No início deste ano, Carlos Lisboa, recém‑empossado CEO da Ambev no Brasil, reuniu cerca de 150 membros da partnership, um seleto grupo de profissionais da empresa que hoje são sócios e que conhecem a companhia por dentro como poucos. O novo CEO queria ouvir de outros veteranos de casa quais deveriam ser as prioridades dessa nova fase.

A resposta quase que consensual foi de que era hora de resgatar a Skol, uma ideia que Lisboa já alimentava desde que foi anunciado presidete da companhia em agosto do ano passado. O executivo ganhou proeminência na Ambev nos anos 2010 justamente quando foi responsável pela ascensão da marca no mercado brasileiro.

Por anos, uma das marcas mais populares da Ambev havia sido tocada no piloto automático. Mas em 2024, a Skol começou a perder espaço, especialmente no Nordeste, onde é líder, com a Itaipava voltando a crescer com força.

Depois de anos em busca de novidades, o consenso indicou que a Ambev não deveria ignorar suas origens. Apesar da onda de “premiumnização” dos últimos anos, as marcas chamadas “core” — como Skol, Brahma e, em menor grau, Antarctica — ainda respondem por cerca de 70% das vendas de cerveja da empresa. Negligenciá-las, portanto, seria um erro estratégico.

“Eu nunca vi uma empresa desse tamanho inovar tanto em tão pouco tempo. Mas essa nunca foi a melhor característica da Ambev”, avalia uma fonte ouvida pelo InvestNews, que passou três meses entrevistando profissionais que conhecem há décadas o dia a dia da companhia.

Na visão desse interlocutor, a gestão da Ambev se afastou da chamada “cartilha do 3G”, em referência ao trio de bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, acionistas históricos da empresa e responsáveis pela fusão da Brahma e Antarctica em 1999, que deu origem ao conglomerado.

Nos últimos dez anos, a Ambev lançou dezenas de novos produtos, criou plataformas digitais que se tornaram referência no setor e passou por uma transformação cultural profunda. Em meio a tanto movimento, um detalhe chama atenção: os números seguem quase os mesmos. 

E a ação, pressionada por margens menores e perda de participação de mercado, anda de lado desde 2015. A Ambev aparenta ter entrado numa espécie de cápsula do tempo — onde a velocidade das ideias ainda não conseguiu romper a inércia dos resultados.

E os números referentes ao segundo trimestre de 2025, divulgados na semana passada, não animaram o mercado. A Ambev vendeu menos cerveja e o volume total caiu 4,5% na comparação com igual período do ano passado, com a receita líquida praticamente estável no mesmo comparativo, em R$ 20,1 bilhões.

O lucro líquido ajustado foi de R$ 2,8 bilhões e o lucro operacional (Ebitda), de R$ 6,1 bilhões, com margem de 30,6%, bem abaixo dos tempos áureos, quando chegou a passar dos 50%. O resultado amargo fez as ações caírem cerca de 5% no pregão seguinte à divulgação do balanço.

“A Ambev foi inovadora sem ter o músculo nem a gordura de margem pra isso. Foi como ver o Michael Jordan jogando beisebol — ainda era um campeão, mas que estava fora do seu jogo”, diz outra fonte, lembrando do episódio em que o astro do basquete trocou de esporte em 1994, num dos desvios de carreira mais célebres da história.

Gestões e transições

Na sede da Ambev, no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, uma das salas de treinamento que costuma receber os jovens trainees da companhia carrega uma frase que não passa despercebida: “De uma empresa que sabe tudo para uma empresa que aprende tudo.”

Esse lema talvez nunca tenha feito tanto sentido para a maior cervejaria da América Latina – uma empresa que vale R$ 195 bilhões na Bolsa, fatura quase R$ 90 bilhões por ano e tem mais de 30 mil funcionários no Brasil.

Em dez anos, três executivos ocuparam a cadeira de CEO da Ambev no Brasil. Bernardo Paiva comandou a empresa até 2019, em um ciclo ainda muito ligado à cartilha do 3G.

A partir dali, a liderança passou a Jean Jereissati, um veterano da empresa que inaugurou uma nova fase marcada por experimentação, lançamento de novas marcas para fazer frente ao avanço da Heineken no país e apostas digitais como o Zé Delivery e a plataforma BEES

Jereissati foi o rosto da Ambev durante a pandemia, fase em que o consumo de cerveja ganhou novo fôlego, batendo recordes, e ajudou a sustentar o crescimento dos volumes vendidos pela companhia.

Brahma Duplo Malte foi considerado um dos acertos de Jeiressati no comando da Ambev
Brahma Duplo Malte foi considerado um dos acertos de Jeiressati no comando da Ambev (Divulgação)

Também foi quem lançou a Brahma Duplo Malte, um sucesso de vendas, e de dezenas de novos rótulos que tentaram responder ao avanço da concorrente holandesa – com o surgimento de Spaten, Beck’s e Corona representando essa fase. Mas, aos olhos do mercado, esse período também marcou a queda da rentabilidade da empresa, com margens mais comprimidas.

Desde o começo deste ano, quem ocupa o comando é Carlos Lisboa, executivo vindo da controladora da Ambev, a AB InBev, com histórico no marketing global da companhia e passagem bem-sucedida como CEO da operação na América Latina. Se Jereissati encarnava o espírito da inovação, Lisboa chegou com a missão de recuperar a margem e devolver à Ambev o foco na eficiência.

“O Jean dizia: testou bem? Lança. O Lisboa pergunta: vai tirar o quê pra lançar isso? A ideia é não ter distrações”, resume uma das fontes.

Carlos Lisboa, CEO da Ambev
Carlos Lisboa, CEO da Ambev (Ilustração: Daniela Arbex)

Dez anos depois…

De 2014 a 2024, a companhia cresceu em receita. Em valores absolutos (ou seja, sem considerar a inflação), a Ambev praticamente dobrou de tamanho no período. Só que, ao ajustar esses números à inflação – ou seja, em uma conta simplificada em que estimamos os valores aos “R$ de 2024” – o crescimento se revela mais modesto.

“A empresa ampliou o portfólio e sustentou o volume, mas perdeu rentabilidade”, reforça Leonardo Alencar, analista da XP. Para ele, a diversificação da última década trouxe mais complexidade operacional, e o desafio atual é recompor margens sem sacrificar volume.

O que mais chama atenção, no entanto, é que a bonança de faturamento não se traduziu em mais lucro. Corrigidos pela inflação, o lucro líquido encolheu mais de 30% na década, enquanto o lucro operacional recuou 26% – a margem Ebitda caiu de quase 50% para pouco mais de 30%, sinal de que custos e ineficiências avançaram mais rápido que a receita.

O momento atual ajuda a explicar por que as ações da Ambev seguem em valores próximos aos de 2015. Para analistas e investidores, os números ainda contam a história de uma gigante que se move, mas não corre.

“O investidor estrangeiro gosta da Ambev pela previsibilidade. Mas já não paga prêmio por ela, porque não enxerga uma tese de crescimento clara”, diz Rafael Ragazzi, analista da Nord Research. “É uma empresa que continua sólida, mas que perdeu boa parte da sua gordura de rentabilidade.”

O volume vendido pela Ambev avançou em ritmo mais fraco: foram 171,7 milhões de hectolitros em 2014 contra 181,9 milhões em 2024, alta de 6% em dez anos – praticamente em linha com o crescimento da população brasileira, de cerca de 5% no período. Quando olhamos apenas para o volume de cerveja no Brasil, o crescimento foi de 86,9 milhões para 93,6 milhões, alta de 7,7%.

Em sua única entrevista, dada ao Brazil Journal, Lisboa classificou a leitura de estagnação do consumo de cerveja como “míope” e defendeu que o Brasil ainda pode crescer até 50% em frequência semanal, se comparado a mercados como México e Colômbia, citando o hábito (ainda raro) de beber cerveja durante as refeições. Todos os entrevistados demonstram ceticismo com tal mudança de consumo.

O CEO afirma que, depois de anos de mudanças que comprimiram as margens, ele diz que a companhia entra agora na “fase 3”, dedicada a capturar eficiência e fazer os três pilares funcionarem juntos.

As garrafas verdes

Se antes o desafio da Ambev era manter sua dominância, nos últimos anos o problema passou a ser frear sua principal ameaça, a Heineken.

A cervejaria holandesa, que por muito tempo teve participação modesta no Brasil, protagonizou uma virada de mercado ao assumir a operação da Brasil Kirin em 2017 e impulsionar a distribuição de garrafas verdes pelos bares do país em detrimento do âmbar que dominava os botecos Brasil afora.

Com forte apelo aspiracional, campanhas certeiras e presença crescente em bares, a Heineken virou símbolo de status e rapidamente conquistou o público jovem e urbano — justamente o que a Ambev sempre dominou. “A Ambev foi pega de surpresa pela velocidade com que a Heineken cresceu no mercado”, admite uma das fontes.

Se antes a Ambev tinha mais de 70% do mercado de cervejas, hoje beira os 60%, enquanto a Heineken detém cerca 25% deste mercado, à frente de Itaipava (11%). A estratégia da holandesa foi dupla: manter a Heineken como produto premium e reposicionar a Amstel para competir no segmento intermediário.

Garrafas da Heineken, principal concorrente da Ambev
Garrafas da Heineken, principal concorrente da Ambev (Divulgação)

A Ambev respondeu com um contra-ataque de portfólio, reforçando Brahma Duplo Malte, expandindo Budweiser e lançando suas próprias garrafas verdes, como Beck’s e Spaten. “A Ambev tem um jogo de portfólio muito forte, e não podemos esquecer que ela compete com a Heineken em mais de 40 mercados pelo mundo. Não chega a ser uma novidade”, lembra outro profissional.

“A Heineken trouxe uma competição racional e saudável, que elevou o nível do mercado. Ela obrigou a Ambev a sair do piloto automático e a olhar com mais cuidado para as ocasiões de consumo”, diz Cid Passini, sócio da L.E.K. Consulting.

Menos cervejeiros

A estagnação no volume de vendas da Ambev tem, em boa parte, raízes no comportamento do próprio consumidor. Ao longo da última década, o brasileiro ficou mais exigente, mais preocupado com saúde e – talvez o mais importante – mais aberto a experimentar outras bebidas. O monopólio informal da cerveja como “bebida nacional” já não é mais tão absoluto.

O avanço dos drinks prontos, os chamados RTDs (ready to drink), é uma novidade para a Ambev dos anos 2020. O consumidor migrou para opções como ice e bebidas mistas. A própria Ambev reagiu lançando versões de Beats (produto criado por Lisboa em sua primeira passagem pela Ambev) e apostando em novas categorias, mas viu concorrentes menores ganharem tração em nichos antes ignorados.

Além disso, cresceu o consumo de vinho, gin e outras bebidas alcoólicas antes associadas a um público mais restrito. Outro fenômeno foi a maior procura por cervejas zero álcool, nicho em que a Heineken acabou saindo na frente. Essa fragmentação do paladar colocou a Ambev diante de um desafio inédito: competir com categorias que ela historicamente não dominava.

“O brasileiro continua bebendo cerveja, mas de um jeito diferente. Ele bebe menos no dia a dia e reserva ocasiões específicas para uma ‘indulgência premium’”, prossegue Passini. “O consumo está se polarizando: de um lado, produtos baratos para o dia a dia; do outro, rótulos mais caros para momentos especiais. O meio do caminho, onde a Ambev é muito forte, perdeu espaço.”

Isso mostrou que crescer em volume, neste cenário, deixou de ser uma tarefa trivial — e a Ambev passou a investir em outra frente: entender melhor o consumidor.

A virada digital

Se o crescimento em volume ficou difícil, a Ambev buscou um novo ativo: dados. Com a criação do Zé Delivery e da plataforma B2B BEES, a companhia passou a controlar melhor o relacionamento com consumidores e pequenos varejistas, reduzindo sua dependência da cadeia tradicional de distribuição.

O Zé Delivery, que ganhou força durante a pandemia, virou mais do que um canal de venda, virou uma fonte valiosa de dados sobre o comportamento de consumo. A BEES, por sua vez, transformou a forma como a Ambev se relaciona com os donos de bares e mercados, oferecendo crédito, serviços logísticos e um ecossistema de produtos que vai além da cerveja.

Para Leonardo Alencar, da XP, a empresa precisa transformar essa inteligência em resultado financeiro: “É preciso monetizar essa vantagem de maneira escalável.”

Na prática, isso significa usar as plataformas para vender mais com menos esforço, ajustar o portfólio com base em insights e reduzir perdas logísticas. É um caminho que exige tempo. Mas que pode redefinir o que será a Ambev na próxima década.

Difícil de ignorar

Mesmo pressionada, a Ambev segue sendo uma gigante difícil de ignorar. Na última década, a empresa continua rentável, entregando lucros bilionários, cerca de R$ 100 bilhões em proventos (cerca de R$ 27 bilhões para minoritários), mantém participação relevante no mercado e um dos maiores portfólios da América Latina.

Carlos Lisboa já deixou claras suas prioridades: recuperar margem, fortalecer as marcas mais relevantes e tornar a operação mais eficiente. “Nosso foco é recompor produtividade, sem abrir mão da inovação”, disse.

A dúvida, segundo analistas e executivos, é se ainda há espaço para a Ambev repetir o desempenho extraordinário de outrora — ou se o jogo mudou de vez. A empresa que já foi sinônimo de crescimento e rentabilidade busca voltar ao terreno que a fez gigante.

Agora, resta saber se Carlos Lisboa conseguirá tirar a companhia dessa cápsula do tempo e colocá‑la de volta ao seu jogo natural — como Michael Jordan, que depois de uma breve aventura no beisebol voltou às quadras de basquete e conquistou mais três títulos da NBA.

Procurados pelo InvestNews, Ambev e Lisboa não deram entrevista.

(Colaborou Raquel Brandão)