No Brasil, a indústria de motocicletas vai muito bem, obrigado. A frota nacional já ultrapassa 35 milhões de unidades (quase metade do número de carros), e as vendas acumuladas até setembro estão 13% acima do mesmo período de 2024.

“Fora do eixo asiático, o Brasil é o maior produtor de motocicletas do mundo”, afirma Marcos Bento, presidente da Abraciclo, associação que representa as maiores fabricantes da indústria. O polo industrial de Manaus, onde se concentram quase todas as fábricas, é hoje um dos mais verticalizados do planeta. “Não é montagem. É fabricação, com processos completos, motores usinados e estrutura de fornecedores locais”, resume.

O avanço das motos no Brasil se explica pelo encarecimento dos automóveis, pelo crédito restrito e por um mercado de trabalho em que cada vez mais pessoas dependem da motocicleta para gerar renda. A indústria soube se adaptar a essa realidade de país, uma combinação que fez do setor uma rara exceção de vitalidade na indústria brasileira.

A ascensão das motocicletas está diretamente ligada à queda poder de compra da população. “A década passada foi uma década perdida”, diz o economista Raphael Galante, da consultoria Oikonomia. Entre 2011 e 2021, o rendimento médio do brasileiro caiu, e o orçamento para o consumo de bens duráveis encolheu, naturalmente. Nesse cenário, o carro deixou de caber no bolso de boa parte dos brasileiros, e a moto se tornou o substituto possível.

Hoje, um automóvel novo de entrada custa cerca de R$ 80 mil (em 2019, para comparar, eram R$ 35 mil). Enquanto isso, uma motocicleta básica parte de R$ 10 mil (não muito mais que os R$ 7 mil de 2019). Segundo a Abraciclo, oito em cada dez motos vendidas no país têm até 160 cilindradas – um retrato preciso do poder de compra brasileiro.

Foto: Levi Bianco/Getty Images

Além do valor do veículo, encher o tanque e manter uma moto custa, em média, cinco vezes menos que manter um carro. “Uma pessoa que gasta R$ 400 por mês com manutenção e combustível de uma moto, gastaria R$ 2 mil caso optasse por um carro”, diz Bento, que também é executivo de vendas da Honda no Brasil.

A disparidade de renda e preço também se reflete na geografia das vendas. No Nordeste, a frota triplicou em dez anos e já soma 10,7 milhões de motocicletas. Dados de 2023 divulgados pela Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) mostraram que 70% das cidades nordestinas têm mais motos do que carros registrados. Na região Norte, são mais de 80%.

Mesmo nas grandes metrópoles, onde o perfil do consumidor é mais diverso, o movimento é evidente. A classe média que busca fugir dos congestionamentos e do transporte público saturado passou a adotar scooters médias como segundo veículo — um fenômeno que não altera, mas complementa, a base popular do setor.

A mágica dos consórcios

Se o preço é o ponto de partida, é o crédito que garante escala. Com juros altos e bancarização ainda limitada, o consórcio se consolidou como uma estratégia essencial para as fabricantes. Honda e Yamaha, as líderes do segmento, operam os próprios consórcios.

Galante explica o diferencial competitivo. “Os bancos não querem financiar motos de R$ 10 mil. A Honda entendeu isso cedo e criou seu próprio sistema de crédito”, diz. O Consórcio Nacional Honda vende, sozinho, mais de 100 mil cotas por mês, o que lhe garante previsibilidade de produção e fideliza o consumidor por anos. Em 2024, o consórcio registrou lucro líquido próximo de R$ 500 milhões.

Hoje são mais de 3,1 milhões de cotas ativas de consórcios de motocicletas no país, cerca de um quarto do total existente. O formato se encaixa no perfil do consumidor. Sem exigência de entrada nem comprovação formal de renda, o sistema permite planejar a compra em grupo, diluindo custos e risco.

O resultado é uma cadeia verticalizada e estável. O consumidor se mantém na rede da marca, a fabricante planeja o volume de produção com meses de antecedência e o risco de inadimplência é menor. A Honda, que detém 66,8% das vendas acumuladas em 2025, e a Yamaha, com 14,4%, dominam o mercado há décadas – e nada indica que essa proporção vá mudar no curto prazo.

A robustez atual é, em parte, herança das crises anteriores. O setor já viveu um ciclo de euforia e colapso. Em 2011, com crédito farto, o país produziu 2,1 milhões de motos — o recorde histórico. Cinco anos depois, a produção havia despencado para menos de 900 mil unidades.

O choque financeiro do período Dilma desorganizou a rede de concessionárias e derrubou o financiamento. Mas a retração também forçou um salto de eficiência, no que a Abraciclo descreve como um processo de “depuração” da indústria: as fábricas reduziram custos, racionalizaram linhas de montagem e aprenderam a operar com crédito escasso.

Quando a pandemia chegou, o setor estava mais enxuto e disciplinado. O que parecia uma nova crise acabou abrindo um novo mercado. As entregas por aplicativo e o transporte urbano sobre duas rodas tornaram-se essenciais para o funcionamento das cidades. Mais um enorme reforço para a demanda.

Made in Manaus

No centro dessa engrenagem está o Polo Industrial de Manaus, responsável por quase toda a produção nacional. Ali, a indústria da moto emprega 20,5 mil pessoas diretamente e outras 150 mil na cadeia de fornecedores e de logística. Em faturamento, é o terceiro setor mais importante da Zona Franca, atrás apenas de eletroeletrônicos e informática.

A densidade produtiva do polo é o que o diferencia de outros segmentos industriais brasileiros. Modelos como a Honda CG 160, líder de vendas, têm 90% de nacionalização: a carcaça do motor é fundida e usinada dentro da fábrica, e as linhas de montagem incorporam mais de 120 fornecedores locais. Essa verticalização confere autonomia e escala, reduzindo a dependência de importações e o impacto cambial no preço.

Recentemente, a japonesa anunciou investimento bilionário na planta da capital amazonense. A partir de 2026, a fábrica poderá produzir 1,6 milhão de motocicletas ao ano.

A estrutura construída ao longo de meio século transformou Manaus em um dos raros polos industriais capazes de atrair investimento produtivo no Brasil. A entrada da Bajaj, fabricante indiana que inaugurou ali sua primeira planta fora do país de origem, é prova disso. O ambiente oferece o que o capital estrangeiro procura: incentivos fiscais, mão de obra treinada e uma cadeia estável de suprimentos.

Essa base produtiva também ajuda a explicar por que o setor resiste à desindustrialização que atinge outras áreas. A moto brasileira é um produto quase que integralmente fabricado no país, com rede nacional de distribuição e pós-venda.

Motos Harley-Davidson
Motos Harley-Davidson

O domínio de Honda e Yamaha se explica pela combinação de tempo, volume e política industrial. Ambas investiram cedo em crédito próprio, fidelização e manutenção de preços estáveis. Galante resume a equação: a Honda lucra em todas as etapas — na venda da moto, no financiamento, no consórcio e no pós-venda. Essa estrutura permite manter margens constantes e um portfólio acessível, mesmo em períodos de inflação elevada.

Ainda assim, novas marcas continuam chegando. Além da Bajaj, outras fabricantes asiáticas sondam o mercado, e startups de mobilidade tentam explorar o aluguel e o compartilhamento de motocicletas. São movimentos pontuais que reforçam a atratividade do setor — mas ainda distantes de alterar a estrutura de liderança.

Em um país que perdeu densidade fabril em quase todos os setores, a indústria de motocicletas é uma exceção. Produz localmente, exporta pouco, mas emprega, investe e mantém rentabilidade. Sua cadeia produtiva se mantém integrada e competitiva, conectando consumo de massa e manufatura nacional — algo raro no Brasil de hoje.

Num cenário de baixo investimento produtivo e crédito escasso, a indústria de motocicletas funciona como um lembrete de que ainda há setores capazes de crescer dentro das condições brasileiras. Ironicamente, um setor cuja bonança é também reflexo das limitações econômicas do país.