Depois de uma década em que o Brasil praticamente parou de renovar suas frotas de ônibus, a Marcopolo registrou a maior margem de lucro bruto de sua história: 26,7% – 1,8 ponto percentual a mais do que o mesmo período de 2024 e mais de 9 pontos acima da margem de dez anos atrás.

Um feito raro, ainda mais num setor que roda devagar há muito tempo.

A fabricante gaúcha de ônibus atravessou recessão, tarifas congeladas e a crise do transporte urbano. Ainda assim, saiu de um retorno sobre o capital investido (ROIC) de 16,6% em 2023 para 23,3% no ano passado – o ROIC é uma medida um pouco mais precisa que a margem; mostra quanto a empresa ganha em cima de cada R$ 1 que investe na operação toda (contando melhorias nas fábricas etc), e já depois dos impostos.

A ironia é que esse desempenho ocorre, de fato, em meio a um marasmo: o mercado doméstico de ônibus continua travado, e a eletrificação dos veículos pesados — vista como chave para destravar a renovação das frotas — ainda não avançou como o esperado.

O resultado da Marcopolo reflete uma adaptação darwiniana a um ambiente hostil. Por outro lado, agora esbarra também no limite desse avanço. Para analistas do time do BTG, o ROIC de 2025 deve sofrer um revés, recuando para 19%, e em 2026 estabizando-se num patamar de 23%, igual ao de 2024.

Internacionalização

Sem crédito barato e com menor volume de pedidos de programas públicos para compra de ônibus, a Marcopolo ampliou presença fora do país. Hoje são três fábricas no Brasil e oito no exterior. As exportações chegam a mais de 140 países.

Com quase 50% do mercado nacional, é a líder do setor. Mas o contexto em que ela opera mudou drasticamente. E o mercado externo tornou-se uma estratégia para diluir o risco de operar em um país onde o transporte coletivo perdeu prioridade. A Marcopolo reforçou fábricas na América Latina, onde tem 40% do mercado, na África do Sul e na Austrália. Na outra ponta, reduziu a exposição a mercados de margens estreitas, como Índia e Egito.

A receita das operações de mercado externo, considerando as exportações e as operações internacionais, ganhou mais relevância. No terceiro trimestre, 50% do total veio de fora. No acumulado do ano, rondam em 40% – um peso, na leitura de analistas, bem maior do que no passado recente, com operações na América Latina e na Austrália ganhando corpo.

“Os mercados internacionais tornaram-se o nosso instrumento de diversificação”, afirma Pablo Motta, CFO da Marcopolo, em conversa com o InvestNews. “Eles nos ajudam a manter a escala e diluir a volatilidade.”

A empresa também apostou em verticalização – ou seja, no controle a cadeia de fornecimento. Boa parte das estruturas metálicas, dos componentes plásticos e dos sistemas internos é feita dentro de casa. “Essa é a nossa grande diferenciação”, prossegue Motta. “Ela permite rodar na mesma linha veículos muito diferentes e manter competitividade, porque controlamos o processo do começo ao fim.”

Essa configuração explica o “turnaround silencioso” dos últimos anos: um negócio ajustado para ganhar dinheiro mesmo se o Brasil crescer pouco. Mas também define o desafio à frente — o que fazer quando a eficiência atinge o limite.

Navegando os ciclos

Entre 2008 e 2013, a produção de ônibus viveu um boom. Subiu de 23 mil para 30 mil unidades por ano, impulsionado por linhas de financiamento de pai para filho, com juros próximos a 2% ao ano.

A bonança, porém, se transformou em armadilha: com frotas renovadas e a economia em crise, os operadores suspenderam as compras. “De lá para cá são doze anos em que a renovação do transporte urbano e rodoviário no Brasil não acontece nos volumes necessários”, diz Motta.

Segundo a associação dos fabricantes, a Fabus, a idade média da frota subiu de oito anos, em 2012, para 11,4 anos em 2024 — um retrato do subinvestimento crônico no transporte coletivo.

Congelamento de tarifas

No transporte urbano, a estagnação ganhou contornos políticos. As manifestações de 2013, que começaram contra um aumento de R$ 3,00 para R$ 3,20 na tarifa da capital paulista, marcaram o início de um congelamento prolongado dos reajustes.

Pablo Motta, CFO da Marcopolo: há demanda reprimida por ônibus urbano

“O serviço de transporte coletivo urbano passou a viver um desequilíbrio econômico-financeiro”, lembra o CFO da Marcopolo. Sem recomposição de receita, os concessionários cortaram investimentos e postergaram a renovação de frotas.

Enquanto isso, parte dos passageiros migrou para uma novidade que surgiu bem naquela época, em 2014: os aplicativos. “Com o serviço mais degradado, a população começa a utilizar o transporte individual”, diz o executivo. O resultado foi um ciclo vicioso: tarifa congelada, serviço pior, perda de usuários, queda de caixa e mais atraso na renovação.

Desempenho no trimestre

Mesmo assim, a reestruturação interna permitiu à Marcopolo capturar margens maiores mesmo num mercado menor. Isso somado ao exterior permitiu também apagar as dívidas. Ela praticamente sumiu do balanço.

Quanto ao balanço, vamos a ele. No terceiro trimestre de 2025, a empresa registrou receita líquida de R$ 2,5 bilhões, um crescimento de 8,2% ante mesmo período de 2024. Já o lucro líquido recuou 1,8%, para R$ 329,6 milhões. A margem recorde, de 26,7% é a bruta, ou seja, mede o que sobra das vendas depois de descontar os custos diretos de produção. Outra margem, a Ebitda, mostra o que resta depois das despesas com toda a estrutura da empresa. Essa ficou em 19,3%. Não é recorde, mas está em um bom patamar.

Já a dívida caiu a 0,05 vez o lucro operacional (Ebitda); uma boa notícia para um cenário com a maior Selic em 19 anos, que machuca as empresas mais alavancadas.

Os números, enfim, são fortes. Mas a reação do mercado foi fria. As ações caíram mais de 10% após o balanço, e o BTG Pactual cortou a recomendação de compra para neutra. O argumento é aquele que vimos no início: o ciclo de alta do crescimento parece mais perto do fim do que do começo.

O freio do juro

No segmento rodoviário, a equação é parecida. O lançamento da Geração 8 dos ônibus da companhia, em 2022, coincidiu com passagens aéreas caras e uma população com menos poder de compra — cenário favorável para a troca do avião pelo “ônibus executivo”. Mas o crédito não acompanhou o apetite.

“Hoje, a principal linha é o Finame e o BNDES, e gira na casa de 19% a 21% ao ano”, diz o CFO. Com dinheiro caro, o operador compra apenas quando é inevitável, concentrando pedidos na alta temporada e evitando comprometer o caixa.

Esse comportamento explica a desaceleração recente nas vendas domésticas e a projeção mais conservadora para 2026. O próprio BTG revisou suas estimativas de receita e de lucro, prevendo um mercado interno mais contido e um peso maior das operações internacionais.

A travessia energética

Se o crédito é o primeiro freio, a eletrificação é o segundo. A Marcopolo tradicionalmente fazia apenas a carroceria — chassi e propulsão vinham de montadoras como Mercedes, Volvo e Scania. Mas a chegada de fabricantes chineses com ônibus elétricos integrais mudou o jogo.

Para não perder espaço, a empresa desenvolveu seus próprios modelos completos, inclusive elétricos e híbridos, em parceria com fornecedores europeus e asiáticos. Na prática, porém, a transição anda mais devagar do que os planos oficiais.

As metas de cidades como São Paulo, que pretendem eletrificar boa parte da frota, esbarram na falta de infraestrutura e no custo. “As cidades não estavam preparadas para rodar com veículos elétricos porque não tinham estrutura de recarga suficiente”, diz Motta. O preço de um elétrico é, em média, três vezes maior que o de um diesel.

Para manter-se competitiva, a Marcopolo aposta em soluções intermediárias, como híbridos a etanol (que poluem menos que híbridos a gasolina) e ônibus a gás movidos a biometano. Elas permitem reduzir emissões sem exigir investimentos imediatos em infraestrutura. É uma tentativa de equilibrar o modelo atual com as exigências de uma transição que ainda não se concretizou – e abrir, quem sabe, uma nova estrada de crescimento.