Sim, é possível ser deserdado. Embora o direito à herança, no Brasil, seja garantido pela Constituição Federal, existem casos em que uma pessoa pode deixar de ser herdeira. São casos excepcionais, definidos pela lei. E alguns deles são bem famosos.
O exemplo mais emblemático já registrado no Brasil aconteceu em outubro de 2002. A jovem Suzane von Richthofen foi condenada a 39 anos de prisão por planejar a morte dos pais, Manfred e Marísia, em sua própria casa, em São Paulo. Ela permaneceu presa, em regime fechado, por mais de 20 anos.
Os bens deixados por Manfred e Marísia, avaliados em cerca de R$ 10 milhões, pararam nas mãos de Andreas, o filho caçula do casal, porque Suzane foi considerada pela Justiça como indigna de receber a herança dos pais que ajudou a matar.
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O que é ser indigno?
A advogada Camila Mello, especialista em direito de família e fundadora do escritório Mello Santos Advogados, explica que o princípio da indignidade está previsto entre os artigos 1.814 e 1.818 do Código Civil – conhecido como a “Constituição do Cidadão Comum”. “A indignidade ocorre por atos graves contra o falecido e deve ser reconhecida judicialmente”, acentua a advogada.
Para que não haja dúvidas, é considerado indigno à herança quem:
- pratica homicídio doloso (intenção de matar) ou tentativa contra a pessoa de quem é herdeiro;
- acusa caluniosamente, em juízo, o autor da herança ou pratica algum crime contra a sua honra;
- utiliza de violência ou fraude para inibir o autor da herança de dispor de seus bens em testamento.
A advogada Daniela Poli Vlavianos explica que, para a sanção civil por indignidade ser aplicada, é necessário o ingresso de uma ação judicial específica. “A exclusão de herdeiro por indignidade deve ser declarada judicialmente em ação própria, promovida por quem tem interesse na sucessão”, enfatiza a advogada.
E tem um prazo: a ação precisa chegar à Justiça em até quatro anos, contados a partir da abertura do processo de repartição dos bens.
Em 2023, o Código Civil passou por acréscimo de legislação. A Lei 14.661, sancionada pelo presidente em exercício Geraldo Alckmin, imputou o artigo 1.815-A que determina que a exclusão do herdeiro por indignidade ocorrerá após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, momento em que a decisão não pode mais ser questionada.
Por isso, enfatizam as especialistas em direito de família consultadas pelo InvestNews, o processo de indignidade contra um herdeiro precisa estar bem fundamentado, com provas que configuram a infração penal.
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Deserdação: o que é?
A segunda situação em que a pessoa pode perder o direito aos bens da família é a deserdação.
Diferentemente da indignidade, nesse caso o autor da herança precisa deixar essa opção registrada em testamento para ser cumprida. Mas não é por qualquer motivo: a lei define situações bem específicas em que é possível excluir o herdeiro.
As causas que motivam a deserdação são as seguintes, segundo o Código Civil:
- ofensa física ou tentativa de homicídio contra o ascendente, descendente ou cônjuge;
- injúria grave contra o ascendente, descendente ou cônjuge;
- relações ilícitas com o cônjuge do testador; e
- desamparo moral ou material ao ascendente ou descendente em situação de necessidade.
“A deserdação ocorre quando o testador [dono do testamento] manifesta no documento sua vontade de excluir um herdeiro necessário, indicando uma das causas previstas nos artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil”, aponta a advogada Daniela Poli Vlavianos.
Um caso de deserdação que chamou a atenção no Brasil ocorreu na família de Joseph Safra (1938-2020), fundador do Banco Safra.
Alberto Safra foi deserdado por decisão de seu pai, Joseph, depois de um desentendimento. A família Safra, na época, relatou em comunicado o que teria causado a briga entre pai e filho. Em 2023, na tentativa de recuperar a herança, Alberto processou a mãe, Vicky Safra, e os irmãos, Jacob e David Safra. Na ação, ele acusou os parentes de envolvimento em atos de improbidade corporativa para prejudicar os interesses dele na empresa e afirmou ter sua parte legítima no Safra National Bank, com sede em Nova York.
O processo foi aberto na Suprema Corte de Nova York, nos Estados Unidos. E foi encerrado em julho de 2024. A família Safra chegou a um acordo que, segundo comunicado divulgado à época, deixou todas as partes satisfeitas. A fortuna da família é estimada em US$ 15 bilhões.
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Segundo a advogada Daniela Vlavianos, a pessoa deserdada pode contestar a situação na Justiça, mas o pedido exigirá análise minuciosa do juiz, o responsável por definir se ocorreu alguma das infrações previstas em lei.
E herdeiro indigno ou deserdado pode voltar a ter direito aos bens? A resposta é sim. Para isso, apontam as advogadas consultadas pela reportagem, o autor da herança precisará fazer uma nova declaração em testamento ou em outro documento válido que permitirá ao herdeiro a recuperação de seu status.
Aos olhos da lei, a perda de herança no Brasil é uma medida excepcional e atrelada à moralidade e à preservação do respeito ao dono dos bens. “A indignidade, como no caso de Suzane von Richthofen, e a deserdação são instrumentos jurídicos que asseguram que comportamentos graves contra o testador ou seus familiares não sejam premiados com a transmissão patrimonial”, salienta Daniela Vlavianos.
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