A crise da Enel em São Paulo levanta uma pergunta: o que fazer quando uma concessão de distribuição parece não estar mais atendendo às necessidades dos consumidores?

Embora a legislação preveja instrumentos duros, como intervenção e caducidade, a experiência recente do setor aponta para um caminho menos traumático: a reorganização da concessão por meio de uma solução negociada, que pode incluir troca de controle associada à renovação contratual no mesmo pacote – algo especialmente importante neste caso, já que a concessão em São Paulo termina em 2028.

Embora a Enel já tenha solicitado a renovação de suas concessões em São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará, ela não é automática e depende da avaliação do poder concedente sobre a qualidade do serviço e o cumpriumento das obrigações contratais. Aí reside o grande problema da Enel, já que cinco interrupções duradouras nos últimos dois anos resultaram no anúncio, por parte do Ministério de Minas e Energia, de que a caducidade da concessão será tocada adiante.

Pressão política à parte, esse processo todo é mais complicado do que pode parecer à primeira vista.

A distribuição de energia é um negócio de retorno regulado, intensivo em capital e dependente de previsibilidade. Quando o debate público passa a girar em torno de punições extremas, o valor do ativo deixa de ser apenas uma questão operacional e passa a depender do desfecho regulatório. É nesse ponto que a experiência passada pesa.

O setor elétrico brasileiro já viveu um episódio semelhante com a própria Enel. Em Goiás, após anos de reclamações sobre a qualidade do serviço, pressão política e ameaças regulatórias, a empresa optou por vender a concessão para a Equatorial Energia, em 2022.

O caso de Goiás se tornou uma referência silenciosa no setor: quando o custo político e regulatório supera o retorno esperado, a venda passa a ser um instrumento de reorganização.

A Lei das Concessões oferece dois caminhos extremos. A intervenção permite o afastamento temporário da diretoria e a nomeação de um interventor pela Aneel, mantendo o contrato em vigor. A caducidade extingue a concessão antes do prazo, exige um processo longo e transfere temporariamente a operação ao Estado até nova licitação.

Na prática, nenhum dos dois resolve sozinho o problema central da distribuição: a necessidade de investimentos contínuos e financiamento de longo prazo. A intervenção não elimina a pressão por capital e a caducidade cria riscos operacionais e eleva a percepção de insegurança regulatória.

Por isso, esses instrumentos costumam funcionar mais como alavancas de negociação do que como desfechos desejados. É um jeito de fazer a Enel entrar buscar um comprador para a distribuidora paulistana. Segundo a Folha, no entanto, a empresa italiana não cogita vender a concessão e vai insistir na renovação do contrato.

No caso de São Paulo, a equação é ainda mais delicada. Trata-se da maior concessão do país, com impacto direto sobre milhões de consumidores. Cada apagão ganha repercussão nacional e pressiona o governo federal, já que a decisão final sobre a renovação cabe à União, por meio do Ministério de Minas e Energia.

Torres de distribuição da Enel

Em ano eleitoral, essa pressão se intensifica. O discurso público tende a endurecer, mas o custo de uma decisão abrupta também cresce. Qualquer ruptura contratual teria efeitos imediatos sobre o serviço, sobre o ambiente regulatório e sobre a percepção de risco do setor elétrico brasileiro.

Fontes do setor ouvidas pelo InvestNews avaliam que a Enel poderia ter se organizado melhor tanto na operação quanto na comunicação em momentos de crise. Ao mesmo tempo, apontam que parte relevante dos problemas decorre de fatores estruturais, como a intensificação de eventos climáticos e a falta de poda de árvores em áreas urbanas, responsabilidade dos municípios. Eventos que antes eram considerados excepcionais passaram a ocorrer com frequência muito maior, pressionando redes desenhadas para outra realidade.

Quando a renovação parecia mais provável, a Enel já falava na necessidade de incorporar a um novo contrato o conceito de “resiliência de rede”, ou seja, investimentos feitos especificamente para que a rede seja capaz de aguentar o “novo padrão” de intempéries.

A discussão sobre o que fazer com a concessão da Enel acontece em um momento em que o Brasil se consolidou como o principal destino dos investimentos chineses em energia elétrica, atraindo grandes estatais focadas em geração, transmissão e tecnologias de rede. Vizinha à Enel São Paulo, por exemplo, a CPFL Paulista pertence à estatal chinesa State Grid. É a terceira maior distribuidora país.

Ao mesmo tempo, o governo Lula vem adotando uma estratégia pragmática para destravar nós históricos do setor. Nesse contexto, a Âmbar Energia, do grupo J&F, passou a assumir ativos considerados críticos ou problemáticos, como as distribuidoras do Norte e a participação na Eletronuclear, em Angra 3. Em vez de romper contratos, a lógica tem sido transferir controle, renegociar condições e exigir investimentos, preservando o funcionamento do sistema.

É nesse ambiente que o debate sobre a Enel se reorganiza. A empresa já pediu a renovação de suas concessões, mas enfrenta um nível de pressão política e regulatória que dificulta uma simples prorrogação nos moldes tradicionais. Ao mesmo tempo, os instrumentos mais duros previstos em lei carregam custos elevados.

Entre esses dois extremos, cresce o espaço para uma solução intermediária: manter a concessão, mas mudar quem opera, usando a renovação contratual como instrumento para exigir investimentos adicionais, metas mais rígidas de qualidade e mudanças de gestão.

Nada indica que esse caminho esteja formalmente definido. Mas o histórico do setor — incluindo o próprio caso de Goiás — mostra que, quando a crise deixa de ser apenas técnica e passa a ser política, a negociação tende a prevalecer sobre a ruptura.

O futuro da concessão da Enel segue em aberto. O que já ficou claro é que ele será decidido menos pelo último apagão e mais pela capacidade de o setor encontrar uma solução que preserve investimentos, continuidade do serviço e estabilidade regulatória — três ativos tão estratégicos quanto a própria rede elétrica.