Negócios
PwC pode responder criminalmente se comprovada conivência no caso Americanas
Especialista critica falhas dos “guardiões do mercado” que deixaram passar rombo de R$ 20 bilhões.
Responsável por auditar o balanço financeiro da Americanas (AMER3), a PwC (antiga PricewaterhouseCoopers) pode ser responsabilizada criminalmente se for comprovado que houve conivência no caso que ocultou o rombo contábil de R$ 20 bilhões e levou a varejista à recuperação judicial. A dívida total da Americanas soma R$ 47,9 bilhões, incluindo credores.
A PwC é responsável por avaliar as demonstrações financeiras da Americanas desde outubro de 2019. Antes desta data, a KPMG era responsável pela auditoria. Em 2013, a PwC já havia auditado as contas da varejista.
Ivo Cairrão, sócio-fundador e conselheiro no Grupo IAUDIT, destaca que o papel de uma auditoria externa não é encontrar possíveis fraudes, mas atestar sobre a razoabilidade dos números apresentados, o que inclui notas explicativas às nove demonstrações financeiras.
No entanto, ele ressalta que qualquer empresa de auditoria pode e deve auxiliar na procura de eventuais fraudes e, se forem constatados problemas, é preciso comunicar aos administradores. A depender do nível e gravidade da eventual falha, deve ser feito um relatório para os órgãos responsáveis e de controle do país, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), por exemplo.
“Os auditores estão sujeitos a responder, também, na esfera civil e criminal, isso se for comprovado o silêncio proposital de fatos constatados.”
Ivo Cairrão
Procurada pela reportagem para se manifestar sobre o assunto, a assessoria da PwC informou que, “por questões de confidencialidade e regras de sigilo profissional, a PwC não comenta temas de clientes”.
Ações judiciais
O advogado criminalista Daniel Gerber, que representa um grupo de acionistas minoritários da Americanas, pediu à Justiça várias medidas, entre elas, o bloqueio de bens da empresa, e afastamento da diretoria, o que já foi realizado pela própria companhia. Ele também afirma que a auditoria PwC deve ser responsabilizada criminalmente caso seja comprovado envolvimento no caso.
“Sem a menor sombra de dúvida devem ser responsabilizados. Solicitei na petição que enviei ao Ministério Público que os diretores da PwC e sócios respondam pelo fato. Sendo comprovada essa situação, eles são coniventes e consequentemente executores do delito.”
Se provada a conivência, o advogado afirma que a auditoria pode ser responsabilizada por diversos delitos contra a ordem econômica e também teria o dever de indenizar os prejudicados, como investidores, credores e fornecedores. Para Gerber, é possível que interesses econômicos tenham motivado a ocultação das informações ao mercado.
“A motivação é sempre econômica. É o benefício econômico vindo do delito. A maneira pela qual teriam aceito ou não, a investigação vai dizer. Empresa fraudadora pode estar mancomunada e comprando o laudo que deseja por parte da auditoria”, justificou.
Gerber também concorda que uma auditoria independente não tem condições de coibir qualquer tipo de fraude, porque muitas vezes ela não tem acesso a todos os documentos. Apesar disso, ele ressalta que o rombo bilionário da varejista não tem como passar despercebido pela vultuosa quantia ocultada.
“No caso da Americanas, o que me conduz à conclusão de que a PwC deve ser responsabilizada é justamente a magnitude do problema. A negligência tem limites, o que não tem limite é a má fé, quando você fala de R$ 40 bilhões de rombo, não tem erro que explique isso.”
‘Guardiões’ do mercado
O especialista em governança corporativa Alexandre Di Miceli, professor da Fecap e fundador da Consultoria Virtuous Company, destaca que um dos motivos que propiciou a suposta fraude contábil das Americanas foi a falha dos chamados “guardiões do mercado de capitais”, que são os gatekeepers.
“Primeiro, a falha dos guardiões do mercado. E a auditoria é um desses guardiões. Um desses agentes de mercado que aporta seu capital reputacional, em tese tem um olhar especializado e independente, para dar mais segurança aos investidores”, disse.
Além das auditorias, ele questiona a função dos analistas de ações no caso, já que, no dia 11 de janeiro, data em que foram anunciadas pelo grupo “inconsistências contábeis” estimadas em R$ 20 bilhões, a ação estava com preço alto, entre R$ 20 e R$ 30. A avaliação das agências de rating e escritórios de advocacia também ficam em xeque após a descoberta do rombo.
O professor da Fecap defende que o principal responsável pela ocultação da suposta fraude é a própria Americanas, seja por erro ou fraude. A ideia de inconsistência contábil é de que tenha sido lançado algum número errado de forma manual. Mas, de acordo com ele, a ideia de erro foi descartada quando o ex-CEO da companhia, Sergio Rial, informou que os diretores da Americanas confidenciaram o que estava acontecendo.
Já a fraude ocorre quando alguém manipula algo para se beneficiar com isso, um esquema possivelmente de má-fé e ilegal.
“A gente está falando de erros que sempre favoreceram os números da empresa e, consequentemente, a remuneração que era paga pelos executivos, os dividendos pagos aos acionistas e isso fazia com que a empresa pudesse captar mais recursos em ganho de capital, que ela pudesse emitir dívida a um custo mais baixo. Esses ‘erros’ sempre favoreceram no curto prazo os executivos e acionistas [empresa]”, argumentou.
Responsabilidade do trio 3G?
Di Miceli também criticou o posicionamento do trio de acionistas Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira se excluindo da responsabilidade do ocorrido.
“Os acionistas emitiram um comunicado frio, uma verdadeira aberração, insinuando que a culpa do que aconteceu era da apuração entre auditoria e os bancos, ou seja, nada dentro da empresa. É absolutamente inacreditável, inaceitável, sem nenhuma empatia para com a sociedade. Esse é um tipo de ausência de liderança. O problema estava dentro da empresa, lideranças ruins.”
Além da falta de governança, o professor destaca que a concentração de poder excessivo nas mãos de pessoas erradas e a inutilidade do Conselho de Administração também deixaram passar a suposta fraude contábil.
“No caso da Americanas, tinha conselho, comitê de auditoria estatutário, cinco comitês do conselho, 19 políticas corporativas, inclusive política de compliance, política de gestão de risco que constava no relatório anual como ‘política robusta’, além da estrutura de governança”, exemplifica Di Miceli.
Histórico da PwC
A PwC foi nomenclatura criada após fusão das empresas Price Waterhouse e Coopers & Lybrand, em 1998. E o caso das Americanas não foi a primeira polêmica envolvendo a PwC.
Em fevereiro de 2020, a gestora brasileira Squadra questionou a transparência da resseguradora IRB Brasil (IRBR3), que também era auditada pela PwC. No mesmo dia, a ação da empresa chegou a cair 15%.
Na época, o IRB se defendeu, dizendo que suas demonstrações são elaboradas de acordo com as normas contábeis e que a performance financeira da companhia estava fielmente retratada nas demonstrações contábeis.
Cerca de uma semana depois, uma nova carta foi divulgada pela gestora com mais análises.
Além disso, ainda no início de 2020, chegou a ser divulgado na imprensa um aumento de participação da Berkshire Hathaway, do megainvestidor Warren Buffett, no capital social do IRB. No dia, a ação do IRB Brasil fechou em alta de 6,6%.
Os rumores aconteceram, pois a direção do IRB indicou para o conselho fiscal a advogada Márcia Cicarelli, procuradora da Berkshire no Brasil. Executivos do IRB também teriam confirmado a informação em teleconferência com analistas.
Porém, o Grupo Berkshire Hathaway divulgou comunicado informando que nunca teve ações e não tinha a intenção de se tornar um acionista do IRB. Com isso, no dia do comunicado, a ação do IRB caiu 30%. Na época, executivos da resseguradora renunciaram ao cargo.
O IRB informou que a conclusão da investigação independente identificou os responsáveis pela informação inverídica sobre a base acionária da companhia, a detecção de irregularidades no pagamento de supostos bônus a ex-diretor e outros colaboradores do IRB Brasil e suas controladas, entre outros pontos.
Em fato relevante, o IRB disse que as demonstrações financeiras de 2019 foram ajustadas e aprovadas pelo conselho de administração, substituindo as anteriores e que as apurações realizadas identificaram os diretores e demais colaboradores envolvidos.
Há dois anos, a gigante da auditoria foi absolvida pela CVM do Brasil de práticas irregulares na auditoria das demonstrações financeiras da Petrobras (PETR3,PETR4) entre 2012 e 2014. Investidores da estatal, que esteve envolvida em lavagem de dinheiro e propina, disseram que a PwC havia “ignorado sinais de alerta óbvios”.
Em 2017, a Justiça decidiu substituir a PwC da função de administrador financeiro da recuperação judicial do Grupo Oi (OIBR3, OIBR4) pela BDO Consultoria, indicada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Em sua decisão, o juiz da 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, Fernando Viana, disse que a PwC parece ter tido dificuldades em compreender seu papel na recuperação da Oi e ficou muito além das expectativas.
“Ao, por exemplo, estabelecer a remuneração dos AJs (administradores judiciais), a PwC se equivocou barbaramente ao informar por petição que reduziria o escopo do seu trabalho na medida em que os honorários por ela propostos seriam reduzidos”, apontou Viana na decisão.
“No decorrer da fase administrativa, este juízo pôde acompanhar o grau de zelo e dedicação do AJ financeiro, que ficou muito aquém das expectativas, tendo sido necessária a intervenção do juízo em mais de uma oportunidade para que o trabalho fluísse”, completou.
“A duplicação de créditos é um erro grosseiro, inaceitável que não poderia, de forma alguma, acontecer. E, para completar o quadro, foi apresentado ao juízo pedido de prorrogação do prazo para apresentação da lista de credores”, assinalou o juiz na ocasião, ao considerar inadmissível o pedido de prorrogação.
Casos internacionais
A PwC também ficou com sua imagem comprometida fora do Brasil após fazer um acordo com reguladores britânicos por uma auditoria da empresa de telecomunicações britânica BT Froup Plc. Outro caso relevante foi da Evergrande, a gigante do setor imobiliário chinês, que acumulou enormes dívidas sem receber nenhum alerta da auditoria.
Em relatório anual divulgado há alguns meses, a unidade da PwC em Hong Kong aprovou as contas da Evergrande referentes a 2020. O procedimento normal seria fazer um alerta, expressando dúvidas sobre a capacidade da empresa de manter a solvência por ao menos 12 meses. Com isso, a incorporadora chinesa provocou caos na economia do país asiático com a quebradeira do setor imobiliário.
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