Parece inimaginável ver alguém renunciar a uma herança deixada por pais ou familiares próximos. Vez ou outra, entretanto, essa situação acontece. E quando a notícia vem à tona, sempre chama a atenção.
Foi o caso da apresentadora Eliana, 51. Ela abdicou do direito de receber a parte que lhe cabia da herança deixada pelo pai.
José Bezerra, pai de Eliana, morreu em março deste ano, aos 92 anos. A causa da morte não foi divulgada na ocasião, mas o aposentado estava debilitado por sequelas de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) registrado sete meses antes de seu óbito.
O patrimônio deixado pelo patriarca da família Bezerra é desconhecido, mas o de Eliana, segundo a imprensa especializada em entretenimento, é estimado em pouco mais de R$ 140 milhões.
A apresentadora amealhou sua fortuna ao longo de 38 anos de carreira, período em que atuou como cantora e apresentadora. Para renunciar ao direito da herança do pai, Eliana seguiu os trâmites da Justiça e deixou a parte dos bens que lhe cabiam à irmã, Helena Duarte.
A decisão de Eliana é tema da reportagem do Especial Herança, publicado esta semana pelo InvestNews. A série retratou, a partir de casos envolvendo famosos, os percalços enfrentados na hora de dividir bens e valores deixados em inventários e testamentos. Os casos de Mussum, Zagallo, Gal Costa e Pelé foram retratados.
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O procedimento, pouco usual no Brasil, requer o cumprimento de uma série de regras para ser aceito pela Justiça, salientam os especialistas em sucessão patrimonial consultados pelo InvestNews.
Em primeiro lugar, a renúncia de bens só pode ser realizada após o falecimento do dono dos bens, explica a advogada Priscilla Iglesias Maier Böing, especializada na área de família e sucessões do Böing Vieites Gleich Mizrahi Rei Advogados. E tem prazo: 60 dias após o falecimento, o mesmo da abertura do inventário.
“Só quando o falecimento de um ascendente acontece é que o herdeiro necessário pode renunciar à herança. O procedimento não pode ser feito enquanto a pessoa está viva”, enfatiza a advogada.
Para não ter dúvidas: herdeiros necessários são aqueles que têm direito legal a uma parte da herança deixada por uma pessoa falecida e que não podem ser excluídos dessa partilha, a menos que faça a recusa.
No Código Civil atual, cuja última atualização ocorreu em 2002, o artigo 1.815 estipula que estão neste grupo os descendentes (filhos e netos), os ascendentes (pais e avós) e os cônjuges.
Quem está em uma dessas posições garante o direito de receber, de forma equânime, a divisão obrigatória de 50% do patrimônio da herança, nomeada de legítima.
O cálculo da herança legítima é feito sobre o valor dos bens existentes no início do processo de sucessão, subtraindo do patrimônio as despesas realizadas com funeral e eventuais dívidas que o falecido tenha deixado.
Os outros 50% do patrimônio são listados como herança disponível. Nela, a destinação dos bens é livre e pode beneficiar qualquer pessoa. O Congresso Nacional discute a retirada dos cônjuges no rol dos herdeiros necessários em projeto de lei que atualiza o Código Civil.
Tipos de renúncia
Antes de partir para a renúncia de bens em processos de herança, a pessoa precisa saber em qual modalidade vai se encaixar. A advogada Priscilla Böing explica que são dois tipos: a abdicativa e a translativa.
Na abdicativa, o autor da renúncia de herança abre mão do valor a que tem direito e o deixa aos demais herdeiros. “Nesta modalidade, ao não especificar qual herdeiro será beneficiado, todos acabam sendo contemplados”, diz a advogada.
Já na translativa, o herdeiro renuncia ao direito e o cede para outro, que é indicado no processo de inventário. “Nesse caso, haverá a incidência de ITCMD [Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação] porque é como se o proponente estivesse aceitando, renunciando e transmitindo os bens para outra pessoa”, explica a especialista.
A modalidade que mais se aproxima do caso de Eliana é a renúncia translativa, já que os bens foram transferidos para uma pessoa indicada: a irmã dela. Para comunicar a decisão à Justiça, a apresentadora optou pela escritura de renúncia, que foi juntada ao inventário de seu pai.
Além da escritura de renúncia é possível redigir um termo judicial, que é realizado em juízo. Já a escritura pública pode ser feita em qualquer cartório de notas.
Vale destacar que a renúncia só pode ser realizada por herdeiro maior de idade e plenamente capaz de seus atos. “Na hipótese de menores de idade ou pessoas incapazes, será necessária uma autorização judicial para a renúncia, comprovando a inexistência de prejuízo”, salienta Laísa Santos, advogada especializada em Planejamento Patrimonial, Família e Sucessões.
O advogado Jorge Augusto Nascimento, sócio da Domingues Sociedade de Advogados, lembra que, a depender do regime de casamento do renunciante, tem uma outra etapa: a outorga uxória.
O termo não ajuda, mas a gente explica. Outorga uxória, listada no artigo 1.647 do Código Civil, nada mais é do que “a assinatura do cônjuge concordando com a renúncia”, diz o especialista. Se os envolvidos forem casados pelo regime de comunhão universal de bens. tudo o que foi adquirido por herança passa a integrar o patrimônio comum de ambos. Então, ambos precisam estar de acordo com a renúncia.
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Arrependi e agora?
A legislação é clara: quem renuncia ao direito de receber uma herança no Brasil não pode voltar atrás. O ato é irrevogável, ou seja, não dá pra se arrepender depois.
“A renúncia à herança é um ato personalíssimo, unilateral e impossível de retorno da decisão”, pontua a advogada Priscilla Böing.
Também não é possível renunciar só a uma parte do bem. Uma vez que o pedido foi aceito, o renunciante perde o direito à totalidade a que tinha direito.
Os especialistas consultados também dizem que a renúncia à herança pode ser uma finalidade específica: o pagamento de dívidas. É possível renunciar à herança em favor dos credores. Mas, nesse caso, a operação precisa ser aceita pela Justiça.
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