Você provavelmente não usa um fogão a lenha. Mas a indústria usa, de certa forma. E massivamente: 51% da energia que todo o setor industrial consome no Estado de São Paulo, por exemplo, vem de caldeiras que queimam lenha – na forma de lascas – ou bagaço de cana, entre outros combustíveis renováveis. No jargão energético, biomassa.
E essa realidade pode ser parte da solução para um problema cabeludo: o que fazer com o lixo. Mais precisamente, com a parte que não dá para reciclar.
Das 211 mil toneladas que o Brasil produz por dia, a reciclagem dá conta de até 30%. Do resto, pouco mais da metade vai para aterros sanitários e pouco menos da metade vai parar em lixões a céu aberto, proibidos desde 1991 mas ainda na ativa.
Os aterros representam uma solução mais civilizada, na comparação com a alternativa. Mas estão longe de ser a ideal. Primeiro, porque emitem metano – gás estufa 86 vezes mais poderoso que o gás carbônico (CO2). Segundo, porque aterros não são eternos. Suportam uma certa quantidade de lixo e, após algumas décadas, c’est fini. Não têm como acolher mais nada.
Aí basta abrir outro aterro e pronto, certo? De fato, mas terrenos gigantescos o bastante para receber centenas de toneladas de lixo por dia também são um recurso limitado, principalmente nos arredores dos centros urbanos, onde o grosso do lixo é produzido. O natural é que essas regiões recebam mais residências e fábricas, em vez de mais lixo. Reduzir a quantidade de material que hoje vai para os aterros, então, é uma urgência.
É aí que entra o mercado de biomassa. Dá para transformar boa parte do lixo urbano que vai parar em aterros num combustível sólido, adaptado para caldeiras que queimam lenha e bagaço de cana.
Como a demanda por biomassa é enorme, mesmo se todo o lixo de um Estado como São Paulo fosse transformado nesse combustível, ele mal ocuparia 5% da capacidade das caldeiras.
Calcula-se que 30% do lixo que vai parar nos aterros tenha o potencial de virar combustível. Ou seja: seria possível ampliar a vida útil dessas estruturas em um terço, reduzir nessa mesma proporção a quantidade de metano que elas emitem e, ao mesmo tempo, fornecer energia mais barata à indústria – um desconto de 20% a 50% na comparação com a lenha, por exemplo.
Esse combustível de lixo urbano também serve para alimentar fornos de fábricas de cimento – que cozinham pedra a 1.450 ºC usando coque de petróleo, uma espécie de “carvão” derivado diretamente do líquido preto e ainda mais sujo que o carvão mineral.
Curitiba inova no uso do lixo
Esse tipo de aproveitamento tem ganhado tração. Um consórcio de 24 municípios da Grande Curitiba, região com forte presença da indústria cimenteira, lançou no início deste ano um edital inédito para a produção de combustível feito de lixo urbano. O processo está em andamento. O poder público compromete-se a pagar por tonelada o mesmo tanto que gastaria para enviar os resíduos a um aterro (R$ 94, nesse caso) e a ajudar na preparação dos fornos das fábricas de cimento para receber o insumo.
O nome técnico da coisa é CDR – sigla para “combustível derivado de resíduos”. Já existe um tipo de CDR em operação comercial de larga escala, mas esse não é derivado de lixo comum. Vem de resíduos industriais: pneus velhos, peças de plástico, madeira contaminada por óleos. Tudo picado. E quem compra é a indústria cimenteira, que usa esse tipo de CDR em seus fornos, substituindo em parte o coque de petróleo (26%).
O CDR de lixo comum é diferente. A matéria prima ali consiste em dejetos difíceis de reciclar: embalagem com gordura (caixa de pizza, embalagem de salgadinho…), papel higiênico, absorvente, fraldas, além de plásticos não-recicláveis (celofane, isopor, adesivos…). Tudo picotado também.
Algumas fábricas de cimento usam CDR de lixo urbano (CDRU no jargão) para complementar o de resíduos industriais – caso de certas unidades da Votorantim. Mas existe um problema na hora de transformar lixo em CDRU: o alto teor de umidade, cortesia da parte orgânica que vem misturada nos dejetos. A água reduz o “poder calorífico” do material, tornando-o menos eficaz como combustível.
O diferencial: câmaras de biodigestão
Cozinhar o lixo para evaporar a água não seria algo eficiente. O gasto de energia aí seria maior do que a quantidade de calorias que o CDRU iria gerar lá na frente.
Mas há uma solução, que foi desenvolvida na Itália e está em fase de testes no Brasil. A ideia é deixar os resíduos em repouso, dentro de câmaras ventiladas de biodigestão. Nessas condições, a fração orgânica entra em decomposição acelerada. “A degradação dos líquidos, das gorduras, dos carboidratos gera muito calor. A massa de resíduos chega naturalmente a 65º C”, diz Alexandre Langner Conceição, gerente de novos negócios da Estre Ambiental, operadora de aterros sanitários.
Aquecida, a massa de dejetos vai perdendo umidade devagar e sempre. Ao final de 16 dias você tem um CDRU seco, homogêneo, e já sem o “perfume” característico da matéria-prima, pois o que era para ser decomposto já foi.
Importante: nessas condições (sob ventilação), a decomposição emite CO2, em vez de metano – menos mal para a atmosfera. E aquilo que acabaria num aterro se torna combustível, que pode virar energia nos fornos de cimento e nas caldeiras de biomassa.
No caso das cimenteiras, o uso do CDRU é uma realidade em franca ascensão. A própria Estre testa a tecnologia que mostramos aqui de olho no edital da Grande Curitiba e a expectativa é que a produção em escala industrial comece em 2026.
Já o uso de CDRU nas caldeiras de biomassa é um pouco mais complexo. E não se trata de uma realidade, mas de algo ainda em estudos. Antes de entrar nessa parte, porém, vale um mergulho mais fundo no universo da biomassa.
Bagaço e lenha
Usa-se bastante biomassa no Brasil por motivos óbvios. Primeiro, por conta da produção mastodôntica de cana. Cerca de 20% do território do Estado de São Paulo é ocupado por plantações de cana. A indústria sucroalcooleira conta com um suprimento gigantesco de bagaço – uma fonte de energia razoavelmente limpa, já que o CO2 da queima nas caldeiras acaba absorvido pela plantação de novos pés de cana.
As caldeiras movidas a bagaço produzem toda a energia elétrica das usinas. O excedente é vendido para o sistema. Um belo excedente: 6,1% de toda a eletricidade no Brasil vem de bagaço de cana – dá 12,5 terawatts, praticamente uma Itaipu (14 TW).
No mundo da autogeração de energia via biomassa, quem não tem bagaço caça com lenha (ou com outras fontes, mas vamos no ater aqui à madeira). Porque ela é uma alternativa mais barata que o gás natural e mais verde: a madeira vem de plantações de eucalipto, entre outras espécies. E o CO2 da queima do material acaba absorvido pelo replantio das florestas.
Há toda uma economia em torno disso: plantadores de madeira, que vendem a matéria-prima em lascas (cavaco); empresas que montam caldeiras de biomassa sob medida para empresas a fim de substituir o gás natural– caso da paulistana ComBio – e, claro, o cliente final: companhias que precisam gerar a própria energia.
Não estamos falando só em energia elétrica, mas em energia térmica também. Ou seja, a produção de vapor com intenção de fabricar calor. A indústria de alimentos e bebidas, por exemplo, trabalha com pasteurização, um processo que exige muita energia térmica.
Essa energia que não teria como nascer em painéis solares, por exemplo, já que eles só produzem eletricidade, não vapor.
De volta ao lixo agora.
O CDRU é um combustível agressivo, que machuca as paredes das instalações. E as caldeiras de biomassa são mais delicadas, vamos dizer assim, do que os fornos de cimenteiras. Elas não suportariam uma alta porcentagem de CDRU no mix de combustíveis.
“É possível fazer uma caldeira 100% CDRU? É possível e tem muitas no mundo. Mas elas usam [nas paredes internas] uma liga de metal chamada Inconel, que é cara. Muitas vezes não compensa para o operador que já tem uma caldeira retirar tudo e fazer uma nova”, diz Alexandre Langner, da Estre.
O que se faz, então, é estudar qual seria a porcentagem ideal de CDRU no mix para aproveitar as caldeiras que existem hoje. Pelos cálculos da Estre, seria algo entre 5% e 10%. Não é pouco. Se todo o lixo do Estado de São Paulo fosse convertido em CDRU, e todas as caldeiras de biomassa operassem na proporção de 5%, não iria mais nada para os aterros.
Isso seria uma utopia, claro. Aterros distantes de usinas de biomassa não seriam bons fornecedores – o custo com transporte inviabiliza. Mas mesmo um uso pontual já seria bem-vindo para tirar o estresse dos aterros. E para dar um impulso na própria produção de energia.
Porque o CDRU com baixo teor de umidade produzido nos biodigestores é um combustível mais eficiente: libera 4.200 quilocalorias por kg, contra 2.700 da lenha e 1.700 do bagaço de cana.
Outra vantagem é que o uso do CDRU tem o potencial de liberar uma fração da biomassa para usos mais nobres do que pegar fogo. As lascas de lenha que queimam nas caldeiras também são matérias primas para móveis de compensado de madeira, afinal; e o bagaço de cana, para o SAF, o combustível renovável de aviação.
Juntando tudo, temos aí o que os especialistas em matemática aplicada chamam de “jogo de soma não zero” – quando todos os lados envolvidos numa questão saem em vantagem. Raspas e restos, definitivamente, interessam.
Agradecimentos: Yuri Schmitke, presidente da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (Abren); Danilo Perecin e Luciano Oliveira, EPE (Empresa de Pesquisa Energética, do governo federal).
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