Para saber se uma inovação é centrada no cliente ou não, não há nada mais eficiente do que se colocar no lugar dele. Parece básico, mas quem realmente faz isso?
Há algum tempo venho perguntando aos meus alunos e aos executivos que participam das minhas palestras se o Zé Delivery é uma dessas inovações centradas no consumidor. As respostas costumam variar bastante: há quem argumente que sim, enquanto a maioria afirma que não.
Entre as opiniões favoráveis costumam surgir pontos como o fato de o Zé Delivery entregar bebidas na casa do cliente de maneira conveniente, rápida, ainda gelada e com bom preço. No topo disso, a Ambev (ABEV3) passa a ter dados para entender melhor o comportamento dos consumidores finais individualmente, dados aos quais, muitas vezes, ela não teria acesso vendendo apenas pelos canais tradicionais varejistas. Tudo isso pode ajudar a empresa na sua fundação de dados, uso de analytics, personalização da relação com consumidores, gerar insights e em futuras inovações.
Só que do lado contrário, alguns argumentos apontam que o Zé Delivery não é uma inovação centrada no cliente porque certos produtos e marcas de bebidas não estão disponíveis no aplicativo, que vende predominantemente os produtos da Ambev.
Para esquentar esse debate, durante uma de minhas aulas, abri uma projeção do Zé Delivery em sala de aula e simulei uma compra como se estivéssemos em uma festa e precisássemos repor rapidamente bebidas geladas. Então perguntei aos alunos quais bebidas eles comprariam e as escolhidas foram Budweiser, Coca-Cola, Sprite, Heineken e Amstel. Tentamos simular a compra, mas não foi possível porque o app não tinha Coca-Cola, Sprite nem Amstel.
Recorremos a outro aplicativo, o Rappi, e lá encontramos todas as bebidas com opções de lojas diferentes, tempos de entrega diferentes e comparações de preços. Havia ainda a opção do Rappi Turbo, que entregaria as bebidas geladas em 16 minutos.
Depois da simulação, houve uma certa concordância entre os alunos de que o Zé Delivery pode até ser uma inovação centrada no cliente, mas há outros negócios como Rappi e iFood que oferecem quase tudo em um mesmo lugar e eles, sim, são ainda mais centrados no cliente. Já o Zé Delivery pode acabar refém dos interesses da própria Ambev, e este fator impõe um certo desafio adicional nesse tipo de concorrência.
Pontos de atenção na estratégia da Ambev
Ao observar a Ambev reportar ao mercado que o Zé Delivery representa cerca de 6% das suas vendas totais, a questão a ser endereçada é: será que a Ambev já não teria grande parte dessas vendas de qualquer maneira? Afinal, quem gosta de Budweiser, ou de outras de suas marcas, muito provavelmente irá comprá-las na Rappi, no iFood ou no Uber (mercado).
O ponto preocupante é que a Ambev gasta muito para adquirir novos clientes para o Zé Delivery e para estimular o reconhecimento, ou awareness, do seu app. Para se ter uma ideia, a marca é uma das anunciantes do Big Brother Brasil 2023 e estima-se que tenha investido cerca de R$ 37 milhões de reais para as aparições. Ela também tem feito aparições em amistosos de futebol e na final do campeonato paulista. Imagine o custo de tudo isso, além de descontos, promoções e cashbacks oferecidos!
De fato, a audiência em todas essas campanhas têm sido muito alta e certamente o Zé Delivery crescerá, mas se ele quer competir neste mercado de aplicativos de entrega, é necessário um alto investimento.
Estima-se que o Zé Delivery tenha alcançado 4,8 milhões de usuários ativos mensais. A Rappi tem o dobro, cerca de 10 milhões. Além disso, iFood e Rappi valem cerca de $5 bilhões de dólares cada uma.
O desafio crítico do Zé Delivery
Esses números, contudo, não revelam um problema crítico: o grande desafio no longo prazo é o modelo de negócio do Zé Delivery.
Pensem por um momento com a cabeça do consumidor: se ele quer comprar marcas da Ambev, usa o Zé Delivery. Se quer comprar outras marcas ou categorias de produtos, acessa o Rappi. Para comida de restaurante, iFood. Isso vai contra a ideia de oferecer uma solução integrada ao consumidor, especialmente para o Zé Delivery que tem opções mais limitadas do que seus concorrentes.
A distinção entre aplicativos e plataformas também chama a atenção: Rappi, iFood e Uber (mercado) oferecem de tudo, são especialistas. Já o Zé Delivery foca em um setor, o de bebidas, por isso, seria considerado especialista.
Mas essa é uma visão que pode ser equivocada porque os especialistas são formados por tentativas de empresas, principalmente tradicionais, de oferecer um serviço digital, como delivery ou vendas, mas preferencialmente para seus próprios produtos ou de parceiros. Generalistas normalmente são formados por startups que vendem a solução integrada ao cliente. A Amazon, o Mercado Livre e Rappi tentam vender grande variedade de categorias, marcas e produtos.
Empresas de consultoria, como a Bain & Company, tentam fazer esta distinção em seus artigos para argumentar que empresas maduras podem oferecer serviços como startups oferecem e criar ecossistemas verticais, ou seja, mais especializados em um setor ou nicho.
Esse conceito é muito interessante, mas, na prática, o mercado tem executado uma dicotomia míope de que existem soluções, sites ou aplicativos generalistas e especialistas.
Na verdade, as startups oferecem o máximo da conveniência para o cliente, já uma empresa estabelecida, dadas as suas restrições, tenta fazer o mesmo no seu processo de inovação digital, só que apenas, ou na maior parte, olhando para os seus produtos e interesses de vendas.
Imaginem a Ambev oferecendo vários produtos dos seus concorrentes diretos em cervejas e refrigerantes? Para o cliente, seria bom, mas haveria muita polêmica em uma organização que sempre teve uma cultura muito forte.
Em outro exemplo, o Grupo Pão de Açúcar (GPA) tentou oferecer um aplicativo de entregas de nicho, comprando a startup James Delivery. Depois de muito investimento, recuou porque não deu certo – o que, aliás, apontei em análises anteriores.
Concorrência entre apps last mile é acirrada
No formato atual, minha análise é de que o Zé Delivery vai demandar muita queima de caixa e altos investimentos. No curto prazo acredito que irá crescer, adquirir clientes e a Ambev vai justificar sua estratégia considerando a representatividade de vendas via seu aplicativo. No longo prazo, porém, nos moldes atuais, pode não dar certo como esperam.
Do lado positivo, a Ambev opera, via de regra, em canais de distribuição que ela não controla no varejo. O Zé Delivery é uma forma de controlar parte do canal, ganhar poder de barganha com varejistas e entender melhor o comportamento do consumidor. Ainda assim, não seria mais interessante conhecer o comportamento do consumidor para toda a categoria e não apenas para suas bebidas?
De toda forma, a concorrência no mercado de aplicativos de entrega é brutal. Vale lembrar que a startup espanhola de entregas de encomendas Glovo deixou o Brasil apenas um ano depois de chegar ao país. Ela alegou que para obter o sucesso planejado precisaria de mais investimento, pois a concorrência era acirrada com iFood, Uber Eats e Rappi recebendo grandes aportes.
Portanto, se você é um cliente em busca de praticidade ou uma empresa procurando maneiras de inovar e expandir seus negócios, os aplicativos de entrega “last mile” podem ser uma ótima opção. Por outro lado, é necessário ponderar se vale a pena desenvolver novos aplicativos ou colaborar com aqueles já existentes, afinal, o consumidor muitas vezes é o mesmo e o que ele quer, no final das contas, é conveniência.
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