A Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho decidiu, por unanimidade, manter a condenação de uma ex-professora e de suas duas filhas ao pagamento de indenização de R$ 1 milhão a uma empregada doméstica que, durante 26 anos, foi submetida a condições degradantes de trabalho, análogas à escravidão.
Ela teve de trabalhar desde os sete anos de idade sem ter tido a oportunidade de estudar. Ao negar o recurso de revista das empregadoras, o colegiado determinou a expedição de ofício ao Ministério Público Federal para que investigue o caso.
Na reclamação trabalhista, a trabalhadora disse que, aos sete anos de idade, foi levada de Curitiba (PR) para morar na casa da patroa, em São Paulo (SP), sob a falsa promessa de ser integrada à família, que daria a ela a oportunidade de um futuro promissor e de um lar.
Entretanto, ela foi privada de brincar e de estudar e obrigada a fazer faxina, lavar roupas, preparar as refeições, cuidar dos animais de estimação, servir de babá das filhas e, mais tarde, de cuidadora do casal, trocando fralda geriátrica, as roupas de cama e ministrando medicação.
Colchão no banheiro
Ainda de acordo com a ação, em todo o período, nunca dispôs de condições dignas: dormiu num colchão no chão no banheiro dos fundos da residência, no chão de um dormitório, quando cuidava do esposo da patroa, com Alzheimer, e, por seis anos, na área de serviço, sujeita a água de chuva e ventos.
Dos sete aos 11 anos, disse que trabalhou sem nenhum direito, e somente aos 18 anos teve a carteira de trabalho anotada com um salário que não recebia integralmente, pois eram descontados todos os produtos usados por ela e até mesmo o valor de multas por não ter ido votar, sendo que nunca a deixaram exercer esse direito.
Segundo sua descrição, ela só podia sair de casa para acompanhar a patroa ao supermercado ou a consultas médicas. Fora dessas situações, as portas eram trancafiadas. Em 2016, 26 anos depois de ter sido levada para a família, conseguiu escapar e retomar a sua liberdade.
Trabalho proibido
O juízo da 88ª Vara do Trabalho de São Paulo (SP) condenou a professora e as filhas ao pagamento de R$ 150 mil por danos morais, por entender que não houve adoção, mas admissão de menor em trabalho proibido. Mas, segundo a sentença, apesar de grave, a situação não caracterizava trabalho análogo à escravidão.
O Tribunal Regional do Trabalho, no entanto, majorou a condenação para R$ 1 milhão, a ser pago em 254 parcelas mensais (ou seja, por cerca de 21 anos), atualizadas monetariamente.
Para o TRT, a empregada esteve submetida a situações degradantes de trabalho, em condições análogas à escravidão, sem receber salário em espécie, privada de instrução formal, com sua mão de obra utilizada desde os sete anos em serviços notadamente inadequados para menores, além de ter sido privada de sua liberdade.
‘Parte da família‘
Inconformadas com a condenação, a patroa e as filhas apresentaram recurso de revista ao TST, em que argumentavam que o valor da condenação era excessivo e não condizente com a realidade. Na sessão de julgamento, a defesa sustentou que a empregada “fazia parte da família” e tinha dormitório próprio, carteira assinada e plano de saúde.
Em contraponto, o advogado da empregada sustentou que a tese da defesa era inverídica e que não se poderia presumir que ela pertencia à família, diante da constatação de que dormia no sofá da sala e, durante muitos anos, em colchões no chão. Outro ponto salientado foi o de que ela fora privada de educação: enquanto as filhas do casal têm nível superior, a empregada é analfabeta.
Para o relator, ministro Augusto César, a situação é grave. “A empregada foi levada aos sete anos de idade e, durante quase 30 anos, não frequentou escolas e, em parte deles, não recebeu nada pelos serviços domésticos que realizava”, afirmou.
O ministro observou que as provas evidenciaram a prática de trabalho infantil e de situação degradante de trabalho e considerou que a indenização de R$ 1 milhão “pode servir como paliativo para as privações e o sofrimento que marcarão a vida da trabalhadora, como sequelas que não se sabe se algum dia se resolverão”.
Perpetuação da pobreza
A ministra Kátia Arruda destacou que o caso deixa claro o ciclo de perpetuação da pobreza e lembrou que os vizinhos que conheceram a trabalhadora aos 14 anos falaram que ela era tratada como empregada doméstica. Segundo ela, as pessoas que começam a trabalhar cedo em casas de família permanecem nessa atividade quando adultas, porque não têm tempo de desenvolvimento e sofrem privações físicas e emocionais.
Para a ministra, o dano não pode ser efetivamente custeado, “porque atinge toda a vida dessa pessoa e, também, a sociedade”. O valor da indenização, a seu ver, é proporcional, pois repõe, ao menos, os salários que não foram pagos.
Privação de direitos
O ministro Lelio Bentes Correa lembrou que a situação é muito comum: as famílias, a pretexto de receber crianças e adolescentes em situação vulnerável, acabam as submetendo a situações incompatíveis com os primados da dignidade do ser humano. “O que se vê é nada mais do que a pura e simples exploração, com gravíssimas consequências sociais”, asseverou.
Na sua avaliação, a empregada teve limitada sua cidadania e “tolhido o seu direito de sonhar, de esperar algo para o futuro”. Lelio Bentes lembrou que o trabalho doméstico é uma das mais perversas formas de trabalho infantil, em razão dos danos psicológicos, da exposição a riscos físicos, do assédio e do risco de acidentes. “O caso analisado trata justamente de trabalho infantil e análogo a escravidão, o que contraria a Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, concluiu.
*Com informações do TST
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