Em novembro do ano passado, chuvas cataclísmicas deixaram boa parte da região metropolitana de São Paulo no escuro. O empresário Ivo (nome fictício), dono de um restaurante na zona Oeste da capital paulista, lembra-se claramente daqueles dias sombrios. A tempestade que durou pouco mais de um dia apagou as luzes de 2,5 milhões de endereços.
No condomínio fechado onde mora, Ivo conta que a energia resistiu apenas em sua casa e numa outra próxima. A sua salvação e a do vizinho veio da autogeração solar. Durante o dia, pelo menos.
Mesmo após as chuvas terem parado, muitas residências ficaram vários dias sem força naquele apagão inesperado. Ivo conta que puxou um “gato” de seus painéis solares para abastecer a casa da mãe, ao lado da sua.
Quando a eletricidade finalmente voltou, a maioria dos vizinhos tinha perdido os alimentos guardados nas geladeiras e muitos tomaram banho gelado por dias. Sem contar transtornos menores como a falta de internet, dificuldade de carregar o celular e os jantares forçados à luz de velas.
Ter se tornado a tábua de salvação para a família durante um apagão, no entanto, foi apenas um episódio pontual dentre os benefícios de gerar a própria eletricidade. O que conta hoje é a economia no custo da luz.
Durante o dia, as placas solares convertem a luz em energia para abastecer a residência. Dá e sobra. E quando o Sol vai embora, a casa usa a rede tradicional. Até aí, normal. O pulo do gato é outro.
A casa do empresário faz parte de um grupo que cresce sem parar: o dos micro e mini geradores que integram o sistema de geração distribuída (GD). Já são 2,89 milhões espalhados pelo país todo.
Nesse arranjo, a eletricidade produzida – mas não consumida – durante o dia vai para a rede distribuidora. Em troca, Ivo recebe créditos, ou seja, descontos na conta de luz. Nos cálculos do empresário, sua economia é de 85%.
Além das unidades de microgeração, o sistema GD reúne também usinas solares de pequeno porte, com capacidade entre 75 kW (quilowatts) – o bastante para alimentar 60 residências – a 5 MW (megawatts) – uma vizinhança de 17 mil habitantes.
É nesse nicho das fazendas solares que surge uma das maiores vantagens do GD para os consumidores. Isso porque, mesmo quem não pode instalar placas fotovoltaicas, como apartamentos, por exemplo, consegue aproveitar os créditos na conta de luz, distribuídos pelas usinas geradoras locais.
Como funciona?
Você recebe duas faturas. Em uma, paga diretamente à fazenda solar. A outra conta vem da distribuidora. É a conta de luz tradicional, mas já com os créditos em seu nome.
A ideia é que o desconto na fatura seja maior que o tanto que você gasta com a fazenda. Na linha: paga R$ 50 para a geradora solar e embolsa um crédito de R$ 80 junto à distribuidora (números meramente ilustrativos).
A distribuidora, vale lembrar, é a concessionária que leva a eletricidade ao consumidor final – o que a Enel faz em São Paulo e a Light no Rio. Essas companhias são responsáveis pelos postes, transformadores e fiação elétrica que vemos nas ruas. E também pelas subestações locais, que fazem a conexão das grandes linhas de transmissão à rede de distribuição.
Quem adere à geração distribuída por essa via vai fazer parte de um consórcio ou cooperativa. O grupo monta e mantém uma fazenda solar. Com isso, recebe créditos proporcionais na conta de eletricidade para compensar a energia injetada na rede. Existem diversas empresas especializadas em instalar fazendas solares com esse objetivo, no país todo. É só buscar “energia por assinatura” no Google.
A economia com eletricidade, no fim das contas, fica entre 10% a 20%, de acordo com a Associação Brasileira de Energia Solar (Absolar). É claro que esse cálculo depende de diversos fatores, como o próprio consumo da residência, a bandeira tarifária, a quantidade de luz na região e, como não, questões climáticas (em temporadas de chuva, a irradiação solar é menor, claro).
Crescimento de 3.000%
Em 2019, a geração distribuída de energia solar produzia menos de 1 GW (gigawatt). Hoje, são 32,1 GW – um crescimento de mais de 3.000%. Isso sozinho já equivale a 13,5% de toda a energia produzida no país. Some isso aos 15,3 GW das grandes usinas fotovoltaicas (voltadas não para a autogeração, mas para alimentar o sistema elétrico normal), e temos que 20% da energia do Brasil é hoje solar. Agora ela só perde para a hidrelétrica, que um dia foi responsável por praticamente toda a nossa eletricidade.
E tudo isso com o fato de que a mini e a micro geração distribuída respondem por 70% da energia solar. É uma realidade completamente nova. E que cresce em ritmo acelerado. De cada quatro painéis solares desse modalidade, um foi instalado em 2024.
Para os próximos anos, há empreendimentos ambiciosos no horizonte. É o caso do Projeto Triângulo, das empresas A2 Empreendimentos e Solarmine. A iniciativa prevê a instalação de 11 parques solares em municípios do Triângulo Mineiro até 2026, no oeste de Minas Gerais, com investimento de R$ 140 milhões. Cada usina terá 3,5 MW, somando 38,5 MW.
O pomo da discórdia
A GD, porém, tornou-se um tema polêmico desde a aprovação no Congresso do marco do sistema em 2022. Paulo Pedrosa, presidente da Abrace, associação que reúne os 50 maiores grupos empresariais consumidores de energia do país, tem sido uma voz crítica ao sistema.
O dirigente argumenta que os subsídios à geração distribuída geram benefícios para uma minoria, mas a conta acaba dividida entre todos os consumidores. “Somos obrigados a pagar uma energia mais cara do que o necessário”, afirma.
Nas contas da entidade com base em dados da Aneel, regulador do setor elétrico, os subsídios à GD representam um custo de R$ 4 bilhões – que vão para bancas os descontos na conta de luz das pessoas e empresas que fazem autogeração vendem a energia que sobra para o sistema.
As distribuidoras são obrigadas a dar esse desconto. E aí não têm outra saída que não seja repassar os custos para as contas de luz de todo mundo. “Quem banca é o consumidor”, diz o diretor de energia elétrica da Abrace, Victor iOcca. E esse custo vai aumentar conforme a GD solar se expande. “Criar subsídios é fácil, mas retirar é muito difícil.”
Outro ponto que alimenta as discussões vem do fato que a geração distribuída compete com a energia produzida pelas geradoras – sejam as hidrelétricas, as eólicas, as térmicas ou as solares do sistema normal, o da geração centralizada.
Só que geração de energia é, obviamente, um negócio – que perde terreno com o crescimento extraordinário da GD. Pequenos geradores integrantes da Absolar, por exemplo, têm relatado dificuldade em conectar sistemas novos às redes de distribuidoras em alguns centros urbanos.
O sócio e diretor da Thymos Energia, Jovanio Santos, explica haver em algumas regiões um descompasso entre o crescimento acelerado da geração distribuída e a rapidez com que a concessionária consegue ampliar a rede para acomodar a energia nova gerada. “Isso cria um gargalo, uma vez que a fazenda solar vai precisar esperar a ampliação da rede ficar pronta, o que pode demorar meses ou até anos.˜
Uma solução seria acabar com os subsídios – o que seria um progresso no sentido de reequilibrar o mercado de energia. Por outro lado, isso frearia a expansão de uma fonte de energia limpa – um enorme retrocesso do ponto de vista ambiental.
E fica a ironia: uma revolução aconteceu. A energia solar já é a segunda maior do país. E praticamente tudo obra da autogeração. Só que mesmo essa nova realidade, essencialmente positiva, também cria problemas duros de resolver. Como diz o Eclesiastes, debaixo do Sol não há nada novo.
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