A chegada da gigante chinesa, marca internacional da Meituan – a maior plataforma de entregas do mundo – acirra de vez a competição com o dominante iFood, dono hoje de uma participação de mercado acima dos 80%, e com a 99Food, que estreou há poucos meses, com taxas agressivas e investimento pesado.
No caso da 99Food – da também chinesa DiDi –, trata-se de uma segunda incursão: a plataforma fracassou no Brasil em 2022, após um curto período de funcionamento.
Nos últimos três meses, ações judiciais, disputas regulatórias, acusações de espionagem e de roubo de talentos já vinham antecipando o clima de confronto entre as três companhias. Agora, a disputa sai das declarações de executivos e finalmente chega às ruas e celulares, justamente na joia da coroa do delivery.
Em São Paulo, essa disputa ganha outra dimensão. A cidade concentra o maior mercado de alimentação fora do lar do país, com mais de 100 mil estabelecimentos ativos e é também o ambiente mais maduro para consumo digital: só o mercado brasileiro de delivery deve movimentar US$ 21 bilhões até o fim de 2025, segundo projeções setoriais.
A capital paulista também abriga a maior densidade de restaurantes voltados exclusivamente para entregas: as chamadas dark kitchens já representam 35% dos cadastros de restaurantes nos aplicativos. É esse volume de oferta, demanda e infraestrutura que torna São Paulo o principal território em disputa. É praticamente impossível ganhar a “guerra do delivery” no Brasil sem ter uma posição firme na maior cidade do país.
São Paulo também é o berço histórico do iFood e o território onde o aplicativo construiu sua escala dominante ao longo da última década. Nesse ambiente, a 99Food tenta reconstruir presença com taxas agressivas para os lojistas. Do outro, a Keeta inicia sua fase mais ambiciosa ao investir R$ 1 bilhão na operação de São Paulo, dentro de um plano nacional que prevê R$ 5,6 bilhões nos próximos cinco anos.
“O Brasil é o maior mercado potencial da Meituan fora da Ásia, e São Paulo é a porta de entrada desse plano”, disse o CEO da Keeta, Tony Qiu, durante coletiva de imprensa na semana passada. A dona da Keeta realiza mais de 60 milhões de entregas diárias na China e aposta na sua reputação global para conquistar o mercado brasileiro.
A plataforma começa na capital paulista já com 27 mil restaurantes parceiros e 98,2 mil entregadores cadastrados.

Bastidor quente
A disputa entre iFood, 99Food e Keeta nos bastidores ocorre há meses e em níveis de temperatura bem altos. Em agosto, o iFood acusou a 99Food de concorrência desleal ao tentar recrutar profissionais estratégicos numa suposta violação a acordos de não concorrência. Paralelamente, a Keeta acionou a Justiça contra a 99Food alegando que a rival usava “cláusulas de bloqueio” — regras que não proíbem, mas tornam mais difícil ou demorado para o restaurante operar também com novos aplicativos.
Em outubro, a Justiça paulista derrubou parte das chamadas cláusulas de bloqueio, reabrindo a discussão sobre barreiras de entrada no setor. A decisão acendeu um alerta em Brasília: o Cade instaurou um procedimento administrativo para acompanhar o mercado de delivery em praças como São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Santos e São Vicente.
O órgão já havia imposto, em 2023, o fim de contratos de exclusividade do iFood com grandes redes, mas a volta da 99Food e a chegada da Keeta reacenderam preocupações sobre práticas que pudessem limitar a competição. Agora, o Cade quer entender se o avanço dos novos players está esbarrando em regras contratuais, estratégias comerciais que possam distorcer a concorrência num momento de reacomodação do setor.
O auge da tensão veio no início de novembro, quando a Keeta registrou um boletim de ocorrência na Baixada Santista denunciando que pessoas não identificadas teriam visitado restaurantes parceiros se passando por funcionários da empresa, com crachás falsos, tentando acessar computadores e coletar informações internas. A Polícia Civil abriu inquérito para apurar a acusação de espionagem.
“Qualquer mercado em que entra um player a mais sempre fica mais intenso. Quem vai vencer esse jogo? Quem for bom”, disse recentemente ao InvestNews o CEO do iFood, Diego Barreto, avaliando o novo cenário de concorrência. Do outro lado, Tony Qiu não se intimida. “Concorrência forte não é problema. O problema é quando não existe competição.”
Armas postas
Entre os desafios da Keeta está o de chegar por último: em São Paulo, iFood e 99Food já duelam a pleno vapor.
O iFood, hoje controlado pela holandesa Prosus, é o líder absoluto do setor, tem mais de 60 milhões de usuários, 410 mil restaurantes cadastrados e uma rede que supera 300 mil entregadores no país. A empresa vive sua fase mais de maior expansão desde 2019 – vai investir R$ 17 bilhões até março de 2026 com a meta de chegar a 80 milhões de clientes e reforçar seu ecossistema de serviços.
O iFood ampliou o iFood Pago, vertical de crédito que deve movimentar mais de R$ 3 bilhões em 2025, e acelerou sua atuação em benefícios corporativos – no mercado, chegou a circular o rumor de que empresa estava interessada em comprar a Alelo, hoje nas mãos de Bradesco e Banco do Brasil, mas a hipótese esfriou nos últimos meses.
A companhia também fechou uma parceria inédita com o Uber, que permitirá pedir corridas pelo app de delivery e refeições pelo de transporte. É uma provável resposta à estratégia da DiDi, que se vale da base de usuários do concorrente 99 para catapultar a 99Food.
No entanto, o CEO do iFood, diz que movimentos recentes não são uma reação direta às chinesas. “Só reage à entrada de concorrente quem não tem um plano para um lugar melhor. Seria como assumir uma fraqueza.”

A 99Food adota uma estratégia para crescer rápido: preços agressivos, cupons pesados e ofertas constantes aos usuários do 99. Não é necessário baixar um aplicativo dedicado à plataforma de delivery de comida, uma tentativa de furar o “reflexo automático” de um mercado acostumado a abrir o ícone vermelho do iFood.
No relançamento, a plataforma prometeu R$ 2 bilhões em investimentos até 2026 e afirma já operar com mais de 20 mil restaurantes parceiros e pelo menos 50 mil entregadores nas principais capitais, incluindo São Paulo. Metade do primeiro R$ 1 bilhão anunciado foi direcionado justamente para a Grande São Paulo, com campanhas de taxa reduzida para lojistas e promoções agressivas para consumidores.
A estreia da Keeta nesta segunda-feira não sela o destino de ninguém, mas redefine a escala da disputa. Restaurantes, entregadores e consumidores tendem, nesta fase, a ganhar poder de barganha, seja com frete grátis, descontos ou taxas menores.
Keeta, iFoode e 99Food começam a disputar o único recurso realmente limitado desse mercado: o bolso do cliente.
*Colaborou Greg Prudenciano