Faz todo o sentido. Quase um em cada dez carros zero km vendidos no Brasil é chinês. Em 2023, eram 2,3%. Em 2024, 6,6%. Agora, 9,1%, por conta de BYD, GWM e Chery. Um Big Bang automotivo.
E a expansão acelerou. Nos últimos meses, chegaram GAC, Geely e Leapmotor. Nas últimas semanas, SAIC e Changan.

Cinco montadoras, mais uma miríade de novas marcas afiliadas: Jaecoo (da Chery), Denza (da BYD), Avatr (da Changan)… Contando as que já circulam e as anunciadas para 2026, já são 19 marcas chinesas por aqui.
Esta tabela ajuda a enxergar o novelo de marcas e submarcas:
E fica a pergunta: é bolha? O mercado brasileiro tem condições de abraçar tantos players? É o que vamos ver agora.
Onde os carros chineses não vingaram
A China é o maior mercado global de automóveis, de longe. E as montadoras chinesas mandam lá, claro. Na União Europeia, o crescimento delas é vigoroso (e recente), como no Brasil. Mas em outras grandes praças a situação é outra. Os carros chineses praticamente não existem nos EUA, na Índia e no Japão. Veja aqui:
Nos EUA, a questão é o protecionismo. Ainda no governo Biden, as tarifas para os carros elétricos e híbridos vindos da China (e só da China) foram a 102,5%. Sob Trump, a conta subiu para 127,5%. Como a produção chinesa para exportação hoje é praticamente só de híbridos e elétricos, as tarifas tornaram o mercado americano uma carta fora do baralho chinês.
Na Índia, a questão também é protecionista. Mas não contra a China: contra todo mundo. A taxa de importação é proibitiva – varia de 70% a 100%, de acordo com o tamanho do carro. Com isso, 66% fica com montadoras locais (Maruti, Tata, Mahindra). E o resto com as estrangeiras que têm fábrica lá (Hyundai, Toyota, Kia, Skoda). A participação dos importados é quase traço – restrita a superesportivos e que tais.
No Japão, por fim, tarifa de importação não é o problema. Ali é taxa zero. Mas falta combinar com os japoneses. A fidelidade às marcas locais é religiosa: elas dominam 95% do mercado. Nem existem fábricas de montadoras estrangeiras lá. E os importados são basicamente as marcas alemãs de topo de pirâmide (Mercedes, BMW, Audi, Porsche).
E temos o seguinte: entre os seis maiores mercados do planeta, as montadoras chinesas só têm como expandir na própria China, na União Europeia e no Brasil. Daí a miríade de montadoras de lá brigando por um lugar ao sol – inclusive no nosso mercado. E tem espaço para todo mundo?

Para a vice-presidente global da BYD, Stella Li, talvez não. Há mais de 100 montadoras na China (sem contar as submarcas). “Algumas serão empurradas para fora do mercado”, ela disse ao Financial Times em setembro. “Mesmo 20 já seria muito.”
A seleção natural já começou. Várias montadoras chinesas de pequeno porte deixaram de existir nos últimos anos – Singulato, Enovate, Bordrin, Levdeo….
Mas vale notar que, das recém-entrantes no Brasil, quase todas pertencem a grandes grupos chineses, que estão mais para predadores do que para presas na corrida darwinista das montadoras. Uma das que não pertencem a esse grupo é a Leapmotor. Mas hoje ela é parte do Grupo Stellantis – dono da Fiat e da Jeep, entre outros cachorros grandes.

A grande exceção entre as que operam por aqui é a pequena Neta. E trata-se de uma marca que corrobora a tese de Stella Li: passa por um processo de reestruturação após a falência de sua controladora, a chinesa Hozon New Energy.
Mas para saber se há mesmo espaço para todas no Brasil e em outros mercados fora da China precisamos olhar para outro detalhe: o potencial de crescimento dos carros 100% elétricos. E ele não é dos melhores.
A freada dos elétricos
BYD e GWM introduziram os carros elétricos na paisagem brasileira. Mas os campeões de vendas das duas têm motor a combustão debaixo do capô, veja só.
O híbrido Haval H6 (em suas vááárias versões) responde por 82% das vendas da GWM. GWM que tem até picape a diesel no portfólio (a Poer, que nem híbrida é). Os 100% elétricos ficam representados ali por um único modelo, o Ora, e respondem por apenas 7,7% das vendas. Os dados são da ABVE, e relativos a janeiro a novembro de 2025.
Na BYD é diferente. Seis em cada dez dos modelos ali são elétricos puros, e eles garantiram 52% das vendas no ano até aqui. Mas o bestseller é o híbrido Song. As duas versões do carro (Pro e Plus) fizeram 32% das vendas da BYD. O Dolphin Mini, que responde por quase metade do mercado nacional de elétricos puros, fica atrás do Song dentro da BYD, com 27% do share interno ali. Isso mesmo com ele custando R$ 119 mil, contra R$ 176 mil do Song Pro, o híbrido mais barato da marca.

Esse tipo de distorção acontece porque os elétricos puros respondem por apenas 3% do mercado brasileiro – contra 10% dos híbridos. Dá para crescer? Dá, claro. Na China, um a cada três carros novos são elétricos: 34%. Mantendo o ritmo atual de crescimento, eles passam da metade no país da Muralha logo mais, em 2027.
Mas a China é um capítulo à parte no livro da eletrificação. Nos EUA, o share dos elétricos puros é de 7,6%. E está caindo. No ano passado, eram 8,1%. No Japão a curva é descendente também: 2,2% em 2023; 2,0% em 2024; 1,3% agora.
Em nenhum dos dois casos é falta de dinheiro, já que renda per capita não é problema nem em um nem em outro. No Canadá e na Austrália também não. Na terra dos coalas, são 8,1%, vindos de 7,7% no ano passado – um crescimento marginal. Na terra dos alces, queda: 6,9% de share em 2025, contra 11,4% no ano passado.
O que acontece na China, então? O seguinte: o país é o único entre os grandes mercados que resolveu o “dilema Tostines” dos carros elétricos. Vamos a ele.
O dilema Tostines
“Tostines é fresquinho porque vende mais, ou vende mais porque é fresquinho?”, perguntava o comercial do biscoito, nos anos 1980. O slogan descrevia um círculo virtuoso. No mundo da eletrificação o ciclo é outro: vicioso.
Não há tantos carros elétricos porque existem poucos carregadores nas estradas. E são poucos carregadores nas estradas porque há poucos carros elétricos – tende a não valer a pena como negócio, por falta de movimento.
Esse problema não existe na China. O governo instala carregadores a fundo perdido para viabilizar a eletrificação. São 4,5 milhões já – 1,2 milhão a mais do que no ano passado.
Já parece muito. Só que é mais ainda. Para dar uma ideia: a China tem 108 mil postos de gasolina. Vamos supor uma média razoável, de 6 bombas por posto. Dá 648 mil. Ou seja: a China tem sete carregadores elétricos para cada bomba de combustível.

Nos EUA, com seus 218 mil pontos de recarga, dá 0,25 carregador por bomba. Não basta para tornar uma viagem de carro elétrico tão confortável quanto uma com carro a gasolina – já que o tempo de recarga para quem usa elétrons é absurdamente maior. E aí o público a fim de um 100% elétrico míngua.
No Brasil? São 17 mil pontos de recarga apenas. Na conta de padaria, 0,16 carregador para cada bomba de combustível.
Na União Europeia é diferente. A estrutura de recarga é bem melhor que a nossa ou a dos EUA. São 1,1 milhão de pontos – 1,6 carregador por bomba, portanto.
Mesmo assim, há uma certa estagnação nas vendas de 100% elétricos: 14,6% do mercado em 2023; 14,0% em 2024 e 16,4% em 2025. Conclusão: eles precisam de ainda mais carregadores.
Quando o assunto é carro híbrido, a coisa muda de figura. A tendência é que, num futuro nem tão distante, todo automóvel tenha algum nível de auxílio elétrico – seja o maior de todos, dos híbridos plug-in (PHEV); seja o dos HEV (sem tomada e com motor elétrico mais fraquinho), seja o dos MHEV (os micro-híbridos, quando o elétrico só dá uma forcinha no giro do motor a combustão, sem impulsionar as rodas).
Mas os 100% elétricos ainda são carros de nicho nos grandes mercados que não se chamam China. As montadoras de lá, porém, operam hoje de acordo com a realidade chinesa, onde os elétricos puros estão em vias de se tornar maioria.
Por conta disso, elas focam boa parte de seus esforços no desenvolvimento de carros sem motor a combustão.
BYD e GWM já entenderam que não há como reinar no Brasil apostando todas as fichas nos elétricos. Mas entre as novas entrantes o cenário é diferente. No portfólio atual da GAC para o Brasil, 80% dos modelos são elétricos puros. Nos da Geely, da Zeekr, da Avatr e da MG, 100%.
Temos aí, então, uma miríade de concorrentes lutando por um nicho de 3% do mercado, e que talvez não passe dos 9% ou 10% – pelos motivos que vimos aqui. A não ser que a própria China decida investir pesado em carregadores no Brasil para acabar com o nosso Dilema Tostines. E tornar o mercado daqui realmente viável para as montadoras de lá.