Essa estratégia foi criada por Michael Saylor, que transformou sua empresa, Strategy, em um veículo de capital aberto com caixa em bitcoin. E, durante a primeira metade de 2025, ela funcionou para mais de uma centena de outras companhias que seguiram seus passos.
As chamadas “digital asset treasuries”, ou DATs – empresas que passaram a usar seu caixa para manter grandes quantidades de ativos digitais – viraram uma das maiores febres do mercado, com ações disparando e atraindo investidores de peso, como a própria família de Donald Trump.
Um dos casos mais emblemáticos foi o da SharpLink Gaming, que subiu mais de 2.600% em poucos dias ao anunciar que abandonaria o antigo negócio de games e passaria a vender ações para comprar grandes quantidades de ethereum. A empresa chegou a ter até um cofundador do ethereum como presidente do conselho.
Mas sempre foi difícil justificar por que os tokens deveriam valer mais apenas por estarem nas mãos de uma empresa listada. Daí para frente, a engrenagem começou a falhar, primeiro devagar, depois muito rapidamente.
No caso da SharpLink, as ações já caíram 86% desde o pico, fazendo com que a empresa inteira passasse a valer menos do que os ativos digitais que possui. Hoje, o papel negocia a cerca de 0,9 vez o valor de suas reservas de ether, ou seja, o valor de mercado da empresa é menor do que o valor das criptomoedas que ela tem. E ainda foi um destino melhor do que a Greenlane Holdings, que despencou mais de 99% no ano mesmo detendo cerca de US$ 48 milhões em tokens BERA.
“Os investidores perceberam que esses ativos não geram praticamente nenhum retorno e foi por isso que os preços das ações encolheram”, afirmou Fedor Shabalin, analista do banco de investimento B. Riley Securities.
Entre as empresas listadas nos EUA e Canadá que se tornaram DATs, o preço mediano das ações caiu 43% no ano, segundo dados compilados pela Bloomberg. O bitcoin, em comparação, recua cerca de 6% desde janeiro.
Retornos das empresas ficam atrás do mercado
Algumas poucas DATs ainda valem mais do que suas reservas de criptos, mas a maioria trouxe perdas a quem comprou perto dos picos, e 70% devem terminar o ano abaixo do nível de início, segundo cálculos da Bloomberg. As maiores quedas ocorreram entre empresas que evitaram o bitcoin e apostaram em ativos digiais menores e mais voláteis.
Dois filhos de Donald Trump apoiaram a Alt5 Sigma Corp, empresa que pretendia comprar mais de US$ 1 bilhão do token WLFI, emitido por outra companhia cofundada pela própria família Trump. As ações da Alt5 Sigma já caíram 86% desde o pico de junho.
A volatilidade também foi alimentada pelo grande volume de dinheiro tomado emprestado para financiar essas aquisições corporativas de cripto.
A Strategy financiou suas compras de bitcoin por meio de uma combinação agressiva de títulos conversíveis e ações preferenciais, com suas reservas chegando a valer mais de US$ 70 bilhões. Como grupo, as DATs levantaram mais de US$ 45 bilhões neste ano para comprar tokens.
Agora, porém, Strategy e outras empresas precisam pagar os juros e dividendos dessas dívidas, o que é um grande problema, já que suas reservas de cripto não geram fluxo de caixa.
“Se você compra ações da Strategy, assume o risco do bitcoin e o risco corporativo da empresa”, disse Michael Lebowitz, gestor da RIA Advisors.
A Strategy tentou recentemente levantar mais capital para manter a engrenagem funcionando, recorrendo à Europa em novembro para vender ações preferenciais perpétuas com desconto, depois que a oferta nos EUA frustrou expectativas. Mas essas ações, em euro, já caíram abaixo do preço inicial.
Enquanto isso, para DATs menores e com menos visibilidade, levantar capital está ainda mais difícil, especialmente com a queda das criptos e o desânimo dos investidores. Pressionadas, algumas DATs podem ser forçadas a vender suas criptos, possibilidade que assustou o mercado.
Para a Strategy, o próximo passo óbvio seria vender parte de suas reservas para pagar as contas. E o CEO da empresa, Phong Le, admitiu essa possibilidade. “Podemos vender bitcoin e venderíamos, se precisássemos financiar nossos dividendos”, disse ele em um podcast.
Le afirmou que considerará essa opção se o mNAV da empresa cair abaixo de 1, um cálculo que indica quando o valor de mercado da empresa fica menor que o valor das criptos que ela possui.
Essas declarações estremeceram o setor porque Saylor sempre afirmou que nunca venderia seus bitcoins e que compraria mais quando os preços caíssem. “Venda um rim, se for preciso, mas não venda seu bitcoin”, brincou ele em fevereiro, na rede social X.
As ações da Strategy já caíram 60% desde o pico de julho. A empresa mantém um fundo de reserva de US$ 1,4 bilhão para cobrir dividendos no curto prazo e ainda acumula ganho superior a 1.200% desde agosto de 2020, quando começou a comprar bitcoin. Mas deve fechar o ano com queda de 38%.
O colapso das DATs pode contaminar outros mercados. O risco agora é que as DATs sejam obrigadas a vender suas criptos, empurrando os preços dos tokens para baixo e desencadeando um ciclo maior de queda.
“Se aparecer uma manchete dizendo que a Strategy vendeu, mesmo que sejam só três bitcoins, depois de tudo que o Saylor disse sobre nunca vender, muita gente vai começar a duvidar da tese do bitcoin”, disse Lebowitz.
O tombo das DATs também pode se espalhar para outros mercados se investidores endividados forem forçados a vender ativos às pressas. Por ora, o estrago se limitou ao fim da onda de novas empresas aderindo ao modelo e ao congelamento da atividade de mercado que ele havia criado.
Mas há sinais de que pode surgir uma nova fase, com DATs maiores comprando DATs menores que hoje valem menos do que suas reservas. A Strive, por exemplo, fechou um acordo para adquirir a Semler Scientific, em uma operação totalmente em ações de duas empresas com tesouraria em bitcoin. A Semler, uma das primeiras DATs, já caiu 65% este ano.
Ross Carmel, sócio do escritório Sichenzia Ross Ference Carmel, acredita que fusões e aquisições vão aumentar entre DATs no início de 2026, com foco em empresas sob forte pressão. Segundo ele, o setor deve ver mais operações com títulos estruturados “que possam oferecer aos investidores mais proteção contra perdas nesses acordos”.