O sobrenome Bertin já esteve no topo do capitalismo brasileiro. A família que ergueu um conglomerado que ia de frigoríficos a empreiteiras e usinas de energia agora vive um longo processo para reestruturar R$ 9,6 bilhões em dívidas, em uma recuperação judicial que já dura oito anos.

A reestruturação envolve dez empresas controladas pela holding Heber Participações, entre elas a empreiteira Contern e a SPMar — concessionária responsável pelos trechos Sul e Leste do Rodoanel de São Paulo, hoje o ativo mais valioso e rentável do portfólio.

Em junho deste ano, a Justiça homologou o último plano de recuperação do grupo, o da Doreta, encerrando um ciclo iniciado em 2017. Pela legislação, empresas podem deixar o regime de RJ dois anos após a homologação dos planos, desde que cumpram integralmente as obrigações. Isso significa que o grupo pode encerrar o processo já em 2027, quando completará uma década desde o pedido original.

O antigo Grupo Bertin, que deu nome a um dos frigoríficos mais conhecidos do país — hoje parte da JBS —, passou a se chamar Heber nos anos 2010. A holding familiar é o coração do negócio e, ao mesmo tempo, o espelho de sua origem.

O controle da Heber é compartilhado por quatro holdings patrimoniais — Reivo, Juferb, Viamar e Horlof Participações — que representam, respectivamente, os irmãos Reinaldo, Natalino, Fernando e Silmar Bertin. O quinto irmão, João Bertin Filho, não aparece nos registros empresariais.

Nos pastos de Lins

A história dos irmãos Bertin começa em Lins (SP), nos pastos da família do patriarca João Bertin, um pecuarista discreto que viu criou nos filhos a ambição que nunca teve. Foi o primogênito, Henrique Bertin, quem transformou o gado da fazenda em indústria — e, sem saber, lançou os alicerces de um império.

Em 1977, ele fundou o Frigorífico Bertin, que em pouco tempo virou referência regional. Quatro anos depois, em 1981, Henrique morreu em um acidente aéreo — e esse episódio se tornou o ponto de virada da família. O que poderia ter sido o fim do empreendimento virou o início de uma era de expansão vertiginosa.

O comando passou aos cinco irmãos de Henrique.

Reinaldo, o mais velho e diplomático, media as disputas entre personalidades fortes; Natalino, expansivo e hábil nas relações políticas, assumiu a linha de frente com bancos e governo; Fernando, engenheiro e o mais inquieto, empurrou o grupo para infraestrutura e energia; e Silmar, o mais reservado, cuidava das finanças e tentava pôr ordem o interesse coletivo. O quinto irmão, João Bertin Filho, acabou se afastando da operação nos anos seguintes, voltando-se à pecuária.

Os irmãos Bertin assumiram os negócios da família após a morte de Henrique
Os irmãos Bertin assumiram os negócios da família após a morte de Henrique (Bloomberg)

Nas décadas de 1980 e 1990, os Bertin aperfeiçoaram uma estratégia simples e eficaz: comprar frigoríficos endividados, reerguê-los e integrá-los à própria rede. Era um modelo de crescimento em série — adquirir, reestruturar, operar.

Em pouco mais de uma década, a família construiu uma estrutura capaz de abater 180 mil cabeças por mês, exportava para mais de 80 países e era vista como uma das joias do agronegócio brasileiro.

O início dos anos 2000 marcou o auge. Nessa década, o apoio do BNDES aos negócios dos Bertin ganhou corpo: em 2005, o banco aprovou R$ 284,5 milhões para expansão industrial; em 2008, a BNDESPar comprou 26,92% da Bertin S.A. por cerca de R$ 2,5 bilhões.

Embalados pela liquidez e pela boa relação com Brasília, os Bertin acreditaram que poderiam replicar seu modelo em qualquer setor.

A diversificação

Mas foi justamente fora da carne que o império começou a se desfazer. A família diversificou, avançando para energia, infraestrutura, concessões e saneamento — áreas em que não tinha histórico nem estrutura técnica.

Criaram a Contern Construções, que assumiu obras públicas em várias regiões do país, incluindo a hidrelétrica de Belo Monte, em consórcio com empreiteiras como a Andrade Gutierrez. Chegaram a deter participação direta na usina, mas venderam sua fatia à Vale, pressionados pelo endividamento crescente. Também lançaram a Bertin Energia, que venceu dezenas de leilões de usinas termelétricas da Aneel.

Em outra frente, criaram a Cibe em parceria com a Equipav – história que já contamos por aqui no InvestNews. Da parceria, surgiu a SPMar, responsável pelos trechos Sul e Leste do Rodoanel — hoje o principal ativo remanescente do grupo. Em 2010, os Bertin fizeram uma proposta agressiva para levar a concessão: cerca de 63% de deságio na tarifa.

Esses movimentos, que indicavam uma tática arrojada de negócios, revelou-se um salto no escuro: os novos negócios exigiam capital intensivo e know-how técnico — atributos que a família não possuía na mesma proporção da ambição. 

No fim dos anos 2000, veio o negócio que mudou tudo.

O fim da carne

Em 2009, o frigorífico Bertin e a subsidiária Vigor se fundiram à JBS, sua principal concorrente. Apresentada como um passo estratégico para criar um campeão global de carne bovina, a operação era, na prática, um resgate financeiro orquestrado pelo BNDES.

O Bertin já estava altamente alavancado porque, nos anos anteriores, havia financiado sua expansão com empréstimos bilionários e operações cambiais especulativas. Quando o dólar disparou na crise de 2008, essas posições viraram contra a companhia, gerando perdas milionárias e comprometendo o caixa.

Com dívidas crescentes — parte em moeda estrangeira —, o Bertin perdeu fôlego. Em 2009, veio a “fusão” com a JBS, costurada com apoio do BNDES (acionista de ambos) para evitar a quebra de um dos seus campeões nacionais. No papel, uma união entre iguais; na prática, uma absorção do Bertin pela rival.

A engenharia usou dois veículos: o FIP Bertin (que reuniu as ações da família) e a Blessed Holdings, offshore criada poucos dias antes do anúncio do negócio. A então desconhecida Blessed comprou, por um valor simbólico, a maioria das cotas do FIP e se tornou uma das principais acionistas da JBS.

Investigações posteriores da Receita, da CVM e da CPI do BNDES apontaram que a Blessed era, na verdade, um veículo controlado pelos irmãos Batista, da JBS, para ocultar o controle efetivo da companhia e manter a aparência de fusão. Isso permitiu que o BNDES não tivesse de reconhecer perda contábil no investimento feito no Bertin.

Mas a relação entre as famílias desandou — e a “fusão” virou batalha judicial. Em 2013, os Bertin processaram a JBS, alegando terem sido enganados na transferência das cotas do FIP e que suas assinaturas tinham sido falsificadas. O impasse terminou em 2014, quando os Bertin venderam sua participação remanescente para a JBS; o valor não foi revelado.

Dez anos depois, em 2024, um acordo na CVM — com pagamento de multa e sem admissão de culpa — encerrou o processo administrativo contra os Bertin.

As fissuras

A fusão salvou o negócio da carne, mas deixou o grupo sem seu principal ativo — e com uma montanha de dívidas. Já rebatizado como Heber, sem o frigorífico e atolado em financiamentos para projetos de energia e concessões, o conglomerado começou a ruir.

As termelétricas da Bertin Energia — que haviam vencido dezenas de leilões da Aneel — nunca saíram do papel. A agência revogou 22 outorgas, e a Aneel aplicou multas e encargos que somam R$ 6,25 bilhões. As obras inacabadas se tornaram esqueletos de concreto, símbolos do colapso de uma aposta cara e mal calculada.

No saneamento, a empresa Águas de Itu enfrentou a crise hídrica de 2014 e teve a concessão assumida pela prefeitura após semanas de racionamento e protestos. Na infraestrutura, o último ativo rentável era a SPMar, do Rodoanel de São Paulo. E ela entrou na mira dos credores.

Recuperação judicial

Em agosto de 2017, o grupo que um dia simbolizou o auge do capitalismo familiar brasileiro entrou oficialmente em colapso. A Heber Participações pediu recuperação judicial, declarando dívidas de R$ 7,9 bilhões.

O estopim foi uma ação de falência movida pelo Banco Fibra contra a Contern, a construtora do grupo. O caso rapidamente se transformou em um dos processos mais complexos e duradouros da Justiça empresarial brasileira, envolvendo dez empresas sob o mesmo guarda-chuva societário.

A primeira versão do plano foi homologada em outubro de 2018, mas anulada pouco depois. Seguiu-se uma longa sequência de reestruturações individuais: a SPMar teve seu plano aprovado em 2020; em abril de 2024, foi a vez de Heber, Contern, Compacto, Comapi, Cibe, Águas de Itu e Cibe Investimentos; em novembro do ano passado, da Infra Bertin; e, finalmente, em junho de 2025, o ciclo se encerrou com a Doreta Empreendimentos, veículo de infraestrutura da família.

Dos quase R$ 10 bilhões em dívidas, boa parte corresponde a obrigações internas entre empresas do próprio grupo — as chamadas dívidas intercompany. O endividamento líquido com terceiros é estimado em cerca de R$ 4 bilhões, concentrado principalmente na Caixa, a maior credora individual.

No início da recuperação, o banco tinha mais de R$ 3 bilhões a receber, garantidos por ações e recebíveis da SPMar — numa estrutura de project finance que tornou a concessionária o núcleo da reestruturação.

A SPMar é o ativo mais valioso e a principal fonte de receitas do grupo. Em 2024, houve negociações com a Starboard, que avaliou o ativo em R$ 3,5 bilhões. O negócio não avançou, mas a Heber reconhece, em relatórios judiciais, que há tratativas em curso com investidores interessados, ressaltando que qualquer venda dependerá de autorização judicial.

Retomada

Os relatórios mais recentes mostram também que a Heber vem cumprindo pontualmente os pagamentos. O caixa consolidado do grupo cresceu 1,8% no primeiro quadrimestre de 2025, passando de R$ 268 milhões para R$ 273 milhões, enquanto o número de funcionários subiu de 814 para 840.

A arrecadação da SPMar é canalizada diretamente para o pagamento da dívida com a Caixa, que detém garantia sobre as ações e os recebíveis de pedágio – e hoje a principal âncora de estabilidade do grupo.

“Eles estão pagando o plano, estão cumprindo. Eu não tenho notícia de descumprimento. Pelo que eu enxergo, as coisas vêm caminhando”, afirma Beatriz Novaes, administradora judicial do processo, ao InvestNews.

Hoje, a interlocução direta com a Justiça é feita por executivos profissionais, e não mais pelos integrantes da família Bertin. À frente das conversas está Almir Bittencourt Paceli Junior, funcionário de carreira do grupo, que hoje é diretor da SPMar. “A família não participa mais das discussões do dia a dia. O Almir que tem sido muito técnico e colaborativo”, prossegue a advogada.

Com todos os planos homologados e em execução, a Heber entrou na reta final da recuperação. Pela legislação, as empresas podem deixar o processo dois anos após a homologação dos planos, se não houver inadimplência. Mantido o desempenho atual, a Heber tem condições de sair da RJ até 2027.

“Agora é execução de plano. O que resta é acompanhar o cumprimento das obrigações até que o prazo legal se cumpra. Não vejo mais discussão estrutural, é cumprimento. Se mantiver o desempenho atual, a tendência é encerrar a RJ no prazo”, completa Beatriz.

Em nota ao InvestNews, o Grupo Heber afirmou que direciona todos os seus esforços ao cumprimento do plano de recuperação judicial. “Atualmente, a execução integral desse plano representa a principal prioridade da companhia”.