A jogada revela um movimento maior: os chineses estão colocando mais fichas no Brasil, só que agora com outra estratégia. Se anos atrás o objetivo era fazer volume, brigando entre as opções mais baratas, hoje as fabricantes de lá querem ocupar espaço entre os objetos de desejo.
A marca registrada dos celulares caríssimos da Huawei é a seguinte: eles são “expansíveis”. O X6 tem três telas: a normal e mais duas que ficam dobradas para dentro do aparelho. Aí você abre ele, como se fosse um livro, e o par de telas internas se convertem num display gigante.
O XT também tem três telas, só que é mais esperto. Dá para desdobrar o trio todo e ficar com um telão de 10,2 polegadas, do tamanho de um iPad. É, na prática, um tablet dobrável: algo que a Apple nunca sonhou em entregar.
Essa lógica é bem parecida com a que tem sido adotada pelas montadoras chinesas no mercado automotivo. Antes, a disputa era no ringue dos carros populares. Depois mudou tudo. Elas tornaram seus SUVs híbridos objetos de desejo, e agora brigam com BMW, Mercedes e até Porsche (é ela que uma das novas marcas chinesas, a Zeekr, deseja peitar).
A BYD, chinesa que mais vende por aqui (e no resto do mundo) destacou-se também pelo marketing agressivo — na novela Vale Tudo, é a marca do carro da personagem Solange Duprat, uma das protagonistas, além de ser citada constantemente pelos personagens.
Ainda não tem marca de celular chinesa em novela, mas não seria estranho que isso acontecesse logo. “Para conseguir reputação relevante, tem que construir marca”, diz Diego Marcel, gerente de relações públicas do negócio de consumo da Huawei no Brasil e porta-voz da empresa no país. Segundo ele, a oferta de celulares de altíssimo preço é uma forma de sinalizar que a companhia pretende ser aspiracional. Aí sim, num segundo momento, a ideia é buscar market share com modelos que não custem o preço de uma moto.
Gigante da tecnologia, a Huawei desenvolve infraestrutura de telecomunicações, serviços em nuvem, sistemas de inteligência artificial para a indústria automotiva… Além de smartphones, claro. Mas tinha saído dessa categoria no mercado brasileiro em 2019, depois de ficar na mira de Trump em seu primeiro mandato como presidente americano.
A acusação dos EUA: os aparelhos seriam usados pelo governo chinês para serviços de espionagem, o que limitou sua atuação em diversos mercados. Até hoje ela é impedida de usar o Android – teve de desenvolver seu próprio sistema, o HarmonyOS.
A volta ao Brasil começou com uma pop-up store no Shopping Cidade São Paulo, aberta neste mês. Uma loja conceito deve vir ainda este ano. No digital, a Huawei vende tanto pelo site próprio quanto na Amazon, na Shopee, no Mercado Livre e no TikTok Shop.
O plano é trazer também linhas mais próximas dos preços de iPhone e Galaxy S (a top da Samsung), para colocar o Brasil dentro da “lógica global de lançamentos”. Tudo virá da China — a produção local só vai entrar em cena se as vendas ganharem uma fatia significativa do mercado.
Lentes de grife
Uma outra chinesa também chegou neste ano. Seu preço não é estratosférico como o da Huawei, mas os produtos também chegaram para brigar numa faixa de preço mais elevada, de olho num consumidor de poder aquisitivo mais alto e que queria procurar uma alternativa aos modelos que já existiam no mercado. É a Jovi, nome que a chinesa Vivo adotou no Brasil para não se confundir com a operadora de telefonia. Na China, a companhia é uma das maiores fabricantes, além de deter a liderança em mercados grandes da Ásia, como a Índia.
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A empresa instalou suas linhas de produção na Zona Franca de Manaus, numa parceria com a fabricante GBR, e lançou quatro modelos de dois segmentos. O modelo V50, vendido a R$ 4,5 mil, traz consigo atributos de luxo como design ultrafino, bateria de longa duração e, principalmente, câmera com lentes Zeiss – fabricante alemã que está para a fotografia assim como a Montblanc está para as canetas.
Mas a Jovi já trabalha também com modelos mais em conta, capazes de fazer volume. Trata-se da linha Y, com preços entre R$ 1,4 mil e R$ 1,8 mil. Mesmo assim, eles trazem dois diferenciais marcantes.
1) Bateria de 6,5 mil mAh. É 40% mais do que um iPhone 16 Pro Max. Não à toa, a Jovi vende a linha Y sob o slogan “Rei da bateria”.
2) Resistência: os aparelhos têm certificação militar contra quedas e trincos – igual aquelas capinhas grossas de celular.
Não foi por acaso. A companhia passou um ano pesquisando o comportamento dos brasileiros antes de estrear. “Muitos falavam que não tinham problema de bateria, mas viviam conectados em tomadas ou power banks. Também era muito comum encontrar celulares com a tela trincada”, conta André Varga, diretor de produto da Jovi, que por anos foi executivo na Samsung, líder do mercado brasileiro. “Foi assim que decidimos quais modelos traríamos e como adaptá-los à realidade daqui.”
Mais do que celulares, a Jovi quer vender confiança, diz o diretor. Cada aparelho vem com o pacote ‘Benefícios 5 Estrelas’: um ano de proteção contra quebra de tela, dois de garantia contra defeitos, quatro para a bateria e cinco de revisão anual gratuita. “Nosso investimento é de longo prazo. Quem monta fábrica no Brasil e oferece esse nível de serviço está mostrando que quer disputar espaço de verdade”, diz Varga. O objetivo da companhia é estar entre as cinco maiores marcas do país no médio prazo.
A Oppo, que chegou um ano antes e também produz em Manaus, em parceria com a Multi (ex-Multilaser), seguiu a mesma lógica. Com aparelhos na faixa intermediária, seu modelo premium por aqui, o Reno 13F é alimentado com o Gemini, a IA do Google, e tem lentes poderosas, numa câmera de 50 megapixels. O modelo custa algo na casa de R$ 3 mil nas principais lojas. E a marca já conquistou um espaço importante: fontes de mercado ouvidas pelo InvestNews dizem que ela responde por uma porcentagem de dois dígitos nas vendas de celulares em uma das maiores redes de varejo do país.
A grande expansão
Por trás desses movimentos individuais, há uma tendência mais ampla. Segundo a NielsenIQ, as marcas chinesas já representam 14% das vendas em volume de eletroeletrônicos no Brasil — e 21% em faturamento, o que mostra o salto para modelos mais caros. “O crescimento é consistente. Em 2019, a fatia era de 16%. Hoje [com o ticket médio bem mais alto], passa de 21%, e tudo indica que deve continuar aumentando”, afirma Érica Andrade, gerente para as categorias de Áudio e Vídeo da NielsenIQ.
O avanço não se limita ao Brasil, claro. “Quando olhamos para países como Chile e Peru, vemos participação acima de 25% em algumas categorias”, diz Matheus Rabelo, gerente-sênior para Tech&Durables da NielsenIQ.
Com 138 milhões de usuários de smartphones e previsão de chegar a 178 milhões em 2029, segundo a Statista, o Brasil é um terreno fértil para as chinesas — embora não seja nada trivial romper a barreira dos 80% divididos hoje pelo trio Samsung, Apple e Motorola. Mas o avanço do Império do Meio dificilmente terá volta. Rabelo resume: “Não parece um voo de galinha. Já existe investimento instalado, fábrica em operação e uma estratégia consistente. A tendência é de consolidação, não de retrocesso”. Tudo à imagem e semelhança do que já aconteceu com os carros. Qual será a próxima?