Na cerimônia de inauguração do parque eólico Pedra Pintada, no sertão da Bahia, os aerogeradores estavam imóveis. Apesar da presença do vento — e de executivos da Enel, do governador, de um senador e prefeitos da região —, os 43 “cataventos” de 110 metros de altura, erguidos pela Enel Green Power ao custo de R$ 1,8 bilhão, não estavam gerando um único megawatt.
O motivo? O pesadelo atual das empresas que geram energia renovável: o curtailment.
O termo em inglês, que pode ser traduzido como “corte de geração”, virou uma das maiores dores de cabeça para empresas que investem em energia solar e eólica no Brasil. Ele acontece quando há energia disponível para ser produzida — o vento sopra, o sol brilha —, mas o Operador Nacional do Sistema (ONS) ordena que as usinas desliguem parte ou toda a produção, por falta de capacidade na infraestrutura de transmissão ou simplesmente por sobra de energia no sistema.
“Hoje, com as condições de preço, já é muito complicado fechar novos projetos. O curtailment mata completamente os projetos para o próximo ano”, disse Bruno Riga, CEO da Enel Green Power Brasil, durante a cerimônia. O parque recém-inaugurado tem 11% de sua geração cortada, o que geralmente acontece nos fins de semana. Por isso, naquele sábado da inauguração, as pás de 70 metros de comprimento estavam ali, paradinhas.
Segundo a própria Enel, os cortes nas usinas solares na Bahia chegam a 35%, e isso tem adiado em até cinco anos o retorno dos investimentos inicialmente planejados para ocorrer entre 10 e 15 anos, o que coloca em risco a sustentabilidade financeira no imediato e em toda a vida útil da usina.
A gravidade da situação levou a empresa a rever seus planos para a Bahia: a Enel anunciou a desistência de oito projetos solares que seriam construídos no estado que teriam capacidade de gerar mais 333 megawatts. O plano era ter as novas usinas funcionando até o fim de 2026, mas as linhas de transmissão só estão previstas para o segundo semestre do ano seguinte, um descasamento caro e que invabilizou o investimento.
A Bahia concentra 1,9 GW da capacidade instalada da Enel no Brasil — 40% de sua geração total no país. E se os ventos baianos não estão sendo bem aproveitados, a perspectiva de novos investimentos na região passa a ser revista com cautela.
O dilema da integração vertical
No Brasil, a Enel vive uma situação peculiar: ao mesmo tempo em que investe pesado na geração de energia renovável no Nordeste, por meio da Enel Green Power, ela também atua na distribuição em São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará. Em tese, essa presença nas duas pontas poderia ser uma forma eficiente de alinhar produção e consumo dentro do grupo.
Mas, na prática, essa integração virou um desafio. O crescimento acelerado das fontes renováveis e os atrasos nas obras de transmissão criaram um gargalo: parte da energia gerada no Nordeste não consegue ser escoada para o Sudeste, onde está o grosso da demanda. Isso leva ao curtailment e obriga a distribuidora a comprar energia de última hora no mercado de curto prazo.
É aí que o problema se agrava. A energia que a Enel não consegue entregar precisa ser comprada no mercado ao chamado PLD (Preço de Liquidação das Diferenças), definido pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
Se o preço no Sudeste estiver alto e a energia não puder ser transmitida, a Enel Green Power perde receita na geração e a Enel SP paga mais caro pela distribuição. Mesmo sendo parte do mesmo grupo, as perdas aparecem nos dois lados — embora possam ser compensados, no lado da distribuição, com tarifas mais altas.
É como se a Enel fosse dona de uma fazenda de laranjas no interior do Piauí e, ao mesmo tempo, de uma rede de supermercados em São Paulo. As estradas entre eles estão bloqueadas, as laranjas apodrecem no campo, e o suco precisa ser comprado às pressas de um fornecedor mais caro. Nesse cenário, a verticalização não protege — e pode até virar um problema quando o sistema não dá conta de conectar oferta e demanda de forma eficiente.
Crise na distribuição
O desafio da Enel no Brasil não se limita à geração. O braço de distribuição da companhia está sob forte escrutínio regulatório e político. Em 2022, a empresa vendeu a distribuidora de Goiás para a Equatorial depois de uma campanha do governador Ronaldo Caiado contra os serviços prestados pela Enel. Agora, enfrenta um risco similar em seus principais mercados.
É justamente essa renovação que está em jogo. Os contratos da Enel nos três estados vencem entre 2026 e 2028, e a empresa já protocolou o pedido de prorrogação por mais 30 anos. Para conseguir essa extensão, precisa provar que presta um serviço adequado — A Aneel chegou a propor uma mudança novos critérios que considerassem todas as interrupções, mesmo as causadas por eventos extremos, no cálculo da qualidade do serviço, mas a procuradoria-geral junto à agência reguladora deu parecer contrário às mudanças.
A pressão levou a companhia a prometer aportes recordes: R$ 25,3 bilhões entre 2025 e 2027, dos quais R$ 24 bilhões voltados à distribuição. Só em São Paulo, o plano prevê R$ 10,4 bilhões — mais que o dobro do que foi investido nos três anos anteriores, segundo o CEO da Enel Brasil, Antonio Scala. Ele acrescenta que os investimentos previstos para os próximos três anos superam o total aplicado nos sete anos anteriores.
Scala afirma que o plano responde à necessidade de modernizar as redes diante da transição energética e da nova realidade climática. “Estamos vivendo um momento em que temos uma pressão por um nível de qualidade muito diferente do passado, e contratos de concessão assinados 30 anos atrás que não previam os desafios de resiliência atuais — como, por exemplo, a capacidade da rede de suportar eventos extremos”.
Em 2024, a Enel incorporou mil novos eletricistas em seu quadro e iniciou um programa para contratar até 5 mil profissionais nas três distribuidoras. A medida é uma resposta direta ao aumento de ocorrências — 25% maior no último verão em comparação com o anterior — e busca reduzir o tempo de resposta e a duração das interrupções. Segundo a empresa, houve redução de 50% no tempo médio de atendimento e de até 90% nas falhas superiores a 24 horas.
Entre térmicas, baterias e Brasília
Na geração, a Enel se vê em um impasse técnico e regulatório. O problema do curtailment não se resume à falta de linhas de transmissão: a expansão da micro e minigeração distribuída (como painéis solares em telhados) e o despacho preferencial de usinas térmicas inflexíveis — que não podem ser desligadas — fazem com que a energia renovável disponível acabe sendo desperdiçada.
“Não significa que o sistema está funcionando apenas com hidrelétricas”, disse Riga. “Está funcionando com térmicas inflexíveis. Isso precisa ser discutido.” Uma das saídas cogitadas pela empresa é o uso de baterias para armazenar o excedente, mas a viabilidade financeira e tecnológica ainda é incerta.
Diante do cenário, novos aportes em geração renovável foram congelados. Segundo Scala, “até resolver o problema do curtailment, é muito difícil pensar em investimentos no curto prazo”.
É por isso que, mesmo pressionada, a Enel tenta manter canais abertos com autoridades. A cerimônia de Pedra Pintada reuniu figuras como o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, o senador Jacques Wagner e outros políticos locais. Em 2024, o CEO global da Enel se reuniu com o presidente Lula e o ministro Alexandre Silveira para negociar apoio à renovação das concessões em troca de um aumento nos investimentos – o que levou aos inéditos R$ 25 bilhões prometidos até o fim de 2027.
Um futuro sob condicional
Com presença em mais de 30 países, a Enel considera o Brasil um de seus mercados estratégicos – o segundo mais importante, logo depois da Itália. Em 2024, o lucro líquido da Enel Brasil foi de R$ 3,2 bilhões, meio bilhão a mais do que no ano anterior.
Manter essa posição, no entanto, exige equilíbrio: investir bilhões enquanto o retorno é incerto, enfrentar o desgaste político sem perder concessões e adaptar-se a um sistema elétrico que nem sempre comporta a energia que as usinas geram.
Seja por excesso de vento no sertão ou por falta de luz em São Paulo, a Enel está no centro de um tabuleiro instável. E seu futuro no país dependerá da capacidade de navegar entre as exigências regulatórias, a pressão dos governos e os ventos — às vezes favoráveis, às vezes contrários — da transição energética brasileira.
*O jornalista Greg Prudenciano viajou para o parque eólico Pedra Pintada a convite da Enel Brasil