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Quando a Alpargatas anunciou a compra da americana Rothy’s, uma startup de sapatos feitos com garrafas PET e queridinha entre estrelas de Hollywood, a reação do mercado não foi das melhores. Naquele 21 de dezembro de 2021, o papel fechou em queda de quase 5%: parte dos investidores achou caro pagar US$ 475 milhões por uma marca desconhecida por aqui e com preço médio ao menos US$ 100 acima da clássica Havaianas. Outros temeram os planos ambiciosos de internacionalização, agora como acionista relevante de uma grife estrangeira.

Quatro anos depois, após um processo duro de reorganização e sob um terceiro CEO, a Alpargatas anunciou que não exerceria o direito de comprar 100% da Rothy’s: optou por ficar com 49% da empresa. A decisão foi entendida pelo mercado como uma correção de rota. A estratégia agora é voltar a concentrar energia em Havaianas, o chinelo que todo brasileiro conhece, mas que vinha perdendo espaço, com queda de vendas e rentabilidade.

Essa virada de chave já começa a dar resultados: no terceiro trimestre, a receita líquida consolidada da Alpargatas cresceu 7,5% em relação a igual período do ano passado, para cerca de R$ 1,12 bilhão; o lucro líquido foi a R$ 171 milhões, quase três vezes os R$ 57 milhões de um ano antes. E sem dúvida, a participação das Havaianas, cuja receita no mercado brasileiro cresceu 6,9% para R$ 872 milhões, contou muito para esse resultado. Isso, a despeito da queda de 3,1% no volume (51,6 milhões de pares). No exterior, houve avanço simultâneo: +7% em volume (4,9 milhões de pares) e +9% em receita (R$ 230 milhões).

“A nossa estratégia, nos últimos dois anos, é foco no calçado aberto, onde Havaianas é autoridade”, diz Liel Miranda, CEO desde o início de 2024. E, enquanto isso, a Rothy’s entrega aumento de receita e se firma como um ativo financeiro bom, mas periférico dentro da companhia.

Loja da Rothy’s nos EUA: preço médio dos calçados é de US$ 125

Tropeços e mudança de rota

Vindo da Mondelez Brasil (Lacta, Trident), Miranda foi escolhido após um processo longo para o comando executivo. Em abril de 2023, os controladores — Itaúsa e família Moreira Salles — decidiram por um choque de gestão. Roberto Funari, conselheiro e CEO desde 2019, havia acelerado a expansão. Foi o primeiro CEO escolhido pelos novos donos, que compraram a Alpargatas da J&F no fim de 2017. Antes dele, a casa ficou 15 anos sob Márcio Utsch, atravessando mudanças de controle.

A gestão Funari apostou em um modelo “consumer-first”, aquele que busca seguir tendências recentes, responder à expectativa dos consumidores. Só que, no fim das contas, a Alpargatas acabou ampliando demais o tabuleiro. Além das tradicionais sandálias de tiras, a empresa apostou em roupas, toalhas, ampliou a sua atuação geográfica, diversificou seus canais de venda e acelerou a expansão internacional, tudo ao mesmo tempo.

O resultado é que o negócio ficou muito mais complexo, e nem tudo o que foi lançado foi realmente vendido. E aí, o estoque inflou e a empresa teve que promover uma grande liquidação.

Além disso, ao apostar em canais digitais e pop-ups, a empresa acabou tirando a atenção dos meios mais tradicionais de venda, tipo lojas de varejo, supermercados, atacarejo. Em um negócio de altos volumes e tíquete acessível, é nesses corredores que se preserva a alavancagem operacional. Isso significou um aumento do custo operação e tornou mais complexa a logística.

No exterior, a pressa também cobrou seu preço. A empresa tentou conquistar muitos grandes mercados — Estados Unidos, Europa, Ásia — ao mesmo tempo. Só que cada uma dessas praças tem suas peculiaridades: distribuidores, calendário, sensibilidade a preço e, sobretudo, lastro de marca. O timing foi ingrato: a ressaca pós-pandemia derrubou a demanda fácil que mascarava as fissuras do plano.

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“Tivemos de voltar ao básico e fazer baixas. E, na expansão internacional, faltou um plano mais correto “, admite Frederico Pascowitch, diretor de investimentos da Itaúsa.

A compra da participação na Rothy’s simbolizou aquela fase ambiciosa, estimulada por um juro muito baixo. Só que essa fase acabou. E à medida que o juro voltou a subir, o capital encareceu, justamente num momento em que a necessidade de geração de caixa era bem maior.

A ideia de uma “casa de marcas hiperconectadas” acabou de transformando em uma operação cara e retorno decepcionante. E isso ficou bem claro nos números: em 2022, o lucro líquido caiu 72%, para R$ 183,7 milhões. A resposta do mercado foi pública: a ação, que beirou R$ 60 em 2021, rondava R$ 13 no fim de 2022.

Havaianas no centro

Quando ficou claro que a estratégia tinha ruído, os controladores acionaram um de seus conselheiros: Luiz Fernando Edmond, por anos CEO da Ambev. Ele assumiu interinamente em 2023, enquanto os sócios buscavam o nome definitivo. E foi substituído por Liel Miranda em 2024. A nova gestão da companhia atacou o básico: limpou estoques, enxugou o portfólio, eliminando tudo o que não vendia, revisou processos fabris e logísticos e readequou os canais de venda.

A Havaianas voltou para o centro, mas com tratamento específico para cada uma das duas faces da mesma sandália: de um lado, o produto de R$ 20 que gira por impulso no atacarejo e supermercados; de outro, o item de R$ 200 em lojas de shopping, coleções especiais e collabs, como a com a Dolce & Gabbana. Isso exige portfólios diferentes por canal e disciplina para não vender o mesmo produto em todos os lugares.

Liel Miranda: executivo não tem computador e dedica seu tempo em alinhamento com o time

Nos canais alimentar/atacarejo, onde a participação ronda 75%, a missão é defender território — vital para escala e alavancagem, especialmente após ver Ipanema e Rider, da concorrente Grendene, ameaçarem espaço.

O vetor de crescimento está no canal especializado (multimarcas de calçados, boutiques, lojas de departamento), onde a participação é bem menor, por volta de 35%. Ali há espaço para crescer e melhorar margem. Em paralelo, as franquias (cerca de 600 lojas no país) voltaram a acelerar, com unidades maiores e mais modernas elevando tíquete e conteúdo de marca.

No exterior, o arranjo avança respeitando a especificidade de cada mercado e concentrando forças onde faz sentido. Nos Estados Unidos, a partir de 2026, um distribuidor nacional (Eastman) com décadas de estrada e acesso aos grandes varejistas assume a venda — solução para o antigo “dilema Tostines” de marca pequena que não entrava nos grandes e, por isso, seguia pequena.

Na Europa, após atrasos que comprometeram o verão de 2023, o abastecimento se normalizou em 2024 e a recomposição de espaço tem vindo em 2025, com estratégia ajustada à sazonalidade. Na Ásia e na África, a Alpa fez a desova do estoque velho nos distribuidores e só então retomou crescimento; hoje, estoques regularizados e avanço de 5% nos últimos trimestres.

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Para tirar o plano do papel, Miranda gasta sola de sapato (ou de sandália): a cada dois meses visita países, mensalmente percorre lojas no Brasil e, a cada trimestre, as fábricas. No escritório, dedica a agenda a planejamento e alinhamento contínuo com os times — abrindo mão até de ter computador pessoal.

A nova matemática do crescimento também ajuda. O Brasil ainda responde por cerca de dez vezes o volume do internacional. Recuperar o que se perdeu lá fora desde 2021 já adiciona uma perna relevante. O ceticismo começou a ceder. Tanto é que a ação, que beirou os R$ 6 em 2024, é negociada atualmente perto dos R$ 12. Em setembro de 2025, o UBS foi mais um banco que mudou a recomendação para “compra”, vendo uma tese “menos barulhenta e mais executável” — escala com margem, a velha fórmula quando Havaianas acerta o passo.

Em mãos (e pés) diferentes

A Alpargatas nasceu em 3 de abril de 1907, em São Paulo, pelas mãos do escocês Robert Fraser — o mesmo que fundara fábricas irmãs na Argentina e no Uruguai. Começou com as Alpargatas Roda, calçado de trabalho que se espalhou pelos cafezais, e com lonas de algodão. Em 1913, abriu capital — é, até hoje, uma das listadas mais longevas — e expandiu marcas que povoaram o armário do brasileiro: Rainha, Conga, Kichute, Bamba. Em 1962, lançou Havaianas — nascidas populares e reinventadas nos anos 1990 como ícone de moda.

O controle raramente esteve com especialistas em varejo e moda. Em 1982, passou do capital argentino para o Grupo Camargo Corrêa; em 2015, em meio à Lava Jato, foi vendida à J&F. Em setembro de 2017, Itaúsa e a família Moreira Salles assumiram o comando. Juntos, os sócios têm 63% do capital e uma atuação muito mais próxima do dia a dia — uma resposta ao que um executivo de mercado ouvido pelo InvestNews aponta “como uma fase marcada por uma série de escolhas erradas.”