Em março, quando o Brasil se tornou o epicentro da pandemia de Covid-19, pela primeira vez um Estado brasileiro registrou mais mortes do que nascimentos, em um movimento que pode se espalhar pelo país e trará reflexos não apenas para a saúde dos brasileiros, mas impactos econômicos e demográficos para as próximas gerações.
Atingido em cheio pelo colapso do sistema de saúde causado pela explosão de casos de Covid-19, o Rio Grande do Sul registrou em março as mortes de 15.736 pessoas, mais de duas vezes os óbitos registrados no mesmo mês nos dois anos anteriores, enquanto foram registrados 11.921 nascimentos, segundo dados de registro civil nacional do Portal da Transparência.
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Com uma população idosa maior do que a média nacional, o Rio Grande do Sul foi o primeiro, mas pode não ser o único Estado a atingir o triste marco nos próximos meses. Em pelo menos sete Estados, incluindo São Paulo e Rio de Janeiro, o número de óbitos se aproxima perigosamente do número de nascimentos, de acordo com os dados.
“Em abril será ainda pior. O Brasil pode ter o primeiro momento da sua história em que os óbitos superarão os nascimentos, o que mostraria o impacto da pandemia já estrutural e demográfico da Covid-19 no país”, disse à Reuters o neurocientista Miguel Nicolelis, que acompanha de perto o avanço da Covid-19 no Brasil desde o início da pandemia.
Impacto na expectativa de vida
Nos três primeiros meses de 2021, a cada morte registrada, houve 1,47 nascimento. Um número muito inferior ao mesmo período de 2020, quando eram 2,10 nascimentos registrados para cada morte.
Os impactos dessa redução irão aparecer, nos próximos anos, na expectativa de vida da população, mas também no perfil demográfico, na formação e na renda dos brasileiros.
Em dezembro de 2020, quando o refluxo da epidemia ainda estava apenas começando, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calculou uma queda de 2,2 anos na expectativa de vida dos brasileiros em 2020, primeiro ano da epidemia.
Até dezembro, 191 mil brasileiros haviam morrido pela Covid-19. Desde então, porém, as mortes aceleraram e completaram o mês de março em quase 330 mil mortes, o que pode trazer um impacto ainda maior.
“Estamos com uma elevada mortalidade entre idosos. Só isso já dá impacto enorme da estrutura etária do país. A gente viu nos últimos anos aumento do envelhecimento da população e um aumento da expectativa de vida a partir das 60 anos. Foi um ganho da sociedade. Com essa maior mortalidade entre idosos vamos ter uma redução da expectativa de vida a partir dos 60 anos”, disse à Reuters a doutora em demografia Ana Maria Nogales Vasconcelos, da Universidade de Brasília (UnB).
Mortes de mais jovens
No entanto, o impacto demográfico vai além dos idosos, uma vez que a epidemia no Brasil começou a “rejuvenescer”, com cada vez mais pessoas entre 30 e 59 anos sendo contaminadas e internadas em estado grave.
Em boletim epidemiológico, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou um aumento considerável na contaminação entre os mais jovens –565,08% entre 30 e 39 anos; 626% entre 40 e 49 anos; e 525,93% entre 50 e 59 anos– o que sugere, de acordo com os pesquisadores, um deslocamento da pandemia para os mais jovens.
No caso dos óbitos, o crescimento foi menor, mas ainda significativo: aumento de 352,62% de 30 a 39 anos, 419,23% para a faixa de 40 a 49 anos e de 317,08% 50 a 59 anos.
“De fato, a média da idade de pacientes internados vem diminuindo progressivamente. A média da idade dos casos na semana 1 de 2021 foi de 62 anos e de óbitos foi de 71 anos. Os dados mostram que na semana epidemiológica 10, os valores foram 58 anos para casos novos e 66 anos para óbitos”, diz o boletim da Fundação.
O chamado rejuvenescimento da pandemia ocorreu simultaneamente com o avanço da variante P.1, originada em Manaus e que tem maior poder de disseminação. Epidemiologistas apontam a variante como uma das responsáveis pela explosão do coronavírus no Brasil este ano, fazendo do país o novo epicentro da doença.
“Pelas características dessa variante, que é mais contagiosa e agrava mais rápido, mas também pelo descontrole da pandemia, a contaminação dos mais jovens, a população economicamente ativa, aumentou”, disse o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas. “Vamos ter um impacto na expectativa de vida e também um impacto econômico que vai se levar anos e anos e anos para recuperar.”
Ana Maria Vasconcelos, da UnB, prevê um crescimento menor da população, um decréscimo em alguns locais, especialmente em cidades do interior com uma população mais idosa, e um impacto econômico e social considerável nas famílias.
“Com certeza a mortalidade da população adulta na fase produtiva e reprodutiva tem impacto muito grande não só agora, mas no futuro”, disse à Reuters.
Impactos na renda e educação
A demógrafa calcula impactos na renda e na educação dos brasileiros não apenas pelas mortes precoces, mas pelas sequelas que a Covid-19 pode deixar e a redução na capacidade de trabalho dessas pessoas, que pode impactar diretamente na renda das famílias.
“Vejo cenários muito difíceis para o país. É preciso pensar em consenso e olhar o que precisamos para tratar nossa população e dar suporte às famílias”, disse. “As pessoas mais impactadas, de menor renda, têm menos capacidade de sair dessa situação de risco que lhe foi imposta, não têm trabalho. São perdas de uma geração.”