Se alguém bom de copo se desafiar a beber um rótulo diferente de cerveja brasileira por dia – e só aquelas oficialmente registradas –, levaria 126 anos para cumprir a tarefa. Há pouco mais de dez anos, o mesmo desafio poderia ser realizado em alguns meses.
O que mudou de lá para cá? Houve um “Big Bang” das cervejas artesanais no país. De repente, lá em meados da década de 2010, todo um novo universo de bebidas fermentadas começou a brotar, com dúzias de novos tipos e centenas de novos sabores.
O censo brasileiro das cervejarias independentes da Associação Brasileira da Cerveja Artesanal (Abracerva) mostra que 86% das microcervejarias nacionais foi fundada a partir de 2015.
E o cosmos das bebidas artesanais tem se expandido com velocidade. O Brasil saiu de 114 pequenas fabricantes de cerveja registradas no Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) em 2010 para 1.847 no ano passado. Trata-se de um crescimento de 1.520% – mais de 16 vezes em 13 anos. Hoje elas representam um faturamento anual respeitável, de R$ 1,6 bilhão.
Ok, a cerveja artesanal mudou de patamar. Mas, passado o entusiasmo inicial com a novidade, a indústria enfrenta novos desafios. O primeiro é conquistar mais espaço na mesa dos brasileiros em um mercado amplamente dominado pelas gigantes do setor. Os dados da Abracerva indicam que, mesmo após o crescimento todo, as microcervejarias detém apenas 2% das vendas.
Mais de 45 mil variedades
Três grandes grupos ainda dominam o nosso mercado, de forma ampla. Ambev, Heineken e Petrópolis respondem, juntas, por 94,7% das vendas de cervejas no país, segundo dados da Nielsen.
Os 3% que sobram ficam com as cervejarias médias (caso da Germânia, para citar uma marca célebre) e as importadas. Mesmo assim, a frestinha que resta às microcervejarias representa uma oferta cada vez mais diversificada de produtos, sabores e sotaques. Já são 45,6 mil rótulos e 3,5 mil receitas registradas pelas pequenas fábricas (a mistura das fórmulas gera variedades distintas).
O florescimento da cerveja artesanal marcou o início de uma mudança na cultura dessa bebida à base de lúpulo, malte e cevada. Até o início dos anos 2000, o mundo da cerveja brasileira era uma terra plana, dominada, basicamente, por um único sabor, o tipo pilsen.
Nos primeiros anos do século 21, o consumidor brasileiro começou a descobrir um planeta de variedades que desciam mais redondas por meio das marcas importadas. Foi então que termos como IPA, weizenbier, pale ale, stout e porter começaram a se tornar parte dos papos de boteco, dos churrascos e festas Brasil afora.
Esse foi o terreno fértil para o surgimento de uma nova indústria local de cervejas artesanais para concorrer com as garrafas estrangeiras. As microcervejarias têm comido pelas bordas do mercado, mas, na verdade, concorrem mesmo com as marcas importadas. O público as identifica como parte de um segmento premium.
E as estatísticas reforçam essa percepção. A importação brasileira de cerveja segue em queda desde 2019. No ano passado, o volume da bebida trazido de fora atingiu o menor nível desde o início dos anos 2000.
Nacionais goleiam estrangeiras
As importações caíram 86,7% em relação ao pico histórico, de 2018. Em 2023, o Brasil trouxe de outros países 7,13 milhões de litros frente a 53,7 milhões de litros há seis anos. Em valores, a queda atingiu 39,4% para meros US$ 8,6 milhões.
A profusão de marcas surgidas no Big Bang é a grande responsável pela derrocada das marcas gringas. E ela também começa a sedimentar uma nova cultura cervejeira. Muitos produtos se tornaram atrações em suas regiões de origem. É quase como torcer para um time da sua cidade natal.
Os dados do Ministério da Agricultura e Pecuária indicam haver 771 cidades no Brasil que contam com, pelo menos, uma cervejaria para chamar de sua.
Piracicaba (SP), para citar um caso, costuma receber visitantes atraídos pela Rota Cervejeira local. O circuito inclui a visita a 12 cervejarias artesanais da região, desde a pioneira Cevada Pura, lançada em 2001, até a premiada Dama Bier, que chega a 14 Estados brasileiros.
Microrrevolução própria
Gilberto Tarantino, presidente da Abracerva e dono de uma microcervejaria que leva seu sobrenome, vivenciou toda a transição desde a descoberta dos novos sabores por meio das marcas importadas até a guinada da indústria nacional. “Antigamente todo mundo falava só da água, que o sabor dependia da água. Mas hoje os consumidores entendem, por exemplo, que existe uma profusão de leveduras. O malte também pode ter várias pegadas diferentes, assim como o lúpulo, que funciona como se fosse a pimenta da cerveja.”
Tarantino conta que, antes de criar sua própria marca, tinha uma importadora de cervejas. “Há 15 anos não existiam produtos similares no Brasil”, explica. O reinado dos rótulos de fora durou pouco. Pequenos produtores brasileiros rapidamente perceberam que poderiam criar as próprias receitas de variedades sofisticadas. “Essa mudança começou há uns 12 anos. Os pioneiros investiram em aromas e sabores diferentes do que tinha no nosso mercado.”
Foi quando Tarantino decidiu fabricar a própria cerveja. Em 2018, montaria uma fábrica em São Paulo – que também abriga um amplo bar, onde os clientes podem degustar variedades como a Miracle IPA ou a Manga IPA, que leva a fruta na composição.
Identidade nacional
Um dos grandes desafios do setor das cervejas artesanais hoje recai sobre a construção de uma identidade nacional. Tarantino ressalta o potencial de cervejeiros usarem ingredientes brasileiros na receita.
O mercado brasileiro já exibe vários exemplos de cervejas com frutas. O açaí aparece, por exemplo, na Sout Açaí, da Amazon Beer. A uvaia virou ingrediente da Nativas Uvaia, da Burgman. Ou ainda a jabuticaba da Saison Madureira, feita pela Brasiliana.
Existem ainda outra forma de trazer brasilidade para as cervejas: usar barris de madeiras nativas. É o caso das Fresh Hops série madeiras Umburana e Cumaru, da Tarantino.
O presidente da Abracerva conta ainda haver uma terceira grande vertente em gestação: o uso de uma levedura derivada da mandioca. A associação iniciou um projeto no qual 50 pequenos produtores brasileiros criaram receitas próprias com o uso do novo ingrediente.
A levedura é um tipo de fungo microscópico que fermenta, ou seja, transforma a mistura de água, malte, lúpulo e cevada na cerveja. O projeto Manipueira Selvagem (nome do fermento extraído da mandioca) usa esse novo catalisador para obter um produto com raízes genuinamente nacionais.
A Abracerva tem levado a “cerveja de mandioca” a eventos internacionais e se prepara para exportá-la.
Três modelos de negócio
Gustavo Alves, dono do Köbes Emprium Bar e diretor da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), faz parte do time de microcervejeiros. Ele produz e vende as IPAs, witbiers e lagers que levam sua marca no próprio estabelecimento desde 2019.
O especialista explica haver no segmento de cervejas artesanais, basicamente, três modelos de negócios. Há os chamados “brewpubs”, ou seja, bares que fabricam e vendem as bebidas no local. O jeito mais comum de entrar no mercado, no entanto, tem sido montar uma pequena indústria e distribuir a produção para bares, restaurantes, empórios e supermercados de sua região. “É um nicho, não um negócio de grande volume. O público local abraça o rótulo local.”
Existe ainda um formato conhecido como cigano, no qual o empreendedor aluga os momentos ociosos da fábrica de um terceiro para produzir as próprias receitas.
Um brinde às vendas online
A indústria artesanal se beneficiou ainda da chegada dos marketplaces digitais, como o Mercado Livre e outros varejistas. “Para os menores, as plataformas online atendem muitas vezes melhor do que os supermercados. Dá para vender direto para os bares, por exemplo.”
Gustavo Alves explica que disputar as gôndolas de grandes redes de supermercados é uma missão quase impossível para as pequenas empresas diante da concorrência com as gigantes do setor. Porém, no digital, o marketing boca a boca, ou melhor, garganta a garganta, consegue até ultrapassar as fronteiras regionais.
A Ecobier, de Socorro (SP), pode ser encontrada em centenas de estabelecimentos em quatro Estados do Sul e Sudeste. A Coruja, que nasceu em Estrela (RS), mas atualmente é produzida na cidade de Forquilhinha (SC), também faz parte da leva de microcervejarias com alcance supra regional.
Após o Big Bang, o mercado brasileiro de cervejas artesanais entrou em uma fase de maior reconhecimento. Mas ele ainda é diminuto. Nos EUA, onde também reinam as cervejas amarelinhas de baixíssima complexidade, as artesanais já respondem por 24,7% das vendas. Ou seja: ainda há muito terreno para elas expandirem por aqui.
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