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Economia

Reforma tributária: ‘Em vez de criar imposto, seria melhor revisar os gastos’

Economista-chefe da ARX Investimentos, Solange Srour critica a atual reforma proposta pelo governo, acredita que um novo imposto só muda o problema e defende a volta da antiga agenda iniciada no governo de Michel Temer.

Solange Srour

Em vez de aumentar impostos para conter os efeitos dramáticos da pandemia, seria mais eficiente fazer uma revisão dos gastos públicos. É o que defende Solange Srour, economista-chefe da gestora ARX Investimentos. Mestre em economia pela PUC-Rio, ela acredita que a atual reforma tributária proposta pela equipe econômica de Paulo Guedes está sendo desenhada pelos motivos errados – não para gerar eficiência e produtividade, e sim para cobrir o buraco criado pelo crescente aumento dos gastos públicos. Segundo ela, a reforma proposta anteriormente, articulada entre o governo e o Congresso, era mais eficiente que o modelo apresentado para o pós-pandemia, que contribui para aumentar a ainda mais a carga tributária.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, entregou a primeira fase da proposta do governo federal ao Congresso, propondo unificar o PIS e Cofins, dois tributos federais que incidem sobre o consumo, em um único imposto. Eles dariam origem a um tributo chamado Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

Ficaram para depois pontos mais polêmicos, como a tributação de dividendos e mudanças no Imposto de Renda. Guedes sinalizou também que apoia a criação de um imposto sobre pagamentos eletrônicos, que vem sendo comparado à extinta CPMF, para compensar a perda de arrecadação durante a crise. “Pode não ser uma CPMF, mas é ineficiente e diminui um problema para criar outro”, diz Solange.

Sobre o desequilíbrio fiscal crescente, Solange avalia que, se nada for feito para conter os gatos, o estrago não vai demorar para aparecer. Para a economista, o mercado ainda dá o benefício da dúvida para o Brasil em meio a um cenário de juros baixos e ampla liquidez de recursos internacional, mas o descontrole fiscal pode ter um custo alto para o Brasil lá na frente, algo que não está sendo levado em conta no momento. “Qualquer chacoalhão lá fora, algum problema maior com EUA, China ou Europa, o Brasil vai sofrer mais por não estar fazendo sua lição de casa em comparação a outros países”, diz.

Em entrevista ao InvestNews, a economista-chefe da ARX fala sobre a perspectiva para um desemprego estrutural daqui a alguns meses, acredita que é preciso resgatar a antiga agenda de reformas iniciada no governo de Michel Temer e descarta a possibilidade de juros próximos a zero no Brasil, diante do risco fiscal com o aumento da dívida pública em relação ao PIB. Leia a entrevista:

InvestNews – Qual a importância de propor uma reforma tributária em um momento de crise econômica e descontrole fiscal e até diante do risco de se flexibilizar o teto de gastos?

Solange Srour – Antes da pandemia, a reforma tributária não pretendia aumentar a carga tributária e iria gerar eficiência, diminuir o litígio, simplificar a vida do empresário. Isso era visto pelo mercado como gerador de produtividade, pela simplificação e pelo custo das empresas para entender o sistema tributário. Levaria não a uma mudança de trajetória fiscal porque não traria uma perspectiva melhor ou pior para a trajetória dívida/PIB, mas traria uma maior confiança ao longo do tempo. No pós-Covid, saímos dessa crise com um problema fiscal muito maior e uma demanda social por aumento de gastos.

Tivemos programas de sustentação da renda, o coronavoucher, e de sustentação do emprego. Tudo isso vai expirar e não poderemos fazer gastos extraordinários. A reforma tributária agora está sendo discutida num contexto de aumentar a carga tributária para pagar estes gastos. Ela perde o charme de ser uma reforma para aumentar a produtividade e vai para outro lado de o país se tornar menos competitivo. Para conseguir cobrir esses gastos, esse aumento será mal visto pelos investidores, tanto em termos de confiança quanto de vir para o Brasil. O governo diz que pode diminuir a carga da pessoa jurídica e aumentar dividendos, mas por trás tem a carga tributária. Acho que desvirtua um pouco o objetivo inicial da reforma.

O ministro Paulo Guedes vê com bons olhos a criação de um imposto sobre pagamentos eletrônicos para compensar a desoneração da folha salarial, que vem sendo comparado a uma nova CPMF. Qual sua visão sobre esse imposto?

Por mais que seja para compensar a desoneração, ele vai aumentar a carga tributária de qualquer maneira. Ele pesa na eficiência e produtividade da economia, porque você vai pagar imposto para comprar um bem pela internet. As pessoas vão se deslocar para as lojas físicas em um momento em que o comércio eletrônico cresce mais rapidamente e de maneira menos custosa para as pessoas e as empresas.

Estamos discutindo desoneração da folha, aumento de benefícios sociais, mas não o ponto mais importante que é a qualidade dos gastos. Podíamos estar revisando os gastos públicos. A parte que não é eficiente poderia ir para programas como a desoneração da folha, que é extremamente cara. É positivo, mas em vez de aumentar imposto, seria melhor revisar os gastos públicos. O governo poderia propor uma reforma administrativa que traz ganhos fiscais. Este imposto que ele quer criar pode não ser uma CPMF, mas é ineficiente e diminui um problema para criar outro. O Brasil gasta muito e vamos aumentar ainda mais os gastos. É fácil ver que o Brasil gasta mal, é só ver quanto o Brasil gasta em educação em comparação com o resto do mundo. Gastamos muito e gastamos mal.

O aumento da dívida pública em relação ao PIB é dado como certo. Essa trajetória pode nos levar a um cenário de volta a juros altos e hiperinflação?

O aumento da dívida por conta dos gastos extraordinários não preocuparia se tivéssemos um grau de certeza maior de que a dívida/PIB que vai fechar o ano perto de 100% entraria em trajetória de queda novamente. O problema é que essa certeza hoje é para o outro lado. Os gastos crescem muito mais que o PIB em termos reais. Mesmo após a reforma da Previdência, a folha salarial cresce e comprime todos os gastos discricionários que não têm mais como cair sem prejudicar o funcionamento da máquina pública.

Sem uma reforma administrativa e de revisão de gastos não vamos conseguir colocar a trajetória da dívida em queda. Fora isso, vem a demanda por mais gastos. O mercado hoje dá o benefício da dúvida para o Brasil, porque não tem uma fuga de capitais. As taxas de juros estão muito baixas e teoricamente vão ficar assim por muito tempo. Mas se o risco fiscal do Brasil não diminuir, será difícil o investidor ficar aqui enquanto lá fora vai pagar uma taxa mais atrativa. Olhamos muito o curto prazo, embalados na liquidez externa e não colocando ênfase no fato de que os gastos crescem muito mais rapidamente que o PIB.

Do ponto de vista prático, essa luz vai acender quando discutirmos o orçamento de 2021, porque ele precisa respeitar o teto de gastos e ao mesmo tempo incluir as demandas do Congresso de aumento de gasto social, programas de sustentação de empregos que vão precisar ser prorrogados. Esse momento será crítico e haverá uma discussão séria no Brasil de derrubada ou não do teto que vai gerar uma preocupação grande dos investidores. O teto de gastos hoje é nossa única âncora.

Apesar da magnitude dessa crise econômica, que vem sendo comparada à Grande Depressão de 1930, vemos as bolsas subindo e o Ibovespa de volta aos 100 mil pontos. O mundo está subestimando a atual crise?

Quando há um ambiente internacional extremamente líquido, as taxas de juros são baixas no mundo todo e os bancos centrais continuam com discurso de expansão monetária, os investidores buscam prêmio e no Brasil ainda tem prêmio. A bolsa brasileira estava muito descontada em relação a outras bolsas e temos uma taxa de juros de longo prazo alta por conta do próprio risco fiscal. Pode ter um movimento por conta dessa euforia. Até o câmbio não aprecia tanto porque é visto como hedge das posições otimistas. Essa história só é sustentável enquanto a liquidez durar.

Qualquer chacoalhão lá fora, algum problema maior com EUA, China ou Europa, o Brasil vai sofrer mais por não estar fazendo sua lição de casa em comparação a outros países com uma situação fiscal melhor. Essa euforia é natural porque tem atividade voltando em vários países, promessa de vacina, confiança de que as políticas fiscais lá fora não vão sofrer uma redução muito tempo. A gente está vulnerável e quando essa festa acabar, a gente sofre mais.

O crescimento do desemprego veio abaixo do que se esperava até agora. As mudanças previstas no mercado de trabalho ainda não aconteceram?

Um parte das pessoas saiu da estatística dos que procuram emprego por causa das medidas de restrição social e isso vai perdurar por algum tempo ainda, porque o Brasil ainda não saiu das restrições e pode ter momentos de piora da pandemia como está acontecendo nos EUA. Enquanto as pessoas não puderem sair realmente de casa para procurar emprego, o desemprego não aparece.

Mas tem as pessoas que estão ocupadas mas tiveram redução de salário e jornada ou foram afastadas e continuam na folha de pagamento das empresas. Isso é sustentado pelos programas do governo, mas se não forem prorrogados por mais tempo, uma parte dessas pessoas será demitida porque a economia não vai voltar para o nível antes da Covid-19 e vários ramos de atividade vão mudar de perfil.

Se as lojas têm plataformas digitais mais eficientes no passado, não vão contratar tantos vendedores como antes. O mesmo para eventos sociais. Teremos mais reuniões de negócios pelo Zoom, então restaurantes, hotéis e o setor de viagens devem sofrer. É um desemprego mais estrutural, que vai acabar ficando pelas mudanças de comportamento e consumo. A tecnologia poupa mão de obra e, para um país com mão de obra pouco qualificada, fica mais difícil as pessoas se realocarem nos setores cuja demanda vai crescer, como os mais digitalizados.

Retomamos as reformas no Congresso, mas não se sabe até onde elas ajudam o quadro fiscal. As saídas dessa crise são diferentes das saídas que buscamos na crise anterior?

Deveríamos voltar para a mesma agenda do começo do governo de Michel Temer. Foi muito ampla, quando aprovamos a reforma trabalhista, o fim dos subsídios do BNDES, a mudança na regulação do pré-sal e começamos a agenda de competição do BC por mais concorrência. Temos que retomar não só reformas fiscais, mas as que geram competição e investimento.

Temos que multiplicar o Marco do Saneamento para vários setores que precisam de uma nova regulação e aprofundar a reforma trabalhista, já que a folha de pagamentos é a terceira maior despesa depois de Previdência e juros. Se não faz agora, vai ter servidor se aposentando no curto prazo e os novos contratados estarão sob a regra antiga. Traz uma ineficiência que afeta o setor privado, porque se metade da economia é improdutiva, a outra metade que depende dela também não consegue ser.

A carteira Verde e Amarela, que acabou caducando, é uma reforma micro que poderia trazer uma melhor perspectiva para o PIB. A agenda de privatizações e concessões do governo deixou muito a desejar. E a reforma tributária teria de ser de eficiência, não de aumentar imposto digital ou sobre o patrimônio que não arrecada nada e só aumenta a evasão fiscal.

Tinha que acabar com buracos como o Simples e a pejotização. Mas pela discussão hoje, a reforma do governo vai ser um mini reforma, só juntar PIS e Cofins e a reforma da Câmara dificilmente será aprovada porque inclui ICMS. Para esse ano, que tem eleições municipais, vai ser muito difícil aprovar, só para o ano que vem e se for uma reforma muito enxuta. A reforma maior pode sair ano que vem, mas as chances são baixas.

Você considera viável o plano do ministro Paulo Guedes de fazer pelo menos quatro privatizações ainda este ano?

Não tem a menor chance. A pauta está muito congestionada. Primeiro tem uma discussão de curtíssimo prazo que são os vetos. O governo veta muito porque não conversa com o Congresso, tem um risco alto de os vetos serem derrubados e são uma pauta bomba. Vamos passar semanas evitando maiores gastos. Depois entra a reforma tributária com o programa Renda Brasil (substituto do Bolsa Família), que precisa ser discutido quando o coronavoucher for extinto, sob o risco de o Congresso estender o auxílio até dezembro e ter uma dívida/PIB maior ainda. Privatização não tem como andar. Todas precisam de regulamentação, muitas são judicializadas, como vemos o Senado entrando contra as privatizações das subsidiárias da Petrobras. É bom que o processo comece, mas é lento. Ainda mais que o governo é contra vender qualquer coisa a preço de banana.

Como você avalia a ideia de transformar o auxílio emergencial, criado em caráter de urgência durante a pandemia, em um ajuda permanente?

Foi um programa feito em cima da hora para sustentar a renda dos trabalhadores prejudicados, mas não foi um programa focado. Ele cumpriu uma tarefa de emergência quando não dava tempo para debater. Não tem como ser prorrogado porque ele não é focado, muita gente que não precisava recebe. Não tem desenho de incentivo à saída da pobreza, mesmo reduzindo a pobreza. Ele não cabe nas contas do Brasil e estouraria o teto. Os gastos de assistência social hoje precisam ser revistos. Se tiver que aumentar tem que entender qual gasto o Brasil vai diminuir para aumentar este, mesmo que o valor total seja menor que o auxílio emergencial. É uma discussão muito difícil.

O ideal é tentar aumentar o valor do Bolsa Família ou criar um programa maior focado não só nos extremamente pobres, mas nas demais linhas de pobreza, principalmente tendo recursos nos gastos atuais, senão corre-se o risco de gerar um entrave para o crescimento do Brasil. Só se paga essa conta com mais impostos em uma espiral viciosa. Se o gasto é crescente, não adianta só criar um imposto. Ele vai precisar aumentar cada vez mais. Estamos no caminho contrário do controle de gastos, não fazemos discussão de qualidade, só discutimos vincular e aumentar e deixar crescendo eternamente. A conta não vai fechar.

A ideia do ministro Paulo Guedes de criar um tributo sobre os dividendos distribuídos pelas empresas resolveria alguma coisa?

Vários analistas dizem que a tributação sobre lucros e dividendos no Brasil é muito baixa, mas o que precisa ser comparado é a alíquota efetiva que as empresas pagam, porque antes de distribuir dividendos as empresas pagam Imposto de Renda de pessoa jurídica e CSLL. Ambos representam uma alíquota efetiva perto de 34%, é comparável ao resto do mundo. Tem que diminuir o imposto de pessoa jurídica para aumentar o de lucros e dividendos.

O grande problema do imposto sobre empresas é o sistema do Simples, que beneficia empresas menores mas as incentiva ao mesmo tempo a não crescer e não mudar o regime tributário, o que é extremamente ineficiente. E possíveis deduções como a pejotização, que paga bem menos imposto que um trabalhador formal. Para aumentar imposto sobre lucros e dividendos tem que revisar imposto de pessoa jurídica e impostos jurídicos como o Simples. Simplesmente aumentar sem reduzir os outros não faz sentido. 

Por que o regime tributário do Simples seria prejudicial?

O Simples é importante porque é um benefício muito grande, mas ele distorce o investimento no Brasil. Essa discussão enfrenta uma barreira muito grande e nem é discutida. Essa questão deve ser discutida, não só lucro e dividendo.

Tempos atrás, o mercado acreditava na possibilidade de o Brasil entrar numa espiral de juros ainda mais baixos e até perto de zero. Isso é plausível?

Os analistas que demandam juros cada vez mais baixos olham a inflação e a ociosidade da economia de curto prazo. Mas o BC não tem como meta apenas a inflação. É obrigação zelar pela estabilidade financeira. Em um país com um risco fiscal tão grande, quando o BC determina a Selic também determina o rendimento dos títulos de curto prazo. Estamos encurtando a dívida hoje, deixando cada vez mais ligada à Selic. A pergunta é: será que os investidores domésticos vão carregar títulos curtos brasileiros pagando juros tão baixos sabendo desse risco fiscal? Ou será que se o juro chegar muito perto de zero os investidores não vão achar mais vantajoso sair do Brasil e aplicar em taxas de juros baixas no resto do mundo onde o risco fiscal é menor?

Conseguimos duramente ter uma moeda forte, sem fuga de capitais, mas isso pode ser perdido muito rapidamente. É só estourar o teto e colocar juros muito baixos. Mesmo na situação de hoje, sem fuga de capitais e ampla liquidez internacional, temos que olhar a inflação de longo prazo. A economia está muito debilitada pelo choque de oferta e demanda, mas tivemos um choque cambial enorme e teremos câmbio depreciado por mais tempo. O real continua a pior moeda entre os emergentes no ano. Isso pode ter impacto na inflação de médio prazo, ainda que o mercado não precifique, porque no curto prazo os choques são muito favoráveis.

Quando tem um choque negativo de inflação, as inflações esperadas podem desancorar de forma rápida. Hoje os choques são positivos porque a inflação vem surpreendendo para baixo, mas temos depreciação do câmbio importante e devemos estar atentos para as metas de inflação de médio prazo que têm caído. Não vejo mais espaço para a Selic cair. O problema não é mais o nível dos juros, mas fazer o crédito chegar na ponta. Por isso o BC vem redesenhando os programas de crédito.

A crise política agravada pela tensão entre o poder Executivo e outros poderes ainda representa um risco para a agenda econômica?

Essa crise política piorou muito o risco da inflação, do fiscal e de o Brasil não aproveitar a liquidez internacional. Vimos uma melhora nas últimas semanas mas ela ainda é tensa, já melhorou no passado e foi de muito curto prazo. É importante tirar a tensão dessa situação política até o final do ano, um momento crítico em que a discussão fiscal pode ficar mais pesada. Se a crise política é muito forte, não tem meio termo: ou melhora e o Brasil faz as reformas, ou a piora é muito deletéria. O único ano para fazer alguma coisa é 2021, porque 2022 é ano eleitoral. Temos pouco tempo e temos que aproveitar.

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