Não é novidade para ninguém que já vivemos em um mundo completamente conectado. Hoje, nossas vidas param de funcionar ao fim da bateria dos smartphones e os aparelhos eletrônicos já interpretam nossas ações gerando uma infinidade de dados que são usados para influenciar o que compramos, assistimos e comemos. Com o advento de novas tecnologias, como o 5G, passaremos a viver em um ambiente hiperconectado onde o real e o digital estarão ainda mais integrados. Mas haverá um limite na influência das tecnologias em nossas vidas? E até onde haverá uma distinção entre o físico e o digital?

Para responder questões como essas em um mundo que se transforma a cada segundo, bati um papo com o americano Chris Dancy, especialista em tecnologia e que é conhecido como “o homem mais conectado do mundo”. O reconhecimento não é por menos: ao longo dos últimos 25 anos, ele foi monitorado por mais de 700 sensores e dispositivos, sendo uma representação das nossas vidas nos próximos anos, onde tudo estará conectado e influenciando não apenas o que fazemos mas, principalmente, quem somos.

Desse estudo, Dancy se tornou um dos grandes especialistas em relação à influência das tecnologias na vida humana, e diz que todos nós somos “ciborgues”, tamanha a dependência que temos da tecnologia no dia a dia. Ele descreve como uma “simbiose entre humanos e máquinas” a jornada que abrange o início da expansão da tecnologia em nossas vidas, ocorrida a partir de 2000, até os próximos 10, 20 anos.

Cris Dancy, o homem mais conectado do mundo
Cris Dancy, o homem ‘mais conectado do mundo’.

Sua visão é de uma influência positiva do mundo conectado na vida das
pessoas, mas toca em assuntos polêmicos na relação homem x tecnologia. Por
exemplo, o fato de grandes companhias como Google e Apple fazerem parte dos
nossos lares impactando até mesmo relacionamentos íntimos de uma família. Ou a
perda de autonomia para ações cotidianas simples, como o smartphone lhe enviar
alertas devido a uma reunião que está marcada em sua agenda digital, ou avisar
o jovem estudante de ativar o despertador por conta de uma prova no dia
seguinte.

A influência que o mundo ultraconectado terá em nossas vidas não impactará apenas o trabalho ou nossas atividades, mas sim os nossos sentimentos. E vai mais além ao citar uma certa perda de identidade por não haver mais distinção entre as pessoas e as tecnologias.

Um dos conceitos que ele prega é o de “big mother” para dar um olhar
diferente para o “big brother” cunhado pelo escritor George Orwell no romance
de 1984, e ele traz uma tese interessante onde aponta que a tecnologia nos
ajudará a encontrar um equilíbrio entre o que queremos fazer o que deveríamos
fazer. Exemplos disso são os aplicativos que já monitoram nossa saúde, nossos
hábitos alimentares, nosso sono e até mesmo nossos sonhos, como é o caso do
sistema operacional do Apple Watch lançado no ano passado.

Outra previsão que Chris Dancy faz é que até 2030 nós deixaremos de
interagir com uma tela pois acredita que não haverá mais interfaces. Segundo
ele, as interfaces do futuro estarão baseadas em nossos comportamentos e aponta
que não teremos mais “app stores” e sim “habit stores” ou, como o próprio Chris
gosta de falar, “download de hábitos”.

Você usa a palavra ciborgue para
explicar essa relação dos humanos com as máquinas. Mas o que é um ciborgue para
você?

Para muita gente essa palavra significa um tipo de robô ou algo
biomecânico. Mas na verdade se refere a algo que é orgânico, como eu e você,
talvez até um animal de estimação, e que foram integrados de alguma forma e
dependem de feedback. Então, qualquer pessoa, um smartphone ou um implante de
chip é um ciborgue. É importante saber disso pois há tantos sistemas, governos
e populações que ainda nos tratam como se fôssemos humanos com autonomia
individual. E isso não é verdade. Nós funcionamos como um grupo, como um tipo
de mentalidade coletiva.

E como você ficou conhecido como
o “homem mais conectado do mundo”?

Não era a minha meta ser conhecido como o homem mais conectado do mundo.
Mas por volta de 2005 comecei a pensar quem eu era e o que era importante pra
mim. Isso porque naquela época eu pesava cerca de 80kg a mais do que tenho
hoje, fumava e bebia muito, e estava prestes a fazer 40 anos. Então, tinha
muita coisa acontecendo na minha vida e precisava saber onde eu terminava e a
tecnologia começava. Para isso tive que simplesmente colocar a minha vida em um
sistema para que eu pudesse começar a me entender. Assim como para muitas
pessoas hoje, minha vida naquela época acontecia dentro de mídias sociais como
Facebook, Friendster, Myspace… e era lá que meus dados estavam. Meu trabalho
foi tirar meus dados desses lugares para eu começar a entender quem eu era e o que
eu valorizava. E isso não parou com as mídias sociais, eu fui mais longe. Criei
programas que extraíam a informação e mandavam os dados para outro lugar, e
finalmente, os automatizava. Então, toda vez que eu postava algo nas mídias
sociais, aquele conteúdo ia para o meu calendário do Google, e ele se tornou a
visão de quem eu era online. Passei a fazer isso com todas as minhas ações ao
longo do dia como ouvir uma música, assistir um programa de TV… tudo era
registrado e passaram a ser visíveis para mim. De repente, meu calendário
passou de 10, 20 interações por dia para centenas, e foi grandioso poder ver
tudo o que eu estava sendo capaz de fazer. Dessa forma, a tecnologia estava
analisando e revelando quem eu era. Com as inovações, eu aposentei o calendário
do Google e criei um painel de controle que mostra o meu comportamento em um
mapa e minhas tendências ao longo do tempo. Isso me dá a possibilidade de
visualizar não um dia mas sim o meu comportamento por anos, e saber se eu
estava indo em uma boa direção ou não.

Quais questões éticas e filosóficas você enfrentou em relação a essa experiência de estar ultra conectado o tempo todo?

Já que estamos falando de futuro, como fica a extensão da vida humana
com essa relação cada vez mais intrínseca com as tecnologias?

Esse é um assunto que pode parecer estranho para o futuro mas é
importante para todos nós considerar. É normal as pessoas pensarem no dia em
que irão morrer mas eu comecei a pensar no futuro da morte, ou seja, o que
seria morrer em uma vida cada vez mais envolvida por tecnologia. E não há uma
pessoa que melhor representa isso do que Michael Jackson, pois ele praticamente
já nasceu na TV e tudo que fazia era filmado. É como o TikTok e o YouTube hoje.
Toda a vida dele ficou registrada e ele mesmo jovem podia ver como ele era
quando criança, e esses registros só aumentaram com a digitalização. Por isso
que o Michael Jackson é um estudo interessante sobre a influência da tecnologia
não apenas em quem somos mas em como nós nos comportamos. Isso é interessante
pois não estamos percebendo que a nossa capacidade de morrer de verdade, já
morreu. Hoje, tudo o que fazemos na internet estará acessível no futuro. E
nesse contexto, por todos os trabalhos realizados e computação para registrar
suas características e movimentos, o Michael Jackson é uma das pessoas mais
gravadas e digitalizadas que já viveu. Cinco anos após a sua morte, quem
visitava Las Vegas podia ver um holograma dele cantando uma música que nunca
tinha sido lançada. E a tecnologia que continua trazendo o Michael Jackson de
volta à vida, continuou evoluindo, e essa interação com a vida dele é real.
Você pode pensar que isso não acontecerá com você, mas as crianças e jovens de
hoje gravam tudo o que fazem nas plataformas digitais e isso estará registrado
pra sempre. Para ter uma ideia, em 2020, uma empresa chamada Facebank se tornou
dona da representação digital de Michael Jackson, ou seja, ela pode pegar a
imagem dele e moldá-lo, transformá-lo e fazer o que quiser. Então, o Michael
Jackson hoje é tão real e vivo quanto ele era há 10, 20, 30 anos.

Não dá para negar o quão interessante é essa visão de futuro de Chris Dancy e o quanto ela nos faz pensar sobre a nossa relação com as tecnologias. Esse é um tema cujos debates só tendem a crescer devido ao mundo ultraconectado que nos espera logo ali adiante. Mas independente do crescimento exponencial de conexões digitais dessa Nova Era que se aproxima, o dever de casa de governos e instituições junto à sociedade continuará sendo o mesmo, que é o de investir em Educação e dar às pessoas condições para elas decidirem o que é melhor para elas e a sociedade. O que vai nos guiar, independente da influência tecnológica em nossas vidas, será o nosso poder de decisão. Pois as questões morais e éticas dentro desse novo cenário futurístico abordado por Chris Dancy estarão cada vez mais nas nossas mãos e não de terceiros.

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