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Da Lojas Marisa ao Corinthians: a vocação (ou não) da família Goldfarb para a classe C

Terceira geração da família fundadora companhia enfrenta desafio de salvar uma das mais tradicionais redes de varejo de moda do país

Bernardo Goldfarb, o fundador da varejista de moda Lojas Marisa, morreu em 1990, aos 67 anos. E segundo consta, com uma única frustração: não ter sido presidente do seu time do coração, o Corinthians. Mais de duas décadas depois, um de seus netos, Marcelo, de 41 anos, tem a chance de realizar o sonho do avô. Na verdade, com uma ambição ainda maior: como sócio da empresa OTB Sports, ele quer comprar o clube paulistano, que vive atualmente uma de suas maiores crises.

Por esse lado, Bernardo provavelmente ficaria feliz. Por outro… Foi nas mãos dos seus sucessores que a rede de varejo de moda feminina, de onde veio parte do patrimônio da família, esteve muito perto de quebrar. E ainda segue no vermelho: o balanço relativo ao primeiro trimestre deste ano, divulgado – com atraso – há poucos dias, mostra um prejuízo trimestral de R$ 148,3 milhões e uma dívida líquida de R$ 310 milhões.

Esse resultado, provavelmente, deixaria Bernardo frustrado: o empresário orgulhava-se do fato de nunca ter visto um prejuízo nos balanços das lojas.

Para entender a mudança de rumo da Marisa, que chegou a ser a quinta maior rede de varejo do país na década de 90, o InvestNews conversou nas últimas semanas com diversos executivos que fizeram parte do comando e do conselho de administração da Marisa, com ex-funcionários e também com pessoas que conviveram com alguns membros da família Goldfarb.

O desafio é macro?

A Marisa atribui a crise ao cenário econômico: juros altos e aumento da concorrência, especialmente das plataformas asiáticas, castigaram as varejistas. Ainda mais as endividadas. Isso é fato em um passado recente, talvez nos últimos três anos. Afinal, a Selic, que foi para 2% na pandemia, começou a subir somente em março de 2021. A verdade é que faz tempo, mais de uma década, que os problemas da Marisa começaram.

Nos últimos dez anos, o valor de mercado da companhia, que tem ações negociadas na Bolsa, encolheu 97%. Em 2014, a empresa registrava seu primeiro prejuízo. Desde então, todos os executivos que estiveram no comando da empresa vêm tentando ajustar as contas, cortando custos e fechando lojas.

“Hoje, todo mundo fala do turnaround da companhia. Mas faz anos que a empresa passa por uma lipoaspiração”, diz um dos executivos que passaram pela companhia. “O turnaround necessário, e que até aqui não foi feito, é no posicionamento de mercado.”

Essa fonte, que não quer ser identificada, se refere ao fato de a Marisa, ao longo dos últimos 15 anos, ter se afastado de sua vocação: ser uma rede de varejo de vestuário voltada para as classes C e D, com foco na moda feminina (“De mulher pra mulher”, quem não lembra do slogan?). Foi assim que a empresa começou e se consolidou como uma das mais tradicionais redes de moda do país.

Sucessão

Mas houve um desvio de rota. Quando a empresa passou para as mãos do sucessor de Bernardo – Marcio, o primogênito do clã –, surgiu a ambição de ser uma empresa mais high end, ou seja, sofisticada. O forte crescimento econômico experimentado pelo país no início dos anos 2000 deu força a essa ideia. A moda masculina e infantil veio para a vitrine. E aí a Lojas Marisa passou a se comportar como concorrente direta de outras redes já consolidadas no país, como C&A e Renner.

“Uma fantasia”, nas palavras de um executivo que participava da gestão nos tempos em que a rede holandesa virou benchmark para a empresa dos Goldfarb.

É importante dizer que mudar ou ampliar o público-alvo não é, em si, um erro. Ao contrário, pode até fortalecer a companhia. O problema, na visão de quem conhece a empresa por dentro, é que esse processo foi conduzido sem uma estratégia consistente.

Uma demonstração de que o comando da empresa não entendia bem o público que queria atender é que foram abertas lojas mais sofisticadas e caras em regiões muito pobres da periferia de grandes centros, onde a receita não justificava o investimento. Só que em vez de melhorar o desempenho, a pompa afastava os clientes. “As pessoas iam lá só pra tirar foto”, conta um executivo que visitou muitas dessas unidades.

E foi justamente nessas regiões que concorrentes como Besni, Torra-Torra e outras varejistas populares locais acabaram ganhando terreno. Nas palavras de um ex-executivo da companhia, enquanto a Marisa brigava para ser uma C&A, ela perdia seu mercado original para os concorrentes – fenômeno que levou a uma estagnação da receita da companhia a partir de 2015.

Mas e a família?

Desde a profissionalização da empresa, os Goldfarb foram se afastando da empresa, mas não a abandonaram. Ao contrário, sempre demonstraram uma certa responsabilidade financeira com a companhia. Nos últimos cinco anos, os controladores já fizeram quatro aportes que superaram R$ 1 bilhão. E, na última quarta-feira (31), a empresa anunciou um novo aumento de capital, no valor de R$ 622,8 milhões.

Atualmente,  há dois membros da família no conselho da empresa: Marcio, filho mais velho de Bernardo, de 71 anos, e seu sobrinho Ricardo, de 39 anos, representante da terceira geração.

Como era comum nas famílias tradicionais, Marcio, o filho mais velho, foi preparado para suceder o pai desde cedo. O plano original era que Marcio assumisse o comando no começo da década de 80 para que Bernardo pudesse se dedicar à fazenda, em Botucatu, interior de São Paulo. Mas o patriarca não cumpriu o combinado: só deixou a empresa quando morreu.

Marcio ficou na cadeira de CEO por 26 anos, até o início da profissionalização da companhia, em 2017. Foi durante sua gestão que a Marisa fez seu IPO, em 2007, já com o objetivo de financiar uma expansão e de deixar de ser vista como uma marca de varejo popular.

Antes de assumir o comando, Marcio ocupou diversas áreas administrativas da empresa e se especializou no ramo: formou-se em Moda e Estilo na Whitaker International de Nova York. Sob seu comando, a empresa mudou de patamar: a rede de lojas ultrapassou os limites de São Paulo, a área de vendas aumentou mais de dez vezes e o número de funcionários mais do que dobrou. Além disso, a Lojas Marisa ampliou sua presença em shopping centers, criou um braço financeiro para conceder crédito e também uma rede de venda direta.

Quando ele deixou o posto, em 2017, no entanto, já era perceptível que essa expansão não se traduziria em resultado positivo no longo prazo. Marcio é descrito por quem trabalhou ao seu lado como um gestor extremamente gentil e correto. Mas, dizem pessoas ouvidas pelo InvestNews, sem o mesmo “talento do pai”.

Marcio não identificou, por exemplo, que a euforia que tomou conta do varejo nos primeiros anos do governo Lula, quando a classe média explodiu – “um período em que se vendia tudo para todo mundo”, define um executivo do setor –, não seria sustentável no longo prazo. E também mascarava alguns erros de estratégia da empresa.

Já Bernardo, paulistano filho de imigrantes judeus poloneses, foi forjado desde cedo para o comércio. Aos 18 anos, já era gerente da sapataria da família. Depois de abandonar o curso de engenharia, formou-se em contabilidade pela Faap. E nunca deixou o escritório da empresa, instalado no centro de distribuição da Marisa, na Barra Funda, Zona Oeste de capital paulista. Ele gostava de dizer que agia como um regente de orquestra: os diretores se portam como solistas e os funcionários como músicos que leem a partitura.

Os outros dois filhos de Bernardo – Décio e Denise – também foram levados para trabalhar na empresa. Décio foi encaminhado para cuidar da área financeira, mas sua permanência na empresa foi mais breve. Executivo mais enérgico, nas palavras de quem conviveu com ele na companhia, Décio investiu no setor de real state, assim como outros integrantes da família. Hoje, cerca de 25% das lojas da Marisa funcionam em imóveis da família Goldfarb e pagam aluguel. Há cerca de cinco anos, essa fatia era de 40% .

Já Denise, que está distante da empresa há mais tempo, esteve à frente do departamento de moda da varejista, o que significa olhar para as tendências de moda, cuidar da criação e de compras. Casada com Jack Terpins, presidente do Congresso Judaico Latino-Americano, ela dedica parte do tempo a eventos relacionados à comunidade judaica.

Todos os filhos de Bernardo deram ao pai três netos. Mas o único que de fato se envolve com o negócio atualmente é Ricardo, filho de Décio. Além de ocupar uma cadeira no conselho, ele é membro observador do Comitê de Finanças. Administrador de empresas formado pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), Ricardo é considerado um executivo preparado e talentoso. E é quem acompanha de perto o processo de reestruturação da companhia.

Procurado pela reportagem, Ricardo não quis dar entrevista, mas sempre respondeu prontamente a todas as mensagens enviada. Nenhum outro porta-voz da empresa ou da família se dispôs a falar. Da mesma forma, a OTB Sports não respondeu ao pedido de entrevista.

Paralelamente à Marisa, Ricardo é diretor de Investimentos na Twister Participações, empresa de gestão imobiliária, que tem seus pais e irmãos como sócios. Mas é por outros motivos que ele é visto com frequência nas redes sociais: o executivo é casado com Carol Corona, filha do fundador do Grupo Bio Ritmo, Edgard Corona, e responsável pela administração do braço de microgyms do grupo, as academias especializadas da rede.

Assim como os primos, Ricardo demonstra um certo cansaço com a prolongada crise da Marisa, relatam fontes. E não é difícil de entender: todos os herdeiros da terceira geração têm seus próprios projetos, sendo a maioria deles relacionado a artes. Nada a ver com a dureza da gestão de uma varejista de moda popular.

As irmãs de Ricardo nunca se envolveram com a empresa fundada pelo avô. Renata também se embrenhou no mundo da moda e chegou a lançar uma marca de bolsas, a Grass.

Marina, a caçula, é cantora. Se apresentou em eventos corporativos e casamentos. Ela fez uma participação especial no casamento do irmão com Carol, em Trancoso (BA), em 2022. O evento durou os quatro dias do feriado de Corpus Christi, no auge da crise da companhia. Mesmo que tenham sido bolsos diferentes a bancar o evento, foi inevitável que o casamento de milhões gerasse desconforto entre os colaboradores.

Além de Marcelo, o empresário que negocia a compra do Corinthians, Marcio teve duas filhas. Roberta é artista plástica e mora em Portugal. E Flavia seguiu no mundo da moda, mas nada parecido com o que faz a Lojas Marisa: a estilista criou a marca Farb, de slow fashion, com ateliê no Jardim Europa, bairro nobre de São Paulo.

O lado de Denise não usa o sobrenome Golfarb, assinam todos como Terpins. Michel e Rodrigo foram pilotos do Rally dos Sertões, competição automobilística que dura dez dias. A caçula, Ticiana, é artista plástica. Esse núcleo também tem investimentos no setor imobiliário, especialmente em galpões.

Além de Ricardo, Rodrigo e Marcelo foram membros observadores de comitês estatutários, de gestão e RH da Marisa, respectivamente. 

Desconexão

O distanciamento da família Goldfarb do negócio pode ajudar a explicar em parte esse desvio de rota. Afinal, o  lado bom de contar com acionistas controladores ou de referência em uma empresa é que eles podem influenciar as decisões de longo prazo. E, assim, podem atuar como uma espécie de guardiões da cultura e dos valores da empresa. Mas, no caso da Marisa, os herdeiros têm seus próprios projetos. E já estão muito distantes da realidade de uma empresa de varejo, como é a Marisa.

O problema é que, na visão de quem acompanha o dia a dia da companhia de perto, os times formados para tocar os negócios não tinham grande experiência no segmento de moda. E os controladores deixaram as decisões estratégicas da empresa nas mãos desses executivos.

O varejo de moda é cheio de especificidades. Especialistas dizem que, para sobreviver e vencer, é fundamental ter clareza sobre quem é o seu público. E também é preciso acompanhar de perto as tendências internacionais, comprar o material certo e garantir a produção com qualidade. Tudo isso com o custo o mais baixo possível. É um ramo com muita concorrência, tanto de empresas locais como de estrangeiras. De acordo com quem trabalha no setor, não basta entender de finanças, é preciso ter a visão do todo para competir.

Quando a Marisa partiu para profissionalização da gestão, em 2017, trouxe para assumir a cadeira de CEO Marcelo Araujo, que havia sido presidente do Grupo Libra, um dos maiores operadores portuários do país. Executivo acostumado a lidar com os desafios de uma empresa familiar, mas sem qualquer experiência no complexo setor de varejo de moda.

Também passaram pela cadeira de CEO Marcelo Pimentel, hoje no comando do GPA, Adalberto Santos e João Nogueira Batista. Ambos têm grande experiência em gestão financeira e assumiram com o desafio de reestruturar as contas da Marisa. Na sequência, veio Andréa Menezes, que ficou na cadeira por um mês. Em março deste ano, quem assumiu a gestão foi Edson Salles, desta vez alguém com histórico no varejo, com a tarefa de dar sequência ao processo de reestruturação iniciado em 2022 por Nogueira Batista, que tem como base a volta às origens da companhia.

A percepção de quem convive com os herdeiros é de que nenhum deles está disposto a insistir no negócio: há algum tempo, ficaram desgostosos com a situação. Afinal, de tempos em tempos,  os acionistas são convocados a colocar dinheiro na companhia. Daí a pressa para que as perdas sejam estancadas e, então, a empresa esteja em condição de ser vendida.

Sofrimento prolongado, já basta o de torcer pelo Corinthians.

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