As stablecoins viraram um assunto quente nas conversas do mundo financeiro. Entre os Bancos Centrais há uma crescente preocupação com a necessidade de regulação diante do uso cada vez maior desse tipo de criptomoeda, que transforma o dinheiro do mundo real em um ativo digital de mesmo valor, mas que flui num sistema à parte. E isso tem um efeito desestabilizador sobre o modelo bancário tradicional.
As stablecoins têm se se mostrado os produtos com maior potencial de crescimento do mundo cripto. Têm sido amplamente utilizadas para remessas e pagamentos de um país para outro (geralmente em dólar), e também como reserva de valor – é uma forma simples e barata de guardar dólar, afinal.
Aqui no Brasil, o BC levantou a bandeira amarela: as stablecoins podem ser uma forma de converter reais em dólares e transferir os valores para fora do país sem passar pelos controles da autoridade. O órgão tem enfatizado, cada vez mais, a necessidade de regulação do mercado, como forma de trazer maior transparência e instituir garantias aos aplicadores.
O diretor de organização do sistema financeiro e de resolução do BC, Renato Gomes, classificou como preocupante o uso crescente desse tipo de moeda digital no país, sem um ambiente regulado. “Você pode obter as stablecoins e, quando chegar aos Estados Unidos ou a qualquer outro lugar, pode sacar a stablecoin e, essencialmente, usar uma conta em dólares – sem a regulação usual.”
Os dados do BC mostram que a aquisição de criptomoedas no Brasil saltou de US$ 701 milhões em abril de 2022 para US$ 1,064 bilhão no mesmo mês deste ano. Antes, em 2024, já tinha chegado a picos de US$ 1,7 bilhão por mês.
Em 12 meses até abril de 2025, o volume alcançou US$ 16,2 bilhões. Segundo o BC, 90% vem de negócios com stablecoins. Em reais, são quase R$ 103 bilhões em um ano, dos quais cerca de R$ 90 bilhões movimentados por meio de stablecoins. Para comparar: no mesmo período, as compras de títulos do Tesouro Direto movimentaram menos do que isso: R$ 85,2 bilhões.
Regulação abre a lâmpada do gênio
O universo das stablecoins vai receber um impulso ainda maior nos próximos dias. Isso porque os Estados Unidos estão muito perto de aprovar uma regulação específica desse mercado. Em um novo ambiente que vai contar com supervisão e salvaguardas, a tendência é de ocorrer um aumento exponencial da demanda por uso dessas versões digitais do dólar.
O Citibank, por exemplo, projeta que as stablecoins possam atingir até US$ 3,7 trilhões em 2030. Significa multiplicar por 14 o atual tamanho do mercado de US$ 250 bilhões.
O chamado Genius Act, proposto pelo governo Trump para regularizar as stablecoins, já recebeu aprovação do Senado e em algumas semanas pode ser referendado pela Câmara dos Deputados dos EUA – em tempo: “Genius” é uma sigla em inglês para “Orientando e Estabelecendo a Inovação Nacional para Stablecoins” (um termo forçado, para gerar um acrônimo sonoro).
A legislação tem sido tema de debates intensos, que lançam luz sobre o futuro papel desse tipo de moeda digital no mercado financeiro. Mas também sobre o potencial desestabilizador que esse sistema pode representar.
Beto Fernandes, analista da Foxbit, enxerga os bancos tradicionais em geral como os mais afetados pelas mudanças. “As stablecoins podem trazer uma transformação mais abrupta ao sistema financeiro. Podem, por exemplo, reduzir a importância do modelo Swift de transferências e pagamentos internacionais.”
O Swift é um sistema de informações de pagamentos que conecta mais de 11 mil instituições financeiras em 200 países. Ao longo das décadas, se tornou a principal plataforma de validação de transferências monetárias entre bancos de diferentes nacionalidades.
O problema é que dentro do Swift uma transação demora cerca de três dias úteis para ser concluída e está sujeita à limitação de dias e horários. O tempo é necessário para realizar a conciliação dos dados e a compensação da transferência entre as instituições.
Com uso de uma stablecoin, a transferência de dinheiro acontece em segundos e pode ser feita a qualquer momento, 24 horas por dia, sete dias por semana. A validação é instantânea, porque ocorre dentro da rede blockchain usada pela moeda digital – ou seja, totalmente fora do sistema bancário. Isso tem várias implicações, por exemplo, não existe IOF numa blockchain.
A força do dólar digital
O que ainda limita o uso maciço das stablecoins é, justamente, a falta de regulação e supervisão. Isso porque em um mercado com fiscalização há uma segurança maior contra fraudes e riscos de insolvência dos emissores.
O Genius Act estabelece que cada unidade de stablecoin precisa ter como lastro dinheiro ou títulos de curto prazo do Tesouro americano na mesma proporção. A medida institucionaliza a prática que já existe no mercado. É justamente com lastro que os emissores garantem a estabilidade e a capacidade de resgate dessas moedas digitais.
O modelo de negócio para as empresas que fazem stablecoins é lucrar com os juros pagos pelo dinheiro das reservas. Elas ficam na forma de títulos públicos, então é simples. Você, emissor, produz 1 milhão de stablecoins e coloca à venda. Recebe US$ 1 milhão (1:1, afinal). Deixe esse milhão rendendo por um ano, e pronto: você ganha US$ 40 mil; e seu milhão de dólares segue intacto no papel de lastro para suas stablecoins.
A lei oficializa um dos fundamentos das principais stablecoins, ou seja, a necessidade de haver um lastro de 1 para 1, o que assegura a equivalência de valor entre a unidade do criptoativo e a moeda espelhada. É assim que funcionam as maiores stablecoins de dólar: USDT, USDC, TUSD, e PYUSD (do PayPal, primeira instituição de pagamentos tradicional a lançar uma stablecoin). Juntas, elas representam 90% do mercado.
A parte das reservas, então, é central para todos. Mas principalmente para o comprador. É fundamental garantir que elas existam de fato. Cada empresa emissora, porém, faz suas demonstrações financeiras à sua maneira. Sem um padrão. A nova legislação chega para mudar isso, elevando o sarrafo das normas de transparência para o mercado. Exigirá, por exemplo, a publicação de relatórios mensais sobre as reservas, auditados por terceiros que tenham uma confiabilidade reconhecida no mercado.
Apesar de pioneiro, o Genius Act tem como um dos fundamentos o fortalecimento do dólar como moeda de transação global. A exigência de lastro em títulos públicos dos EUA e o impulso ao crescimento do mercado de stablecoins lastreadas na moeda americana vão criar, de quebra, uma espécie de demanda cativa por papéis curtos do Tesouro americano.
“Na era Trump 2.0, as stablecoins passaram a ser uma peça estratégica para financiar o Estado americano, garantir liquidez ao Tesouro e reforçar a dominação monetária global dos EUA”, afirma o CEO do Energy Group, Fabio Ongaro.
O mercado dessas moedas digitais representa em torno de 1% da base de Treasuries. “Mas com regulação clara e emissão institucionalizada, esse mercado pode facilmente romper a casa do trilhão de dólares”, considera o economista e planejador CFP Lucas Calado. “Quando você institucionaliza stablecoins lastreadas em dólar está exportando o dólar digital sem pedir permissão ao Fed (Federal Reserve, o BC americano). É uma nova versão das contas em dólar em bancos fora dos EUA: mais líquida, mais acessível e mais difícil de rastrear.”
A percepção é partilhada pelo fundador e CEO da C9, Thiago Ribeiro. “O movimento de regulação das stablecoins dos EUA tem um objetivo claro: reforçar a posição do dólar como moeda de negociação do mundo.” Faz sentido para um momento em que a preponderância do dinheiro verde já não parece mais tão garantida quanto já foi.
(colaborou Rodrigo Tolotti)