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Finanças

Financiamento de litígios: a ascensão de uma nova classe de investimentos

Ele propõe ganhos fora da curva e ajuda a mover o processo de R$ 247 bilhões contra a BHP, que envolve a Vale

A Burford Capital, uma empresa com ações na bolsa de Nova York, produz algo inusitado: indenizações judiciais. Ela banca as custas jurídicas de escritórios de advocacia em troca de uma parte dos honorários que caírem lá na frente, em caso de vitória. 

A cada caso ganho pinga dinheiro no caixa, e daí em diante é como qualquer empresa de capital aberto: uma parte, eles distribuem para os acionistas na forma de dividendos e outra vira investimento para aumentar a produção – ou seja, para financiar mais processos. Desde o IPO, em 2020, as ações sobem 40%.

A Burford não está sozinha nesse mercado. Entre as gestoras de investimentos especializadas em ações judiciais, também tem a Gramercy Funds, a Juridica Investments, a Woodsford Litigation Funding… O nome desta última, aliás, refere-se justamente a como o mercado chama o ramo de atuação delas todas: financiamento de litígios. 

Trata-se de uma área relativamente nova, e ainda pequena, no mundo das finanças. Mas que tem ganhado tração, inclusive no Brasil. Ainda que não existam por aqui instituições 100% voltadas para o financiamento de litígios, cada vez mais a Faria Lima aposta nessa seara. 

Para entender melhor como a coisa funciona, vamos olhar mais de perto um caso que tem tudo a ver com o Brasil, e que tem aparecido com frequência no noticiário: o da indenização bilionária referente à tragédia de Mariana (MG).

Quem move esse caso é uma firma britânica que especializou-se em financiamento de litígios: a Pogust Goodhead. Trata-se de um escritório de advocacia mesmo, não de uma instituição financeira. A coisa é que ela se especializou em levantar dinheiro com gestoras de investimentos para abrir ações coletivas – em que milhares de pessoas partem em conjunto para uma ação judicial.

No caso sobre Mariana, a Pogust representa 610 mil indivíduos, 46 municípios e 2,5 mil organizações (empresas, igrejas etc.). Todos de Minas Gerais e Espírito Santo, os estados afetados pelo infame rompimento da barragem da Samarco, em novembro de 2015.  

A ré no processo é a mineradora anglo-australiana BHP, que controla a Samarco em sociedade com a Vale (50% cada). Ele rola na Justiça britânica porque a BHP negocia suas ações na bolsa de Londres (entre outras razões que vamos mostrar mais adiante). 

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E a Pogust pede 36 bilhões de libras em indenizações para os afetados. Pelo câmbio de hoje, dá R$ 247 bilhões – 6,6 vezes os R$ 37 bilhões que Vale e BHP gastaram nos oito anos desde a tragédia em reparações. O processo é o maior na história do Reino Unido. Foi aberto em 2018, e o julgamento está marcado para outubro.  

Bom, existem duas formas de pagar pelos serviços de um escritório de advocacia. Uma é remunerar por hora, não importando o desfecho do caso. Os advogados recebem de qualquer jeito e pronto.

A outra forma é pelo modelo dos “honorários contingentes”. Você não paga nada, mas deixa combinado com o escritório que, em caso de vitória, ele fica com uma parte da indenização. Os advogados só recebem se você ganhar o processo. 

É nesse modelo que o financiamento de litígios opera. A firma de advocacia vende para gestoras de investimento os honorários que teria direito a receber no futuro, em caso de vitória.  

No caso que a Pogust toca contra a BHP, os honorários são 30% do que eventualmente entrar para indivíduos ou empresas, e 20% do que os municípios receberem (o escritório ressalta que, no caso dos 10 mil indígenas e quilombolas da lista de clientes, a fatia do escritório será de 0%). 

Foto: Adobe Stock

Na conta de padaria: só 20% do total já daria R$ 50 bilhões em honorários. O mais provável é que a vitória, se vier, seja na forma de um acordo a valores menos espetaculares. Ainda assim, a fatia do escritório continuará monumental. 

Mas se é tanto dinheiro, por que um escritório se preocuparia em buscar gestoras de investimentos para vender seus honorários futuros? Por uma razão simples: tocar processos dessa monta é uma atividade de capital intensivo. Demanda uma cordilheira de dinheiro.     

A Pogust diz que já desembolsou 70 milhões de libras (meio bilhão de reais) desde o início do caso. Além das custas judiciais e da contratação de advogados especialistas, que trabalham por hora e cobram um rim a cada 60 minutos, a própria arquitetura do caso custou caro. A firma precisou estruturar-se no Brasil para reunir interessados em formar a ação coletiva, e estamos falando em mais de meio milhão de clientes.          

Como não entra dinheiro à vista, o escritório tem de pegar emprestado – dando como garantia os tais honorários contingentes. Bancos não trabalham com esse tipo de crédito. Arriscado demais para eles. O jeito, então, é recorrer a gestoras de investimento habituadas a trabalhar com ativos flamejantes.  

O que o escritório faz, então, é vender “debêntures” para as gestoras, oferecendo juros bem maiores que os de mercado – já que o tamanho dos honorários eventuais permite compromissos fora da curva. O normal são juros de 25% ao ano em dólar. É o suficiente para transformar US$ 100 mil em US$ 900 mil depois de 10 anos sob juros compostos. 

Dez anos porque faz sentido aqui falar em longo prazo. Um processo, afinal, pode demorar mais de uma década para chegar a um desfecho. E só haverá qualquer remuneração para as gestoras/credoras se o caso encerrar a favor dos clientes do escritório. O que temos aí, então, é uma transferência de risco com prêmio embutido, como acontece em boa parte dos investimentos.

“Embora pareça algo distante do mercado financeiro, um litígio nada mais é do que um projeto. Um projeto que, para seguir em frente, precisa de financiamento”, resume Ana Carolina Salomão, advogada paulistana que ocupa o cargo de Chief Investment Officer na Pogust.

Quem financia esses projetos, no fim das contas, são os clientes das gestoras. Os ativos de litígios ficam alocados em fundos que contêm assets parecidos – FIDCs (Fundos de Investimento em Direitos Creditórios), por exemplo. “Você tem um direito litigioso sub júdice. Ele pode existir ou não, mas é um potencial direito de crédito. Então você coloca isso dentro de um FIDC”, diz o advogado Tomás Jatobá, sócio da gestora Vinci Partners. 

A Vinci trabalha com financiamento de litígios desde 2018. O primeiro caso foi um processo de acionistas minoritários da JBS contra os irmãos Batista, controladores do frigorífico.”Foi pelos crimes que eles confessaram nas delações premiadas”, diz Tomás. Nota: como qualquer outra companhia do ramo, a gestora não comenta sobre os litígios que tem em carteira neste momento, por questão de sigilo. 

Bom, antes de a gente seguir aqui com a mecânica desses financiamentos, vale contextualizar um pouco melhor o caso de Mariana – se você já estiver familiarizado o bastante, pode pular direto para o próximo intertítulo. 

O processo em Londres

No dia 5 de novembro de 2015, rompeu-se uma barragem de mineração nas cercanias do município de Mariana (MG), próximo a Ouro Preto e a 115 km de Belo Horizonte.  

“Barragem de mineração” é uma espécie de piscinão de dejetos numa montanha. É para lá que vai tudo o que não é aproveitado depois do tratamento do minério – muita água, usada para “lavar” o que sai das minas, e partículas sólidas. O resultado é basicamente uma represa de lama. Com o tempo, a parte sólida vai se assentando no fundo, e vira parte da montanha.    

Uma das represas de lama que a Samarco mantinha era a chamada “barragem de Fundão”, no subdistrito de Bento Rodrigues, que fica em Mariana. Ela arrebentou, soltando 25 mil piscinas olímpicas de rejeitos de mineração. O rompimento em si causou 19 mortes, e boa parte dos 62 milhões de metros cúbicos de lama chegou à bacia do Rio Doce, o que  contaminou a água de dezenas de municípios de Minas Gerais e Espírito Santo com metais pesados, e até hoje compromete a pesca e a agricultura na região. 

Em 2016, num acordo com o poder público, a Vale e a BHP criaram a Fundação Renova, uma organização voltada a pagar indenizações pela tragédia. Até março deste ano, ela desembolsou R$ 37 bilhões.

O advogado britânico Tom Goodhead tomou conhecimento do caso em 2017, através de um colega brasileiro. Visitou cidades afetadas e considerou que tinha os elementos necessários para abrir um processo no Reino Unido contra a BHP. Por que lá? Primeiro, porque a mineradora negocia suas ações na bolsa de Londres, então seria cabível que ela respondesse à jurisdição de lá. Segundo, por entender que a corte britânica, mais acostumada a lidar com ações coletivas do que a brasileira, seria mais propensa a favorecer as vítimas. 

Tom contratou uma equipe de advogados (incluindo brasileiros no time) e fundou a Pogust Goodhead para cuidar do caso. Em 2018, iniciou o processo, representando 200 mil pessoas, número que chegaria aos atuais 610 mil, mais os municípios e empresas que hoje estão no papel de litigantes.

A BHP pediu a inclusão da Vale como co-responsável, pelo fato de ela ser sua sócia na Samarco. E em agosto de 2023 a Justiça britânica aceitou. Se a BHP perder o processo,  a Vale terá de arcar com metade das indenizações, por ser sua sócia na Samarco.

Foto: Reuters/Washington Alves

Para fechar ainda mais o cerco, a Pogust também abriu um processo especificamente contra a Vale, em março de 2024, também pelo desastre de Mariana. Mas não na Justiça do Reino Unido, nem na do Brasil. “Protocolamos na Holanda, que é a jurisdição onde a Vale tem sua holding de ativos financeiros”, diz Ana Carolina, a CIO do escritório. Nessa frente, a Pogust representa 70 mil pessoas (que não tinham sido incluídas no processo contra a BHP), e pede 3 bilhões de euros (R$ 17,5 bilhões). 

O julgamento do caso de Londres, como dissemos, será em outubro. Coincidência ou não, a Advocacia Geral da União (AGU) colocou pressão para que Vale e BHP ampliem as indenizações que já têm pagado por aqui. A oferta mais recente das mineradoras, feita no dia 12 de junho, contempla R$ 82 bilhões à União, e aos governos de Minas e Espírito Santo, mais R$ 21 bilhões em obras (como a limpeza do Rio Doce), a serem gastos nos próximos 20 anos.

Segundo a Folha de S.Paulo, a AGU pretende fechar logo um acordo porque uma eventual vitória no julgamento do Reino Unido deixaria as empresas sem caixa para as reparações que o estado pleiteia. Diante disso, também é possível interpretar o oposto: que a chance de uma grande indenização para o Estado diminua o montante disponível para um eventual acordo no caso de Londres. 

São os riscos do financiamento de litígio. Para quem investe nisso, de qualquer forma, há formas de diluir as incertezas.  

Mitigação de riscos

A Pogust nasceu com o caso de Mariana. Mas cresceu, e hoje toca 30 processos de grande porte. Existe, então, a possibilidade de a gestora investir num portfólio de ações judiciais, em vez de pegar um single name – jargão para o financiamento de um único caso. O lucro com a vitória em um pode lavar as perdas com a derrota em outro. Um pouco menos de risco, num negócio que, de qualquer forma, sempre trará um grau praticamente quântico de incerteza – até por isso, os fundos com financiamentos de litígio lá dentro geralmente são restritos a investidores profissionais, com mais de R$ 10 milhões em ativos.    

Outro fator que influencia o risco, e o retorno, é o grau de maturidade de cada processo. “Esse mercado tem uma pegada de venture capital. Os primeiros investidores de um caso, aqueles que entraram quando ele ainda era um PowerPoint, fecharam por retornos agressivos, de várias vezes o capital investido”, diz Ana Carolina. “Mas aí o processo anda, a gente ganha em primeira instância… O caso vai ganhando espécie. Obviamente o perfil de risco muda, e o custo de capital também [o financiamento fica mais barato para o escritório]“.

Cada gestora de investimento tem sua estratégia de risco/retorno, claro. “Via de regra, a gente olha para casos mais no início, quando há demanda por mais recursos para colocar o caso de pé. Mas isso não exclui a hipótese de que a gente invista num caso mais maduro”, diz Pedro Mota, sócio da Jive Investments. 

“Também tem a hipótese de comprar o ativo; deixar o ativo inteiro dentro do fundo”. Ou seja, em vez de combinar uma taxa de juros sobre o capital investido, compra-se do escritório de advocacia todo o direito a honorários que ele teria sobre tal caso. “Para casos mais maduros [de risco menor], esse acaba sendo o modelo maios aplicado”, afirma Pedro.  

O cúmulo da mitigação de risco num financiamento de litígio seria uma seguradora simplesmente bancar os investidores caso os processos dêem em água. E isso existe também. 

A Gramercy, citada lá no início, colocou 450 milhões de libras (R$ 3,1 bilhões) na Pogust Goodhead em outubro do ano passado. E esse dinheiro está sob uma apólice de seguro. Se tudo der errado, os cotistas da gestora americana, recebem de volta o capital investido. “Foi a primeira vez na nossa história que conseguimos algo assim. O mercado de seguros e resseguros é muito forte aqui na Inglaterra. Eles já estão bem avançados em financiamento de litígio. Entenderam, nesse caso, que a chance de a gente não conseguir recuperar o investimento dentro do portfólio inteiro é baixa”, diz Ana Carolina.

Outra amostra da tração que esse mercado pegou é uma iniciativa da própria CIO da Pogust. Ana Carolina montou sua própria companhia de financiamento de litígios, a Montgomery, para abraçar casos que não cabiam na estrutura da Pogust. 

A ideia ali é trabalhar com intermediação. De um lado, encontrar financiadores para casos que precisem de dinheiro; de outro, buscar casos que batam com o perfil que tal e tal gestora estiverem buscando para compor sua carteira de litígios. A empresa começou no início de 2024, e trabalha com clientes de vários países: Brasil, Colômbia, Emirados Árabes, Estados Unidos, França e Reino Unido. 

Um dos sócios na empreitada é o advogado Celso Pereira, seu colega da Faculdade de Direito da USP, e que tinha trabalhado com ela no Itaú BBA – trajetórias que demonstram por si só o quanto o mundo jurídico e o mercado financeiro têm se entrelaçado.

E é justamente por conta desse entrelaçamento que o litigation funding carrega uma polêmica: ele não acaba incentivando a criação de litígios que nem deveriam existir?

Paridade de armas

O fato é que sempre haverá maus profissionais em busca de brechas para abusos, como em toda atividade econômica. Por outro lado, a mão invisível também ajuda a regular esse mercado. Um escritório que pegue causas sem sentido terá menos sucesso nos tribunais, e uma gestora que tope tudo vai acabar mal, conforme os casos duvidosos que ela tiver na carteira forem flopando.

“A taxa de casos financiados versus casos apresentados é muito baixa. Aqui, menos de 5%”, afirma Gustavo Klein, diretor da Prisma Capital. “Ao negar financiamento para um caso, uma gestora mostra para a parte que busca esse financiamento que aquele litígio não deveria ser ajuizado. Por esse ponto de vista, a gente acaba atuando como um desincentivador de demandas frívolas”. 

“E existe um elemento subjetivo nessa seleção: a busca por casos efetivamente meritórios, justos”, segue Gustavo. “O de Mariana provavelmente não teria avançado se não fosse pelo financiamento de litígios”. 

Pedro Mota, da Jive, complementa: “Esse mercado existe porque há demanda por acesso à Justiça”. Pedro lembra que é basicamente impossível enfrentar a estrutura jurídica de uma megaempresa sem poder contar com advogados de primeira linha no seu lado do ringue também. “A justiça só pode ser feita na sua plenitude se você tem paridade de armas. E é isso que o financiamento permite.”

Caso encerrado? Fica a seu critério, leitor. Aqui, o juiz é você.

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