“Nada pertencia ao indivíduo, com
exceção de alguns centímetros cúbicos dentro do crânio”. A frase é do clássico “1984”, uma das obras mais influentes
do século passado onde o escritor inglês George Orwell aborda o controle dos
governantes sobre a vida das pessoas e os ambientes sombrios da sociedade sob o
poder totalitário. Esse livro foi publicado em 1949 e, mesmo tendo passado mais
de 70 anos, seu conteúdo é uma grande reflexão sobre os dias de hoje, onde os
meios digitais deram ainda mais poder de vigilância às autoridades.

Em um mundo cada vez mais
conectado, cada ação em nossos dispositivos móveis se tornou um valioso dado
para governos e corporações ditarem as regras do mercado (e também de nossas
vidas). Para falar sobre esse cenário no qual vivemos hoje e o que esperar dele
nos próximos anos, conversei com o americano Alex Gladstein, chefe de
estratégia da Human Rights Foundation
, que se tornou uma referência em
abordar a influência das novas tecnologias na privacidade das pessoas, e que
cita a obra de Orwell na apresentação “Porque a descentralização da
tecnologia importa para a liberdade
”.

Para ele, adotar uma economia
descentralizada a partir do uso das criptomoedas é a principal iniciativa para
mantermos a liberdade das pessoas vivendo na Era Digital, onde tudo é
controlado e vigiado pelas autoridades e corporações por meio das tecnologias.
Essa moeda digital, hoje utilizada por apenas 1% das pessoas em todo o mundo,
será a principal ferramenta para que possamos fazer frente ao controle cada vez
maior das autoridades em relação às nossas atividades.

Segundo Gladstein, essa vigilância
digital é ainda mais pesada em países de regimes autoritários, como China e
Venezuela, e integra um sistema que ele denomina de “engenharia social”, onde
os dados – obtidos por meio de smartphones, câmeras de monitoramento e,
principalmente, transações financeiras realizadas digitalmente – são utilizados
para mapear os comportamentos das pessoas e controlá-las.

Dentro desse sistema apontado pelo
chefe de estratégia da Human Rights Foundation, as criptomoedas aparecem como
“o primeiro ativo contra a ditadura do dinheiro”, pois prega a economia
descentralizada ao realizar transações financeiras de pessoa para pessoa sem
ter intermediários (governos, bancos, empresas de cartões etc). Além disso,
todos os dados pessoais ficam protegidos. Assim como a democracia
descentralizou o poder dos Estados, e a internet descentralizou a informação, a
criptomoeda irá descentralizar o sistema monetário.

Gladstein cita seis benefícios para
as pessoas em utilizar essa nova moeda digital: 1) impede a censura das
autoridades, já que permite realizar transações financeiras para qualquer
pessoa; 2) não podem ser desvalorizadas pelos governos, que ao emitirem mais
moedas no mercado reduzem o poder de compra das pessoas; 3) não podem ser
monopolizados pelas corporações, onde as transações passam a ser realizadas sem
intermediários; 4) não são facilmente vigiadas, pois não se utiliza dados
pessoais no uso da moeda; 5) não têm limites e fronteiras, podendo realizar
pagamentos para pessoas de qualquer país; e 6) qualquer pessoa pode ter acesso,
sem as restrições e burocracias criadas por governos e bancos.

Aproveitei para fazer algumas
questões a Gladstein sobre essa interessante tese voltada à descentralização da
economia para defender a liberdade das pessoas contra o poder totalitário e a
vigilância digital que ocorre nos dias de hoje. 

Sabemos que a China mantém um governo autoritário. Mas como a tecnologia é utilizada pelo governo chinês para restringir a liberdade das pessoas?

A vigilância ocorre por meio de dados
coletados a partir do uso de smartphones, pagamentos com meios digitais e
câmeras. Hoje, a China monitora a população com mais de 500 milhões de câmeras
espalhadas pelo país. Isso é horrível para os direitos humanos. Além disso, o
governo chinês está criando um sistema para manter as pessoas na linha e não
deixá-las serem livres a partir de uma métrica que leva em consideração não só
a questão do crédito e se estão com as contas pagas em dia, mas também se é
leal ao governo, se respeita as diretrizes do país, se tem opiniões radicais,
se pertencem às minorias sociais etc. Já há experimentos onde é possível saber
o nível da pessoa ao seu lado dentro dessa métrica, o que cria barreiras entre
elas. Esse modelo foi denominado pelo governo chinês de “harmonização”. O que
preocupa é que vários países já compraram essa tecnologia de vigilância da
China, como México, Venezuela, Equador, Espanha, Itália e África do Sul. Se vão
usar ou não eu não sei, mas é uma tendência muito ruim de impacto na vida das
pessoas.

Há a possibilidade de termos uma sociedade em que o nosso dinheiro não seja controlado por uma autoridade, seja governo ou corporação?

E por que você aponta que as criptomoedas são um meio de pagamento revolucionário? O que a difere das outras moedas?

Há quatro motivos principais para as
criptomoedas serem revolucionárias. Primeiro, é o fornecimento previsível de
dinheiro, onde foi criada como alternativa aos Bancos Centrais que determinam a
emissão de dinheiro de maneira arbitrária. Em economias fracas, a emissão de
moedas tem grande impacto na desvalorização do dinheiro das pessoas, e isso
facilita o aumento de poder dos governos. Já com as criptomoedas não há esse
problema, não tem inflação. Um segundo ponto é que não precisa de permissões
para serem utilizadas, não há um banco ou entidade para enviar ou receber o
pagamento. Além disso, eu posso fazer uma transação neste momento para qualquer
pessoa do mundo sem restrições e burocracias. Um terceiro ponto é que é uma
tecnologia que resiste à censura de governos e corporações, pois ninguém pode
impedir de realizar uma transação financeira. Qualquer operação é feita dentro
de um sistema global, não por meio de uma entidade, e isso evita que governos
autoritários impeça o envio de doações ou transações de dinheiro. E o último
ponto é que é um modelo que resiste ao confisco, onde há uma senha privada e
complexa para realizar as transações, e isso impede a retenção do seu dinheiro
pelas autoridades, diferente do que ocorre com outros ativos.

Essa tese do chefe de estratégia da
Human Rights Foundation se torna ainda mais interessante se pensarmos nos
nossos próprios hábitos financeiros. Basta tentar lembrar a última conta que
pagamos com dinheiro vivo, único meio disponível hoje que não utiliza nossos
dados. Com as transações financeiras digitais, nossos dados são colocados no
mercado a todo momento, seja para pagar a conta no supermercado, comprar um
livro pelo e-commerce ou pedir comida por aplicativo. Se a vigilância digital
lhe preocupa, recomendo que acompanhe mais o que Gladstein tem a dizer em
relação às criptomoedas.