O Banco Central começou a cortar os juros, mas pode ter que voltar a subir a taxa a qualquer momento porque está preocupado com os efeitos dos gastos públicos sobre a inflação. O presidente da República, é claro, não está nada satisfeito com isso. E começa a fazer pressão sobre o Banco Central – o que inclui até mesmo ameaças de demissão.
Quem lê esse roteiro desavisadamente pode achar que ele se refere ao Brasil. Mas, na verdade, o Banco Central em questão não é o brasileiro: é o Federal Reserve (Fed), dirigido por Jerome Powell. Sim, o Fed, referência quando o assunto é banco central independente, já começou a se proteger de tentativas do presidente eleito Donald Trump de exercer mais influência sobre a política monetária na maior economia do mundo.
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Não seria a primeira vez. Em 2018, no primeiro mandato do republicano, Trump criticou Powell publicamente em diversas ocasiões – tanto para subir quanto para cortar os juros. E fez ameaças de destituí-lo do cargo para o qual foi escolhido… por quem? Pelo próprio Trump.
Só que, agora, a batalha pode ser ainda mais dura. Afinal, os planos de Trump para gerar crescimento da economia americana são muito mais ousados do que no mandato anterior. E isso deve resultar em mais inflação e também em piora do quadro fiscal: os analistas esperam um aumento do déficit público da ordem de US$ 7,5 trilhões ao longo de uma década.
Alguns correligionários de Trump já partiram para o ataque ao Fed. Um dos “inimigos” do BC americano é o senador Mike Lee, republicano do Utah, que apresentou em junho um projeto de lei para abolir o Banco Central, acusando-o de ser um “manipulador econômico que contribuiu diretamente para a instabilidade financeira que muitos americanos enfrentam hoje”. Lee disse no X (ex-Twitter) que deseja ver o Fed sob o controle do presidente. A posição do parlamentar contou com o apoio do empresário Elon Musk, que promete ter importante participação no novo governo.
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Trump não tem poderes legais para demitir Powell. E o presidente do Fed, em uma entrevista coletiva na semana passada, desconcertado após uma pergunta, disse que não renunciaria ainda que o presidente da República pedisse. Esse “climão” deixa investidores desconfortáveis. Eles temem que uma cruzada de ataques contra o Fed acabe desestabilizando a confiança dos investidores nos mercados, tanto de ações quanto de títulos públicos.
Eu sou você amanhã
O Brasil já conhece essa história. Os ataques de Lula contra o presidente do Banco Central Roberto Campos Neto geraram muita incerteza sobre a capacidade de o BC agir para conter a inflação. Tanto é que, a cada manifestação do presidente, o dólar e os juros subiram.
O quadro piorou ainda mais em maio, quando os quatro diretores do Comitê de Política Monetária (Copom) indicados pelo novo governo votaram por um corte de 0,5 ponto percentual da Selic, contra a maioria, que defendeu uma redução de 0,25 ponto. Esse evento mudou a dinâmica dos mercados: o dólar se consolidou acima dos R$ 5,50 e o juro real das NTN-Bs superou os 6% ao ano. E não retrocederam mais.
O que os especialistas dizem é que apenas com a independência do Banco Central totalmente assegurada é que a política monetária é eficaz na luta para reduzir a inflação e abrir caminho para o crescimento econômico. Só que nem Trump, nem Lula parecem dar crédito a essa máxima. Mesmo com orientações ideológicas completamente opostas, ambos tentaram influenciar as decisões de seus bancos centrais, achando que os juros mais baixos poderiam dar suporte a seus planos de governo.
O que pode explicar esse ponto comum dos dois governantes são “características mais populistas”, diz o ex-diretor do Banco Central, José Julio Senna, pesquisador do Chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre) e consultor associado da MCM Consultores.
Trump tem dito que quer acabar com a inflação e manter os juros baixos. Mas também quer subir tarifas, conter a imigração e cortar impostos, receita perfeita para gerar muita inflação. “Prevejo um cabo de guerra desconfortável, com comentários agressivos e pressões de todo o tipo”, diz Senna.
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Ainda assim, o especialista não acredita que a pressão vinda da Casa Branca conseguirá, de fato, arranhar a independência do Fed. Isso só aconteceria com a anuência do Congresso. “Não acredito que as instituições americanas concordem com essa ideia, ela não vai progredir”,diz. “Mas haverá um ruído desnecessário.”
Aqui, em comum com o que se vê em terras americanas, o gasto público é um elemento importante para impulsionar o crescimento da economia Ao mesmo tempo, tem ajudado a pressionar a inflação. Mas o pior efeito colateral é a perspectiva de um descontrole da dívida pública no Brasil: especialistas acreditam que a relação dívida líquida x PIB pode superar os 90% em dois ou três anos, o que é um sinal amarelo avermelhado para a política fiscal do país.
Reduzir os juros, portanto, facilitaria a vida do governo no curto prazo. Mas o ponto central dos embates de Lula com Roberto Campos pode ter outra natureza: o presidente do BC foi indicado pelo antecessor de Lula, Jair Bolsonaro. Foi uma espécie de choque de realidade para o petista, que está em seu terceiro mandato, ter de lidar com as regras de um BC independente pela primeira vez – a autonomia da autoridade monetária passou a existir somente em 2021.
Outra diferença importante em relação ao cenário americano é que, aqui, a autonomia do BC, ainda que seja definida por lei, ainda está em um processo de consolidação. E isso amplia a insegurança nos momentos de ataque ao BC.
Fabio Akira, sócio e economista-chefe da BlueLine Asset Management, afirma que um ponto de atenção neste momento é que Gabriel Galipolo, o futuro presidente do BC, deverá ter uma participação ativa no governo. Galipolo participou de uma reunião convocada por Lula com a equipe econômica para discutir as medidas fiscais que devem ser adotadas. “Você não vai ver o Powell discutir corte de impostos com o novo secretário do Tesouro americano”, compara.
Outra diferença é que, aqui, é o Conselho Monetário Nacional (CMN) que determina qual é a meta de inflação que o BC deve perseguir. E o CMN é composto pelos ministros da Fazenda e do Planejamento, e pelo presidente do BC. Nos Estados Unidos, a discussão é liderada apenas pelo Fed.
Fiscal x juros
Nos Estados Unidos, analistas já começam a antever um aumento do juro dos títulos de 10 anos, os chamados T-notes, como reação aos riscos fiscais que Trump representa. Fala-se em uma taxa perto de 5% ao ano, o que, historicamente, tem potencial para gerar instabilidade nos mercados globalmente.
No Brasil, o mercado vem expressando grande preocupação com a evolução dos gastos e teme que o pacote que deve ser anunciado pelo governo seja insuficiente para colocar as contas em ordem. Segundo o CEO da BR Partners, Ricardo Lacerda, a dinâmica atual de aumento de gastos coloca em questão a eficácia do aumento de juros que está em curso. “A partir de um determinado nível de juros, o efeito fica muito reduzido. Subir mais a taxa vai castigar consumidores e empresas, e não vai controlar a inflação. Agora, é preciso cortar gastos”, defende.
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