“Em 31 de dezembro de 2019, o Brasil alcançou a capacidade instalada de energia de 172 GW, dos quais 51 GW provêm da Eletrobras (ELET3), o equivalente a 30%.” Essa frase é do recém-lançado relatório anual da maior empresa de energia elétrica da América Latina. Para se ter algum parâmetro, um gigawatt (GW) é o equivalente a um bilhão de watts (W). Quer dizer que 51 GW é o suficiente para permitir o funcionamento de 204 milhões de geladeiras, ou 170 milhões de computadores.
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Mas é claro que a energia produzida pela estatal não serve apenas para ligar aparelhos domésticos. Energia é o primeiro requisito para o desenvolvimento de uma indústria pulsante, e é por isso que o debate sobre a privatização da Eletrobras é tão complexo. Será que a iniciativa privada tem mais capacidade para oferecer energia barata? Ou, então, por que pensar no desenvolvimento econômico? Não é melhor que o governo consiga fechar suas contas?
A proposta de privatização da Eletrobras vem sendo impulsionada desde o governo anterior. Michel Temer e seu ministro de Minas e Energia, Moreira Franco, chegaram a incluir a estatal no Plano Nacional de Desestatização (PND) como forma de pressionar o Congresso a discutir o tema. Os debates no governo Bolsonaro também andam a passos curtos, mas a proposta já ganhou algumas formulações.
A primeira é a negociação para se manter uma “golden share”, o que significa que mesmo se o governo tiver participação acionária minoritária, ele iria continuar detentor de uma ação de classe especial com alguns poderes de veto.
Outro adendo à proposta mostra ainda mais hesitação. A secretária-executiva do Ministério de Minas e Energia, Marisete Pereira, já solicitou ao Ministério da Economia um adicional de R$ 4 bilhões no orçamento da pasta no ano que vem para a criação de outra estatal, que ficaria responsável pelo que é hoje a Eletronuclear e a Usina Hidrelétrica de Itaipu.
Fazer caixa
Um dos pilares da agenda do ministro Paulo Guedes, além das reformas estruturais, é o plano de desinvestimento e privatização. Vez ou outra, ele aparece para animar o mercado fazendo uma declaração contemplando essas iniciativas. “Parece que é para mostrar serviço”, analisa Glaucia Campregher, professora do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ela vê no setor elétrico um campo estratégico para o desenvolvimento do país, e lamenta que a questão da privatização da Eletrobras tenha sido “ideologizada”, a ponto de não se discutir mais pragmaticamente a eficiência da administração pública comparada à iniciativa privada.
“O pior é quando se terceiriza as competências. Você diz: ‘joga para o mercado que ele resolve’, ou então ‘joga para o Estado, o pai de todos resolve’”, afirma Campregher. Tanto um como o outro, na sua opinião, precisam de um controle social, uma “democratização” para funcionar bem.
Comentando os argumentos da equipe econômica, Campregher aponta uma contradição. “A justificativa da venda para fazer caixa fica ‘no chinelo’, porque eles vão liberar recurso para criar as novas estatais”, explica.
Já a professora do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade São Paulo (IEE-USP), Virgínia Parente, que também foi membro do Conselho de Administração da Eletrobras e da Associação Nacional dos Consumidores de Energia (ANACE), traz outros aspectos para a discussão, como o ganho com dividendos. Afinal, segundo o relatório anual, a Eletrobras obteve um lucro líquido consolidado de R$ 10.744 milhões em 2019.
“Quando se vende uma empresa que paga dividendos — robustos e com regularidade — se está abrindo mão de um fluxo de caixa futuro. Então é preciso ver realmente se essa troca vale a pena”, aponta Parente.
Função social
Vindo da ala mais nacionalista do militares, o próprio presidente Jair Bolsonaro, durante a campanha de 2018, hesitava quando perguntado sobre a privatização de grandes estatais brasileiras. Com relação à Eletrobras, mesmo Paulo Guedes enxerga o caráter estratégico do setor elétrico, mas pelo viés liberal, espera que o mercado seja capaz de gerar energia barata para o desenvolvimento do país.
“Não é sobre ser contra a privatização. É sobre considerar os aspectos que nos dizem quando uma empresa deve estar nas mãos do governo”, argumenta Parente. Isso, segundo ela, é importante para pensar as regiões Norte e Nordeste, que ainda têm carência energética, mas que ao mesmo tempo não despertam um grande interesse de quem espera lucratividade.
Até os principais players do mercado têm receio de que 30% da geração de energia do país fique sobre o monopólio de uma empresa privada. Parente citou as críticas feitas por representantes da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), quando a proposta ainda era tocada pelo governo Temer.
Itaipu e Eletronuclear
A Eletronuclear é uma subsidiária da Eletrobras com a finalidade de construir e operar usinas termonucleares no Brasil. É de responsabilidade, por exemplo, a operação da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto localizada em Angra dos Reis. Nota-se então o entrave com questões de militares e de soberania que já estão bem reguladas pela Constituição Federal.
Citando o estado da Georgia, nos Estados Unidos, que tem sua produção energética feita por uma empresa privada através da tecnologia nuclear, Parente coloca que esse problema não seria algo novo. O obstáculo nesse caso seria jurídico, já que para operar uma usina nuclear por meios privadas, seria preciso alterar o que está estipulado na Constituição. Assim, aparece a solução do governo de criar uma nova estatal.
A situação é parecida quando se trata da Usina Hidrelétrica de Itaipu, que está localizada na fronteira entre Brasil e Paraguai, o que lhe concede o caráter binacional. Então para fazer a sua venda seria preciso quebrar um contrato internacional.
Golden Share
Segundo Parente, a possibilidade de uma “golden share” (ação do governo que dá direito a decisões importantes) para manter algum controle sobre a companhia é, na verdade, uma das moedas de negociação do governo com o Congresso. Mas ela vai além e faz uma análise pelo aspecto financeiro.
“Quem está comprando a Eletrobras vai precificar isso. Uma ação de classe especial vai reduzir a liberdade para que os novos donos encaminhem a empresa para onde desejam. Esse fator de risco reduz o preço”, completa.