos 150.000 hectares de floresta amazônica desmatados para dar lugar a pastagens e para fortalecer o combate a crimes ambientais, segundo documentos judiciais.

Ao recorrer da multa anulada, a JBS argumentou, entre outros motivos, que não poderia ser penalizada pela compra de 55 cabeças porque havia sido feita em 2017, cinco anos antes da mudança na legislação.

Os argumentos da JBS foram inicialmente rejeitados pelo diretor da Procuradoria Ambiental da PGE, Aparício Paixão Ribeiro Júnior. Em uma petição de 7 de agosto, ele concordou com a linha adotada pelos seus colegas que ajuizaram as ações, afirmando que a legislação anterior a 2022 é aplicável e que a lei brasileira responsabiliza não apenas quem causa dano ambiental, mas também quem lucra com ele.

Três semanas depois, porém, um segundo parecer assinado por seu superior, o procurador-geral Alencar, afirmou o contrário e concordou com o argumento da JBS. Ele escreveu que, antes de 2022, a legislação punia apenas ações diretas de desmatamento, e não condutas indiretas, como a compra de gado.

Em 8 de setembro, o órgão ambiental decidiu a anular a multa da JBS, no valor de R$ 2.055.000.

Versão da JBS

A JBS informou, em nota, que o pecuarista responsável pela venda de 55 cabeças de gado de dentro da reserva forneceu coordenadas geográficas falsas, e acrescentou que desde então bloqueou o fornecedor de sua lista de vendas.

A empresa responde a cinco ações civis públicas por supostamente comprar gado dentro da Jaci-Paraná, além de ter sido multada 11 vezes por esse motivo, segundo documentos dos processos.

A decisão sobre a JBS no mês passado expõe a dificuldade de aplicar penalidades na cadeia da carne bovina, principal responsável pelo desmatamento. Ao anular a multa da JBS e enfraquecer as ações judiciais, Rondônia — o estado mais desmatado da Amazônia — corre o risco de anular a investigação mais ampla já realizada que vinculou frigoríficos à criação de gado dentro de unidades de conservação na região.

As multas aplicadas por Rondônia com base em investigações realizadas entre 2021 e 2023 seguem um formato padrão, o que significa que a decisão sobre a JBS cria um precedente para liberar outras empresas de penalidades semelhantes, disse o promotor de Justiça Pablo Viscardi, coordenador interino da área ambiental do Ministério Público de Rondôna, que atua de forma independente da PGE.

“A decisão também enfraquece as ações civis públicas, já que estão baseadas nos autos de infração. Mas não é o suficiente para anulá-las, pois estão fundamentadas em mais componentes”, afirmou.

O Ministério Público de Rondônia não pode contestar a decisão administrativa da anulação da multa da JBS. Mas Viscardi afirmou que o órgão continuará auxiliando a PGE nos processos contra frigoríficos e fazendeiros.

MBRF Global Foods e Minerva se recusaram a comentar os processos, mas afirmaram que mantêm práticas rigorosas de rastreio e compra de gado.

Ao todo, 10 frigoríficos foram multados e processados por adquirir gado criado em Jaci-Paraná. Os maiores compradores, Distriboi e Frigorífico Irmãos Gonçalves (Frigon), foram condenados em primeira instância. Nenhum deles respondeu a solicitações de esclarecimento.